Retirado de A condição da Mulher
OS NOVOS ABOLICIONISTAS
Embora, em termos globais, as mulheres não tenham alcançado posições de topo como líderes políticas, são elas que encabeçam as fileiras do empreendorismo social. Mesmo em países onde os homens monopolizam o poder político, as mulheres constituíram organizações influentes e têm desempenhado um papel catalisador como agentes de mudança. Muitas mulheres tornaram-se empreendedoras sociais para poderem assumir posições de liderança no novo movimento abolicionista contra os traficantes de sexo. Uma delas, Sunitha Krishnan, um Membro da Ashoka[1] na Índia, é uma figura lendária nesse domínio.
Oriunda da classe média, Sunitha frequentou um infantário em criança. Quando chegava a casa, pegava numa lousa e ia ensinar a um grupo de crianças pobres o que aprendera nesse dia. Essa experiência marcou-a tanto que decidiu tornar-se assistente social. Fez estudos universitários na Índia e a sua atenção centrou-se na literacia. Um dia, quando, acompanhada por um grupo de colegas, tentava ajudar alguns pobres de uma aldeia, foi interrompida por um bando de homens que se ressentia da sua “interferência”.
“Como não gostaram do que estávamos a fazer, decidiram dar-nos uma lição,” recorda Sunitha.
Num inglês de classe média-alta, o que a faz parecer mais uma professora universitária do que uma ativista, Sunitha descreve, de forma analítica e neutra, embora incisiva, a violação de que foi alvo e a sua recusa em fazer uma denúncia, por achar que era tempo perdido. Contudo, esse ato levou à estigmatização da sua família e à sua culpabilização.
“Não foi tanto a violação que me afetou como a forma como a sociedade me tratou. Ninguém questionou a motivação daqueles homens. Apenas questionaram a razão da minha presença ali e o facto de os meus pais me terem dado liberdade para eu o fazer. Compreendi que o sucedido fora um episódio isolado para mim, mas que, para muitas mulheres, era algo que ocorria todos os dias.”
Sunitha decidiu, então, dedicar-se à abolição do tráfico sexual em vez de à implementação da literacia. Viajou por todo o país e falou com o maior número de prostitutas possível, num esforço para compreender o mundo do sexo comercial. Estava a viver em Hyderabad, quando a polícia levou a cabo uma ação repressiva numa das zonas de meretrício, talvez porque os donos dos bordéis não lhe tivessem pago subornos suficientes ou precisassem de um “incentivo”. A ação teve consequências catastróficas. De um dia para o outro, os bordéis da zona foram fechados, sem que as raparigas que lá trabalhavam recebessem qualquer tipo de apoio. As prostitutas eram alvo de um tal estigma que não tinham para onde ir nem tinham forma de ganhar qualquer tipo de sustento.
“Muitas daquelas mulheres começaram a suicidar-se,” recorda Sunitha. “Quando ajudei a cremar corpos, vi que a morte funcionava como um fator de união entre as pessoas. Quando perguntei às mulheres o que queriam que fizéssemos por elas, pediram que fizéssemos antes algo pelos filhos.”
Sunitha começou a trabalhar com um missionário católico, o Irmão Joe Vetticatil. Embora ele já tenha morrido, Sunitha ainda mantém uma fotografia dele no seu gabinete e a fé dele marcou-a profundamente.
“Embora seja uma hindu convicta, considero os ensinamentos de Cristo muito inspiradores,” comenta.
Sunitha e o Irmão Joe abriram uma escola num antigo bordel. No início, apenas se inscreveram cinco de entre os 5 mil filhos de prostitutas que tinham direito a frequentar a escola. Mas a escola cresceu e, em breve, Sunitha começou a construir albergues, não só para as crianças, mas também para as raparigas e mulheres que tinham sido libertadas dos bordéis. Chamou Prajwala à sua organização, que significa “Uma Chama Eterna”, e cujo endereço eletrónico é http://www.prajwalaindia.org.
Embora uma zona de meretrício tenha sido fechada, havia outras em Hyderabad e Sunitha começou a organizar operações de resgate das prostitutas que trabalhavam nos bordéis. Percorreu as periferias mais abomináveis e sórdidas da cidade para falar com elas e tentar convencê-las a organizarem-se e a denunciarem os proxenetas. Em seguida, confrontou proxenetas e donos de bordéis, numa tentativa de recolher informações para entregar na polícia e convencer os agentes a levar a cabo mais ações repressivas. Tudo isto enfurecia os donos das casas de passe, que não compreendiam por que razão uma mulher minúscula lhes fazia frente e tornava o seu negócio tão pouco lucrativo. Organizaram-se e exerceram represálias, atacando Sunitha e todos quanto trabalhavam com ela. Partiram-lhe um braço e deixaram-na surda de um ouvido.
O primeiro empregado de Sunitha foi Akabar, um antigo proxeneta que tomou consciência do mal que cometera e que lutou de forma valerosa para ajudar as raparigas da zona de meretrício. Mas os donos dos bordéis retaliaram, apunhalando-o até à morte. Foi quando teve de contar à família de Akabar como este morrera que Sunitha se deu conta da necessidade de ser mais cautelosa.
“Apercebi-me de que a nossa abordagem não era sustentável. Se quiser levar a cabo uma tarefa duradoura, tenho de prestar contas à minha equipa e às suas famílias. Não posso esperar que ajam todos como eu.”
A organização Prajwala começou a trabalhar com o governo e com grupos de ajuda para fornecer reabilitação, aconselhamento e outros serviços. Sunitha arranjou forma de ensinar as antigas prostitutas a fazer artesanato e encadernações — algo que outras organizações também costumam fazer — bem como a ser soldadoras e carpinteiras. Até agora, Sunitha já ajudou a reabilitar 1500 mulheres, ao fornecer-lhes estágios de trabalho de seis a oito meses que lhes vão permitir iniciar carreiras novas. A Prajwalatambém ajuda as mulheres a regressar às suas famílias, a casar, ou a viver sozinhas. Sunitha afirma que, até agora, 85 por cento das mulheres têm conseguido manter-se afastadas da prostituição, enquanto 15 por cento regressaram a ela.
“Há mais prostituição agora do que quando começámos a trabalhar,” declara, com tristeza. “Quase diria que falhámos, porque em cada dez raparigas que salvamos, entram outras vinte nos bordéis.”
Nós, contudo, cremos que este balanço é demasiado pessimista.
Comemos em conjunto um almoço simples servido em pratos de lata amolgados. Enquanto debica o seu chapati, Sunitha entabula conversa com uma das suas voluntárias, Abbas Be, uma jovem de cabelo negro e pele castanha clara. Abbas tinha sido levada para Deli em adolescente para trabalhar como empregada doméstica, mas acabou num bordel, onde a espancavam com um bastão de críquete para a forçar a obedecer. Três dias depois da sua entrada, Abbas e as setenta raparigas foram forçadas a assistir ao castigo infligido a uma outra adolescente, que tinha repelido os clientes e tentado incitar as outras raparigas a rebelar-se.
Quando Abbas foi libertada durante um raide, Sunitha encorajou-a a vir para a Prajwala e aprender uma profissão. Neste momento, Abbas está a iniciar-se na arte da encadernação e ensina as outras raparigas da organização a evitarem ser traficadas.
Ambas desejam que todos os bordéis sejam fechados e não apenas regulamentados e a opinião de Sunitha tem cada vez mais impacto na região. Há uma dezena de anos atrás, seria impensável que uma jovem assistente social, de baixa estatura e com um pé aleijado, pudesse ter alguma influência sobre as máfias que dirigem os bordéis de Hyderabad. Os grupos de ajuda eram demasiado sensatos para se imiscuírem no problema. Contudo, Sunitha entrou corajosamente nesse mundo e fundou a sua própria organização, numa atitude que é caraterística dos empreendedores sociais. Embora pareçam, por vezes, pessoas pouco razoáveis e difíceis, são estas mesmas caraterísticas que as tornam bem-sucedidas.
Sozinha, Sunitha não teria tido recursos para fazer campanha contra os bordéis. Foram os doadores americanos que a apoiaram e ampliaram o seu impacto. A título de exemplo, um dos maiores apoiantes dos programas da Prajwala tem sido a organização americana Catholic Relief Services[2].
As redes de apoio e as referências que Bill Drayton tem feito a ela, enquanto Membro da Ashoka, também ajudaram a alargar a sua influência. Este é o tipo de aliança entre o primeiro e o terceiro mundo de que o movimento abolicionista necessita.
Nicholas D. Kristoff & Sheryl Wudunn
Half the sky – How to change the world
London, Virago Press, 2010
(Tradução e adaptação)
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[1] Fundada pelo americano Bill Drayton em 1980, a Ashoka é uma organização mundial, sem fins lucrativos, pioneira no campo da inovação social, do trabalho e do apoio aos empreendedores sociais – pessoas com ideias criativas e inovadoras capazes de provocar transformações com amplo impacto social. (N.T.)
[2] A agência humanitária oficial da comunidade católica dos Estados Unidos. (N.T.)