O caminho para a verdade

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A chuva que caía há dias parara finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo.

— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no final das aulas.

Ricardo meneia a cabeça e murmura algo de ininteligível de cada vez que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até numa simples folha de árvore. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias tem tudo menos boa pontaria.

 

O autocarro fantasma

O autocarro-fantasma

De todos os mortos daquele cemitério aquele que mais se aborrecia era Tomás Bondi. O guarda encontrava frequentemente terra removida à beira da sua campa e a lápide de mármore, onde se lia “Tomás Bondi (1939-2004) Prémio Volante de Ouro para o melhor motorista de autocarro”, deslocada um metro ou dois.

O falecido Tomás Bondi sentia muita falta do seu autocarro. Os outros mortos lembravam-se, quando muito, de sair a dar uma volta convertidos em fantasmas, mas ele, pelo contrário, precisava mesmo de conduzir o autocarro durante algum tempo.

Saía da campa, passava pelo guarda do cemitério, que não o via porque os fantasmas são invisíveis, e andava umas trinta ruas até chegar à empresa de transportes onde em vida tinha trabalhado.

Metia-se no hangar onde estavam estacionados os veículos e, quando via o seu autocarro, o 121, quase chorava de emoção.

Daí a nada estava ele a passar-lhe uma flanela. Limpava os espelhos, dava lustro aos faróis e brilho aos vidros. O problema era o guarda-noturno. Ao ver um trapo sozinho a limpar o autocarro, sem que ninguém o segurasse, desatava a fugir, abandonando o posto de trabalho.

De seguida, Tomás Bondi punha o 121 a andar e ia dar uma volta. Continuar a ler

A canção da avó – história do México

No  coração do México, os falcões sobrevoam as altas montanhas, mergulhando em  direção às encostas suaves, semeadas de milho. Debaixo do sol tropical, as  iguanas descansam sobre rochedos brilhantes, e os tucanos conversam com os  guaxinins empoleirados em árvores verde-esmeralda. Por entre as colinas, os  pumas correm, as raposas cinzentas procuram galinhas, e os lobos uivam entre si,  à noite.

Numa  aldeia situada no sopé das montanhas, vivia uma avó com a neta. Plantavam milho,  tomates e girassóis na Primavera e juntas viam os rebentos verdes despontar da  terra. No Verão, colhiam lírios brancos como leite, punham-nos em cestos às  costas, e levavam-nos para vender no mercado. Pelo Outono, decoravam caules  esguios de milho para a festa das colheitas, a fim de agradecer os cereais de um  ano inteiro. No Dia dos Mortos, costumavam erigir um altar e acender velas,  relembrando os entes queridos. E no Natal, pegavam em cola e papel e faziam  pinhatas, que enchiam com frutas e doces.

A  avó era alta e imponente. Tinha as faces macias e as maçãs do rosto bem  marcadas. Os olhos eram profundos, castanhos e doces. Embora tristes, eram  bondosos. Tinha o peito largo e as ancas redondas. Pernas e pés robustos  ligavam-na à terra, como se fosse uma árvore antiga. Os braços eram fortes e as  mãos graciosas, com dedos longos e finos. Era uma mulher tão delicada como os  rebentos de um jacarandá.

A  neta gostava de explorar e de sonhar. Costumava brincar sozinha, nos campos e  nas florestas, mas tinha medo das sombras escuras, dos barulhos dos animais, e  de tudo o que fosse novo e diferente. Continuar a ler

As rosas dos meus tapetes – a vida num campo de refugiados

As rosas dos meus tapetes

Para um jovem refugiado que vive com recordações de perda e de terror, o tempo é medido em termos do próximo balde de água, do próximo pedaço de pão, e da próxima chamada para a oração. Aqui, onde tudo — paredes, chão, pátio —  é feito de lama, o coração de um rapazinho ainda consegue ansiar por liberdade, independência e segurança. E aqui, onde a vida é extremamente frágil, é a necessidade que cria a força para resistir. Mas a força para sonhar vem do interior.

 

 

 É sempre o mesmo. Os jactos já me viram. Estou a correr demasiado devagar, porque tenho de puxar pela minha mãe e pela minha irmã. O terreno é traiçoeiro, cheio de crateras de bombas, e a minha mãe e a minha irmã impedem-me de avançar. Fui atingido em cheio. Quando estou prestes a morrer, ou pouco depois de ter morrido, acordo.

Abençoada escuridão. Demoro algum tempo a aperceber-me de que estou na nossa casa de lama, no campo de refugiados. A salvo. Ouço a respiração suave da minha mãe e da minha irmã perto de mim.

Um galo canta. É madrugada. Talvez seja melhor levantar-me e ir buscar água antes que se forme uma fila junto ao poço.

Quando regresso com o balde pesado, vejo que a minha respiração forma nuvens. A asa de plástico crava-se na palma da minha mão e isso faz-me parar e descansar várias vezes.

Quando chego a casa, lavo a cara. Um hábito inútil, já que aqui as paredes são de lama, o chão é de lama e até o pátio é de lama. É impossível mantermo-nos limpos.

Acordo a minha mãe antes de ir rezar à mesquita. Quando regresso, o pequeno-almoço está pronto. Como a minha irmã Maha ainda está a dormir, como o meu pedaço de pão e bebo o meu chá sossegado. Depois, dou-lhe um beijo na cara e vou para a escola.

Quando regresso a casa para almoçar, a cabana já está varrida. Como devagar, cortando o pão em pedaços, para o fazer durar mais. A Maha engole a porção dela e olha fixamente para a minha.

— Não — diz a minha mãe com severidade.

Mas, quando ela vira costas, dou uns bocadinhos à minha irmã. Terei de apertar a minha faixa um pouco mais.

O muezzin volta a chamar para a oração. Saio para a rua estreita, esquecendo-me de ter cuidado. Um carro passa rente a mim e buzina com força.

Neste lugar, as pessoas conduzem como se os demónios as perseguissem, sem prestar atenção a quem cruzam no caminho. Penso na Maha. Ainda bem que está a salvo em casa.

Depois das orações vem a minha parte favorita do dia. Vou aprender a arte de tecer tapetes. Quando teço, posso fugir dos jactos, dos pesadelos, de tudo. Como se, com as minhas mãos, criasse um mundo que a guerra não pode atingir. Um paraíso como aquele em que o meu pai está.

O meu pai era um agricultor, sempre à mercê do tempo ou de alguém que lhe viesse roubar a terra e as culturas. Mas eu hei-de ter uma arte que ninguém poderá roubar. Enquanto for forte e válido, a minha família nunca passará fome.

Primeiro, tenho de praticar. Alguém longe daqui possibilita a minha formação. Sou uma criança apadrinhada. Um filho adoptivo. Até me tiraram uma fotografia.

Em breve serei um mestre artesão e o dinheiro do meu padrinho já não será necessário.

Cada cor que uso tem um significado especial.

Os fios que cercam a moldura na qual todos os outros fios são entrelaçados são brancos, como a mortalha em que embrulhámos o corpo do meu pai. O preto é para a noite que nos esconde dos olhos inimigos. O verde é a cor da vida. O azul é para o céu, que estará, um dia, livre de jactos.

Como tudo no campo é de um castanho sujo, nunca uso o castanho nos meus tapetes.

A minha cor favorita é o vermelho. É a cor das rosas. Nunca cultivei flores. Cada pedaço de terra tem de produzir comida. Por isso, faço com que haja muitas rosas nos meus tapetes.

Teço padrões intrincados de rosas, todos ligados entre si. Um jardim de beleza rodeado por uma fronteira, uma parede. Uma parede em torno de um pequeno pedaço de paraíso.

Estou tão concentrado  a tecer que não ouço a respiração ofegante do rapaz que entrou na sala. É o silêncio que me desperta. Ergo os olhos e vejo toda a gente a olhar para mim. Aconteceu algo de terrível.

— É a tua irmã.  Foi atropelada por um camião.

Ponho-me em pé de um salto e espalho mil fios pelo chão. Um amigo diz que os apanhará por mim. Agradeço-lhe com um aceno e corro pela porta fora.

O rapaz diz-me que a Maha está na clínica e que a minha mãe está com ela. Estão a operá-la para tentar salvar-lhe as pernas.

Quando chego à clínica,  a minha mãe está histérica, porque quer ir ter com a filha. Há pessoas que a impedem e oiço gritos. São os meus gritos.

A minha mãe vira a cabeça e o seu olhar é quase desumano. Como quando o meu pai morreu.

Tenho de ser forte. Não posso chorar. Com gentileza, afasto-a um pouco, dizendo-lhe que pode atrapalhar. As minhas palavras surtem efeito. Coloca a cabeça no meu ombro e dou-me conta do quanto cresci. É uma altura estranha para reparar em coisas como esta. Peço à minha mãe que vá para casa e que reze pela segurança da Maha. Quando houver notícias, irei dar-lhas.

Como não consigo ficar quieto, ando de um lado para o outro. Depois rezo, lembrando-me do conselho que dei à minha mãe. Rezo pela Maha e pela minha mãe. Depois rezo pelo meu padrinho que paga a operação da minha irmã e nem sequer o sabe. Sinto-me melhor depois de rezar.

O médico aparece finalmente, com um olhar cansado. As notícias são boas: a minha irmã vai ficar bem. Tem as pernas partidas, mas vai conseguir andar de novo. Não em breve, mas um dia. Um sentimento de alívio inunda-me a face como chuva bem-vinda. Corro para casa para contar as novidades à minha mãe, que chora de alegria.

Jantamos pão e água. A minha mãe corta o pão em três pedaços antes de se lembrar de que hoje somos só dois. Dá-me a parte da Maha e eu devolvo-lhe metade. Comemos em silêncio. Cada bocadinho de pão se atravessa na minha garganta e não há água que chegue para ajudar-me a engolir.

Exausto, deito-me no tapete de palha que faz de cama. Sem a Maha, a casa está demasiado silenciosa. Tenho muitas saudades dela e fico acordado durante muito tempo.

À noite, quando sonho, sonho novamente com jactos a rasgar o tecido do céu.

Mas, desta vez, a minha mãe e a minha irmã correm comigo e não me detêm.

Porque, ao correr, encontramos um espaço, do tamanho de um tapete, onde as bombas não nos podem atingir.

E dentro desse espaço há rosas.

Rukhsana Khan
The Roses in my Carpets
Ontario, Fitzhenry & Whiteside, 2004
(Tradução e adaptação)

O papagaio que dizia “amo-te”

O papagaio que dizia “amo-te”

Talvez por ser órfã de mãe e por o seu pai estar sempre fora de casa, Beatriz crescera triste e solitária. Na escola, chamavam-lhe “Beatriste”, porque se sentava sempre sozinha e não queria brincar com os colegas.

Em casa, depois de feitos os deveres, metia-se no quarto e lia até adormecer.

Beatriz tinha um pesadelo frequente: estava numa ilha deserta e não avistava nenhum barco. À noite, tinha frio e, de dia, fome e sede, pois o único alimento que havia na ilha era o coco. Ao acordar, Beatriz dizia para consigo: “Afinal, a minha vida é igual à do meu pesadelo”.

Não tinha amigos e os dias sucediam-se sem sentido, uns atrás dos outros, como cocos a cair de palmeiras.

Como dormia mal de noite, Beatriz acordava com sono e com poucas forças para falar com o pai. Este via o noticiário e saía logo a correr para o escritório, onde ficava a trabalhar até muito tarde. Quando voltava, já Beatriz estava a dormir, ou melhor, acordada, na sua ilha deserta cheia de coqueiros.

A menina interrogava-se se o pai gostaria mesmo dela ou se viera a este mundo por acaso, já que ele nunca a abraçava, beijava ou dirigia palavras de carinho. As conversas com ele eram sempre do género:

— Beatriz, não te esqueças, como ontem, do caderno dos deveres.

— Sim, papá.

— Já puseste o lanche na pasta?

— Sim, papá.

— Não atravesses a rua com o sinal vermelho ou amarelo!

— Sim, papá.

As trocas de palavras entre ambos não passavam disto, porque o pai, se calhar, era tão tímido como ela. Talvez ele também vivesse numa ilha, que barco algum jamais visitava…

******

Contudo, numa segunda-feira de manhã, aconteceu algo extraordinário que mudaria para sempre a vida de Beatriz.

Ainda não bem desperta, a menina teve a impressão de estar a ser observada. Todavia, ao abrir os olhos, viu que não havia ninguém no quarto. Nem se ouvia sequer o barulho da televisão, sinal de que o pai já tinha saído e lhe deixara o pequeno-almoço em cima da mesa.

Mas, quando olhou para a janela, Beatriz viu um papagaio grande e verde, pousado nas cordas do estendal. A ave olhava para ela de esguelha. Recuperada do susto, a menina perguntou-se de onde teria vindo aquele papagaio e o que faria ali, a espiá-la. Cheia de curiosidade, saltou da cama e abriu a janela para o ver melhor.

— Papagaio, pequenino, vem cá! — chamou-o em voz baixa, para não o assustar.

Tinha certamente escapado da casa de algum vizinho, pois logo respondeu ao convite de Beatriz, acercando-se dela.

— Perdeste-te? — perguntou a menina. — Vens de alguma ilha longínqua, cheia de palmeiras?

A ave pousou no braço de Beatriz, que a princípio se assustou. Porém, quando viu que o papagaio não a picava e que queria ser seu amigo, pô-lo no seu quarto, onde colocou um copo de água e um prato com migalhas de pão. Em seguida, saiu para a escola, muito feliz.

******

Ao meio-dia, telefonou ao pai para lhe contar o que se tinha passado e para lhe pedir que a deixasse ficar com o papagaio. Ia chamar-lhe Tequilha porque imaginava que ele tinha vindo de um país longínquo onde bebiam esse licor.

O pai falava pouco mas era muito atento. Por isso, quando Beatriz voltou da escola, já encontrou Tequilha instalado numa gaiola dourada, com o comedouro cheio de sementes de girassol.

— Olá! — cumprimentou-a, na sua voz estridente.

— Sabes falar! — exclamou a menina, admirada. — Ora vê se consegues dizer o meu nome: Beatriz, Beatriz, Beatriz…

Tequilha seguia atentamente a lição e movia o bico, mas não conseguia repetir o nome. Beatriz, que lera que os papagaios e os periquitos têm muita facilidade em pronunciar o “t”, disse-      -lhe:

— Chama-me então Beatriste, como fazem na escola. Beatriste, Beatriste…

Nem precisou de o repetir pela terceira vez, porque o papagaio logo exclamou:

— Beatriste!

A dona, orgulhosa, pulou de alegria. Depois de um dia tão bonito e emocionante, e logo após a empregada lhe ter servido o jantar, Beatriz deitou-se e adormeceu, cansada. Quando a luz da manhã a acordou, Tequilha estava a descascar uma semente, que segurava com uma pata.

— Bom dia, Tequilha! Não cumprimentas a tua Beatriste?

O papagaio acabou de descascar a semente, comeu-a com prazer e bradou:

— Amo-te!

Quando ouviu isto, Beatriz não conteve um grito de emoção. Depois, pensou que não era normal que o papagaio tivesse dito uma expressão típica de um galã de telenovelas. Será que vira muitas ou teria pertencido a algum par de recém-casados?

Podia ser apenas uma casualidade. Os papagaios brincam com as palavras que vão ouvindo e, por vezes, dizem coisas com sentido.

“Deve ser isso”, pensou Beatriz.

Contudo, na manhã do dia seguinte, Tequilha acordou-a com uma saudação igual:

— Amo-te!

— Quem te ensinou isso? — disse Beatriz. — Só os adultos usam essa palavra.

Como os papagaios falam, mas não conversam, Tequilha continuou a olhar para a sua dona e amiga com grande interesse, sem, contudo, dizer mais nada. Depois descascou outra semente.

Quando na quinta-feira, logo de manhã, o papagaio voltou a exclamar “Amo-te”, Beatriz resolveu investigar. Era estranho que as declarações de amor do papagaio só ocorressem de manhã. Quer de tarde quer à noite, Tequilha só dizia “Olá!”, “Beatriste” ou “Caramba!”.

******

Sabendo que o pai ainda estava a tomar o pequeno-almoço, Beatriz correu a expor-lhe o mistério. Mas o pai, muito vermelho e quase a engasgar-se, nada respondeu. Levantou-se, apressado, despediu-se da filha com um beijo e saiu de casa com a pasta.

De repente, Beatriz compreendeu o que acontecera e teve vontade de chorar. Só que de felicidade, desta vez! É que Tequilha repetia, cada manhã, o que o pai de Beatriz lhe dizia à noite, quando ela já dormia.

 

Agora reflecte…

O Afecto

“O amor é a cura de todos os males”.

Leonard Cohen

Os sábios da Índia dizem que, quando olhamos para o mundo, o colorimos com as nossas próprias cores. Por isso, se olharmos os outros com ódio ou desconfiança, iremos receber ódio e desconfiança. Pelo contrário, se os virmos com amor, viveremos sempre rodeados de carinho.

E tu, como preferes viver?

Há quem tenha vergonha de expressar os seus sentimentos, mas isso não significa que não gostem de nós. Muitas vezes basta que lhes mostremos o nosso amor (com palavras amáveis, com um beijo, com um presente inesperado…) para nos abrirem o coração.

Se te custa dar carinho a alguém de quem gostas, imagina que o mundo vai acabar amanhã. O que farias hoje? Certamente correrias a abraçar os teus pais, irmãos e amigos. Dir-lhes-ias o quanto gostas deles, e falarias dos bons momentos que passaram juntos… Para fazeres isso, não é preciso esperar pelo fim do mundo! Podes começar hoje mesmo a dar-lhes afecto… mesmo que seja à tua maneira!

Mostra o teu carinho

 

Há muitas maneiras engraçadas e originais de demonstrar amor a quem te rodeia. Eis algumas:

a) Escrever um lindo poema no frigorífico com letras magnéticas.

b) Colocar um desenho muito alegre e bem colorido no seu quarto.

c) Compor uma canção para ele/a.

d) Oferecer-lhe um trabalho manual feito por ti.

Etc., etc.,…

Dr. Eduard Estivill; Montse Domènech
Cuentos para crecer: Historias mágicas para educar con valores
Barcelona: Editorial Planeta, 2006
(Tradução e adaptação)

A nascente no deserto

A nascente no deserto

 

Descontrai-te, mantém-te imóvel e ouve – ouve com atenção esta história sobre uma pobre família que estava a viajar para ir ao casamento de uma prima rica, num bonito templo, lá longe. Queres saber o que aconteceu durante a viagem? Vamos lá ver se conseguimos descobrir!

Então… a família tinha avançado bastante até ali, passando por muitas cidades e vilas na sua pequena carroça, mas de repente chegou à orla de um deserto enorme e terrivelmente quente. Preocupados, pediram conselho às pessoas que ali moravam sobre a melhor maneira de o atravessarem. Todos disseram a mesma coisa – para não se aproximarem dele durante o dia e, em vez disso, para o atravessarem durante a noite, quando o Sol escaldante descansava, indefeso, na sua cama. «Mas como poderemos saber por onde ir no meio da escuridão?», perguntou o chefe da família.

«Orientem-se pelas estrelas», responderam os habitantes da região.

«Parece-me tudo muito bem», pensou ele. «Mas pouco sei sobre as estrelas, temos de encontrar alguém que conheça o assunto para nos guiar.»

Por isso perguntou por toda a vila e rapidamente encontrou um jovem que se dizia ser um dos melhores guias da região.

Nessa noite, depois de a escuridão ter caído sobre a terra e a areia ter ficado mais fresca, a família deu início à viagem. O guia tomou nas suas mãos as rédeas do boi e sentou-se direito e orgulhoso na carroça. Olhando fixamente para o céu noturno brilhante, leu as estrelas e conduziu-os em direção a leste.

Contudo, o rapaz desfrutara de um grande jantar, para não mencionar de um grande copo de chocolate quente, antes de partir, e tudo isso lhe dava uma certa sonolência. Dentro de pouco tempo, o doce embalar da carroça fê-lo cair num sono profundo, sem que nenhum dos passageiros, que também dormiam, desse conta do que acontecia. Naturalmente que o boi que puxava a carroça não sabia ler as estrelas, por isso, com o guia a dormir, vagueou sem destino – numa direcção totalmente errada. Quando o chefe da família acordou com a primeira luz da manhã, compreendeu que estavam completamente perdidos!

«Onde estamos nós?», indagou a mulher quando acordou. «Certamente que a esta hora já devemos ter praticamente atravessado o deserto. Vamos chegar atrasados ao casamento!»

Quando viram que o guia estava a dormir profundamente, ficaram muito zangados com ele, mas esse sentimento depressa se transformou em medo. «Um dia completo no deserto!», lamentaram-se as crianças. «Iremos ficar sem água! Que vamos nós fazer?», disseram elas a chorar.

O pai tomou o comando e tentou acalmá-las. «Não se preocupem», disse ele, «encontraremos uma maneira de sairmos desta situação.»

Andando para a frente e para trás, pensou e voltou a pensar. Em seguida, sentou-se na areia e fixou os olhos na distância. Devia haver alguma coisa que ele pudesse fazer… De repente viu uma pequena planta que crescia na areia junto a uma rocha. «Ah! Afinal alguma coisa cresce aqui nestas areias quentes e secas! E onde há plantas tem pelo menos de haver um pouco de água!», concluiu ele.

Chamou o jovem guia e mostrou-lhe a planta. «Quero que caves neste local, porque acredito que deve haver água aqui perto», disse-lhe ele. O guia olhou-o duvidoso, mas, como os metera naquela embrulhada, não se encontrava em posição de discutir. Por isso, retirou uma pá da carroça e começou a cavar.

Cavou e voltou a cavar, mas continuava a não encontrar água. Estava agora cheio de calor e de sede. De repente bateu em qualquer coisa: «Bati numa rocha!», gritou ele. «Tudo o que encontrei foi uma pedra grande e seca. Que perda de tempo!»

O resto da família olhou-o muito desanimada. Mas o pai não era homem de desistir facilmente, por isso incitou-os a não perderem a esperança. «Não desistam agora. Não podemos desistir! Se o fizermos agora, estaremos todos perdidos! Enquanto ainda nos restam forças, e antes que fique mais calor, temos de continuar a tentar. Pensem no que a nossa prima irá sentir se não aparecermos para o casamento!»

O silêncio caiu sobre eles. Estavam todos tão cansados e tinham tanta sede que nem tinham força para protestar! O chefe da família sentou-se na rocha e olhou em redor. Depois, no silêncio, ouviu, ou pelo menos pensou ter ouvido, um ténue som de água a correr. «Estarei a ouvir coisas?», interrogou-se ele.

«Prestem atenção! Tenho a certeza de que ouço água! Conseguem ouvir também?», perguntou.

«O que estás tu a dizer? Apanhaste demasiado sol e ficaste louco?», disse a mulher.

«Não, escutem, tenho a certeza de que consigo ouvir água», disse ele excitado, «e parece vir da pedra. Bate na rocha!», ordenou ele.

O guia pegou numa marreta e começou a bater na rocha. Inicialmente nada aconteceu, mas então, de repente, a rocha abriu-se e, para surpresa e alívio de todos, a água começou a jorrar, formando uma fonte refrescante.

Ouviu-se um grande grito de alegria enquanto todos se precipitavam para beber um pouco de água fresca e cristalina. A família dançou de alegria, abraçando-se uns aos outros, a rir. Agora tinham água que chegasse! Deram de beber ao boi e encheram os recipientes para o resto da viagem.

Aliviados e refrescados, a festa recomeçou depois de o Sol se pôr. Quando a Lua subiu no céu estrelado, o guia conduziu-os em segurança através do deserto, e finalmente chegaram ao templo depois da aurora, ainda a tempo para o casamento da prima.

Umas horas mais tarde, vestidos com a sua melhor roupa, estavam confortavelmente a participar num delicioso banquete em honra da sua bela prima e do seu jovem marido. Observando a família a divertir-se, o pai sorriu contente consigo próprio ao mesmo tempo que, silenciosamente, brindava com eles com o seu copo de água cristalina. Como estava feliz por não ter desistido no deserto!

A vida apresenta-nos todo o tipo de dificuldades e coloca com frequência obstáculos no nosso caminho. Nessas ocasiões, é demasiado fácil desistir. Uma pessoa sensata sabe que, se continuar a tentar, acabará por conseguir ter êxito.

 

Dharmachari Nagaraja
Buda para Ler ao Deitar
Lisboa, Editorial Estampa, 2011
(Adaptação)

A música de Imani

A música de Imani

Nascido durante a época das plantações no fim do século XIX, o meu avô W. D. era um homem do Era uma Vez, que morava no Aqui e Agora, porque a vida o tinha ali colocado. Era conhecido em cinco condados como um contador de histórias que conseguia levar um conto ao tapete. Vivia entre o Era uma Vez, o Aqui e Agora e O Que Vai Vir. Eram pessoas como ele que mantinham a tradição viva.
W. D. tinha uma velha bengala que levava para todo o lado. Dizia que tinha sido feita com pranchas do navio de escravos que tinha trazido o seu avô. Achava que, enquanto tivesse aquela bengala, nenhum navio de escravos teria algo a ver com ele.
De vez em quando, dava a volta à casa, arrastando a bengala pelo chão, desenhando uma linha. Depois chamava-nos com a mão nodosa e íamos todos a correr para dentro do círculo que ele traçara. Nesse espaço, W. D. atravessava o rio do tempo como se este fosse uma mera poça de água da chuva. Com as suas primeiras palavras e um cheirinho do ar da noite, entrávamos todos na terra do Era uma Vez, como se fosse Aqui e Agora.
Isto porque as pessoas são o que são e as coisas não mudam tanto quanto isso. Ainda há quem queira ser amado, quem se case e tenha filhos. A fome ainda nos leva à procura de comida, e enterrar as pessoas ainda faz os seus parentes chorar.
— Tenham cuidado — advertia-nos, enquanto nos aproximávamos dele. — Não molhem os pés no Rio do Tempo, atravessem com cuidado para a terra do Era uma Vez.
Era uma vez um tempo em que não havia música no planeta. A música era uma iguaria tão cobiçada que os Antepassados a guardavam para si, e dela só comiam um bocadinho todos os dias. Estava guardada numa prateleira do céu nocturno, em taças enormes, negras e brilhantes. De vez em quando, uma rajada de vento ou uma tempestade abanava as taças, fazendo com que caísse um pouco de música na terra. Mas o mundo nunca soube o que perdia, porque todos se abrigavam. Todos menos Imani, uma criatura que adorava música.
Ao contrário dos outros gafanhotos, Imani adorava que a chuva lhe caísse em cima. De cada vez que havia uma tempestade, descobria que lhe tinha sido dado um presente. Conseguia esfregar as patas traseiras numa folha de planta ou numa tira de erva, e obter os sons mais maravilhosos.
Era algo tão bom que não queria guardá-lo só para ele. Quando tocava, com alegria, numa folha de palmeira ou de vinha, desejava que o resto do mundo pudesse partilhar o seu presente.
Então, numa noite especial em que tinha caído uma chuva suave, Imani escolheu uma tira de erva do Serengeti para tocar. Fez uma vénia e dedicou a sua actuação aos Antepassados. Tocou para o céu escuro durante horas. Tocou enquanto interiormente entoava uma prece. Quando a última nota se fez ouvir, murmurou com toda a fé de que era capaz:
— Por favor, Antepassados, dêem música ao mundo.
Quando os Antepassados olharam para baixo e ouviram as primeiras notas da canção de Imani, viram quão feliz ele estava.
— É um gafanhoto músico. Devíamos dar-lhe música.
Rindo e dançando tão ruidosamente que balançavam os céus e a terra, verteram toda a música que tinham nas taças negras. Um banho de melodias caiu sobre Imani, e o resto da terra apanhou as restantes como uma esponja apanha a água.
Havia agora música por todo o lado e em tudo. O dom da música foi atribuído a todos os gafanhotos, embora só pudessem tocar com as pernas, não com pétalas ou ervas.
Também foi atribuída aos leões e às girafas; às serpentes e aos pássaros (estes tiveram direito a uma grande parte porque estavam a voar no momento em que a música caiu); às árvores, às montanhas, aos cactos e às pessoas! Se não acreditam, batam, agitem ou piquem com gentileza tudo o que há na terra e ouçam a música a sair.
No início, as pessoas juntavam as suas vozes às canções de Imani. Depois, os músicos criaram instrumentos para tocar com ele, trazendo à superfície a música escondida nas canas, nas árvores, nas peles dos animais, no marfim, no cobre, no bronze, criando flautas, baterias, banjos, guitarras, xilofones, liras e harpas.
Em breve tudo se fazia ao som da música. Os camponeses faziam as colheitas ao som dela. Os reis eram por ela embalados quando davam longos e pensativos passeios. Os trabalhadores abatiam árvores e construíam aldeias ao som de canções. Os amantes cantavam cantigas de amor. Os mercadores apregoavam as virtudes da sua mercadoria. E os reinos saudavam a passagem do poder de geração em geração através de instrumentos e de árias.
Imani procurava em todo o lado novas folhas que pudessem ser tocadas. Viajava por montanhas de dia e tocava na folhagem à noite. Lavradores, mercadores e pastores, atraídos pelas suas melodias, diziam-lhe por onde ir.
Um dia, um mercador de tecidos muito viajado, chamado Umoja, apontou-lhe o oeste e disse-lhe:
— As ervas mais altas crescem perto da orla do mar. Vai e toca-as! Os oceanos ecoam os seus sons. Toca devagar. As ondas hão-de levar as tuas canções através das águas. Vem viajar comigo e guiar-te-ei.
Imani seguiu o conselho do mercador e em breve se tornaram amigos. Umoja tecia por profissão e tocava flauta por amor. As suas vozes misturavam-se belissimamente e nos locais onde acampavam nunca estavam sozinhos.
Numa manhã radiosa e cheia de luz, Imani e Umoja chegaram à costa. Aí, enormes navios cantavam: cush, cush, cush. A voz da areia fazia-se ouvir sob os seus pés: grish, grish, grish e as ondas faziam lap, lap, lap contra a praia. A juntar-se à sua canção havia vozes que falavam línguas estranhas e ouvia-se o som de cadeias metálicas: clink, clink, clink.
— Que música estranha tocam estes elementos juntos — exclamou Imani. — Tenho de lhes adicionar a minha voz.
Só que, exausto da viagem, decidiu dormir uma sesta e aconchegou-se no saco de Umoja, que era feito de tecido e corda.
Subitamente, foi acordado pela algazarra das pessoas, pela canção das cadeias de metal, pelo som das vagas do oceano, e pelos gritos de Umoja, que tinha sido apanhado numa rede de muitas malhas. Não se sabe bem como, estavam ambos a bordo de um daqueles navios. E o navio tinha levantado âncora.
Horrorizado, Imani começou a chorar. Deixava para trás a sua terra, os seus amigos, a sua família, e a sua amada relva do Serengeti! Havia mar por todo o lado! E o mar cantava uma canção triste e estranha, acompanhada por cadeias de metal, por ondas rumorejantes, e pelas vozes das pessoas. Secando as lágrimas, Imani abraçou o conforto da sua música e cantou toda a noite, com afinco.
Através de um buraquinho minúsculo no chão do convés, Imani conseguia ver uma multidão de gente: homens, mulheres e crianças, todos amontoados e ligados por uma corrente comum. Eram os mercadores, lavradores e pastores que tinha encontrado nas suas viagens. Chamavam-no em KiSwahali, Yoruba, e em muitas outras línguas.
— Gafanhoto, traz-nos água, temos sede!
— Gafanhoto, traz-nos comida!
E muitos rogavam:
— Gafanhoto, diz à minha mãe para onde fui e que voltarei, se puder.
Ouvir e ver o que se passava no porão do navio fez com que Imani deixasse de poder cantar. Como poderia ele fazer o que lhe pediam? A própria mãe de Imani não sabia onde ele estava. Naquele momento, Imani soube que o destino do seu povo seria o seu destino e as lágrimas brotaram novamente dos seus olhos.
— Não chores — pediu uma voz que vinha do porão. — As tuas lágrimas não podem ajudar-nos.
Imani sentiu-se reconfortado, porque conhecia aquela voz. Era Umoja.
— Ir buscar água e comida para nós é-te impossível, pequenote. Mas podes dar-nos esperança, podes dar-nos a tua música!
— Darei! — prometeu Imani. — Precisais de música no sítio para onde ides. Pode ser mesmo tudo o que vos resta.
Imani cantou com todos os bocadinhos de vegetação que encontrou no navio, desde as despensas às galés, da cabina do capitão à torre de vigia. Aprendeu canções novas. Embora as cantasse com tristeza, continuava a cantar.
Quando o navio cessou de baloiçar e aportou finalmente a uma praia nova, Umoja e os outros foram conduzidos em muitas direcções. Imani ficou sozinho. Fartou-se de procurar, mas não encontrou milho-miúdo, sorgo, ou juncos. Nunca mais conseguiria ouvir a música que a tira de erva do Serengeti produzia. Perguntou a lavradores e pastores que ia encontrando, mas eles não o compreendiam.
Imani atravessou a nova terra de lés a lés. Não deixou uma única casca de milho por virar, em busca de sons novos que trouxessem esperança ao seu povo. Nunca encontrou Umoja mas, quando encontrou uma ou duas das centenas de pessoas que tinham viajado com eles, cantou-lhes as suas novas canções. Eles, por seu turno, ensinaram estas canções a outros.
— Enquanto outrora éramos vários povos, agora somos um só, e temos uma só língua e uma só música. Temos de viver, trabalhar, amar, e confortar-nos mutuamente nesta nova terra, unidos por novas canções.
E foi assim que aprenderam estas novas melodias. Às vezes, cantavam-nas com tristeza e saudade, mas nunca deixavam de cantar!
Durante as suas viagens, Imani conheceu uma gafanhota chamada Esperança, que traduziu o nome dele para a sua língua e chamou-lhe Fé. Fé casou com Esperança e tiveram muitos filhos, aos quais Fé passou o seu dom para cantar.
Embora as ervas e vinhas desta nova pátria produzissem sons maravilhosos, não eram iguais às de África. Quando Imani levava os filhos ao círculo dos contadores de histórias, ia muitas vezes com eles até à terra do Era uma Vez e contava-lhe contos da sua terra natal, das suas noites claras e da erva real do Serengeti.

Sheron Williams
Imani’s Music
New York, Atheneum Books, 2002
Tradução e adaptação

O homem que comia dinheiro

O homem que comia dinheiro

Okereke gostava de manusear dinheiro. Se tivesse preparação para isso, gostaria de ser empregado bancário. Não podia imaginar nada de mais agradável do que contar mancheias de notas, pondo de lado desdenhosamente as notas velhas e gastas, entregando pacotes de notas novas através do postigo aos clientes agradecidos. Seria um trabalho maravilhoso, mal se poderia considerar trabalho.

Mas era um camponês, não um empregado bancário, e tinha muito pouco dinheiro seu para manusear. Apesar do pai lhe ter deixado muitas terras, nunca parecia ganhar muito com a agricultura, e o que ganhava derretia-se bem depressa com as ruidosas exigências da mulher, filhos, despesas de todo o tipo e outros gastos não tão inocentes. Foi por isso que, quando a aldeia necessitou de alguém para o trabalho de cobrador de impostos, ele se ofereceu imediatamente. De facto, foi tão rápido que nem reparou que não havia ninguém que quisesse o emprego.

O cobrador anterior era um homem magro com um ar ansioso, que ia descansar para casa do filho em Umuahia.

Olhou, com um ar de dúvida, para o impaciente Okereke.

— É uma grande responsabilidade — lembrou-lhe — ser cobrador. As pessoas não pagam e é necessário persegui-las em nome do governo. Não te pagarão tudo de uma vez, mas dar-te-ão um xelim aqui, seis pence além e dirão sempre «amanhã», «amanhã». Tens que te lembrar bem daquilo que foi efectivamente pago e daquilo que só foi o prometido. O dinheiro que tiveres nas mãos tem que ser guardado cuidadosamente para que o tenhas à disposição quando o governo o reclamar.

— Sim, sim — disse Okereke, e começaram a falar alegremente de outros assuntos mais controversos, argumentando acaloradamente que lhes diziam muito mais respeito do que o pagamento de impostos.

O dinheiro já pago passou para as mãos de Okereke, que assinou o recibo. O ex-cobrador ficou com um ar tão feliz como se tivesse pousado um pesado fardo ao cabo de uma longa e penosa caminhada. Partiu para Umuahia quase com um sorriso.

Durante o resto do ano, Okereke tratou do negócio sensatamente, sem nunca se enganar. Os problemas começaram no ano seguinte.

Começou por tirar emprestado da caixa algum dinheiro, apressadamente, e restituiu-o. Depois tirou mais algum, não o devolveu, depois ainda mais, também sem o repor. Quando finalmente, após muitos meses, comparou minuciosamente a lista com o dinheiro que tinha na mão, viu que faltavam quinze libras.

Okereke sentou-se e suspirou consternado. Quinze libras! Era terrível. Como podia ele ter gasto tanto dinheiro? Onde o encontraria de novo? Teria a coragem de dizer à aldeia que tinha devorado o seu dinheiro? E, mesmo se o fizesse, alguém poderia salvá-lo? Via à sua frente a ignomínia e a prisão. Era um assunto doloroso.

Claro que havia algumas saídas. Podia ir à cidade e procurar um agiota. Mas sabia bem que o braço do agiota era tão longo como o da lei e era muito mais rápido. Procuraria o seu dinheiro ou os juros no fim do primeiro mês.

Outra saída seria vender alguma coisa. Saiu de casa, olhou pensativamente para a bicicleta encostada a uma árvore, e até tentou raspar-lhe a ferrugem. Mas o transporte de muitos fardos, durante anos, tinham-na deixado bem marcada. Parecia pronta a desfazer-se, os guarda-lamas abanavam, os travões não funcionavam, o fecho estava partido.

A mulher viu-lhe o olhar avaliador e reconheceu imediatamente os sinais de quem necessitava de dinheiro. Chamou a filha mais velha e entraram juntas em casa. Momentos mais tarde, a rapariga, sem fazer barulho, deixava a casa e penetrava no bosque atrás da casa, sem o pai a ver, levando à cabeça a máquina de costura.

— Ijeoma!

— Meu marido?

— Traz-me a máquina de costura.

— É pena — respondeu prazenteiramente. — Acabo de emprestá-la à minha mãe.

— Ah — disse Okereke. A mãe de Ijeoma era uma mulher alta, com grande força de vontade, com uma voz forte e eloquente, que com a idade se tinha tornado cada vez mais penetrante. Fora ela quem, antes do casamento, comprara a máquina de costura para a filha.

Decidiu ir ter com o seu amigo Okafor, cuja profissão era fabricar vinho de palma.

Quando chegou ao aldeamento do amigo, Okafor fazia descer, do alto de uma palmeira, uma cabaça cheia. Okereke mandou embora o miúdo que estava no fundo da escada e substituiu-o para receber o vinho, depois atou a cabaça nova a uma corda que Okafor fez subir. Quando estava bem segura, desceu pela escada e apertaram-se as mãos. Depois, foram sentar-se à sombra para beber vinho e conversar.

Por fim, Okafor disse:

— Tu tens mau aspecto hoje. Estás doente?

— Tenho um grande problema — disse Okereke. — Um amigo meu pediu-me para o ajudar e não sei o que hei-de fazer.

— Qual é o problema?

— Precisa de dinheiro… quinze libras… muito rapidamente… e não sabe onde encontrá-las.

Okafor suspirou.

— O dinheiro é escasso. Nunca tenho um xelim na mão. Sangro estas árvores todas, as minhas e as dos outros, e nunca fico com dinheiro.

Serviu mais vinho e beberam, enquanto a tarde quente ia lentamente arrefecendo e as pessoas começavam a aparecer na estrada. Uns raios trémulos faiscavam por entre as nuvens acompanhadas de trovões.

— No tempo dos nossos avós, um homem da minha profissão era um homem rico. Tinha dinheiro e poucos estavam ao seu nível. Agora, olha para mim. Todos os rapazes novos têm a sua bicicleta, rádio, sapatos de borracha, camisa de nylon. Onde vejo eu essas coisas? O dinheiro está escasso.

— O dinheiro está escasso — repetiu Okereke como um eco, e beberam, inclinando mais a cabaça.

Quando, finalmente, acabaram o vinho, Okereke agradeceu ao amigo e ergueu-se para se ir embora. Seguiram um bocado juntos pela estrada e de repente Okafor parou e bateu na coxa.

— Este homem que necessita de dinheiro… Tens confiança nele?

— Como em mim próprio.

— Não te aconselharia isto se ele não fosse de confiança, mas já sei o que podes fazer. Empresta-lhe tu o dinheiro e tira-o do dinheiro dos impostos. Como ele é digno de confiança, não te deixará ficar em apuros por sua causa e restituir-te-á o dinheiro rapidamente. — Olhou para o amigo, todo contente com a sua solução.

Okereke nem foi capaz de falar e limitou-se a apertar a mão do amigo e separaram-se.

Okereke regressou a casa, sombriamente. De manhã, levantou-se muito cedo e saiu do aldeamento antes da sua mulher poder recomeçar a fazer-lhe perguntas. Encontrou o homem mais velho da aldeia à porta de casa, olhando desconfiadamente para o novo dia.

Okereke parou para o saudar.

— Para onde vai tão cedo? — perguntou o ancião.

— Vou ter com um amigo. Tem grande necessidade de dinheiro e não sabe onde encontrá-lo.

— Ah — disse o velho. — O dinheiro está escasso.

Fê-lo entrar para a sala e sentaram-se. Okereke tirou a caixa de rapé que aspiraram, franzindo o rosto e limpando lágrimas de prazer.

— Recordo-me — disse o velho com ar meditativo — que, no tempo do meu pai, havia um homem que tinha muitas dívidas. Tinha demasiadas dívidas e os credores chegavam ao seu aldeamento antes do nascer do Sol, para apanhá-lo antes que pudesse fugir para a floresta e à noite, quando tinha de regressar a casa para dormir.

— Sim — incitou Okereke todo curioso.

— O homem ficou muito preocupado porque não podia pagar-lhes e, no entanto, eles não acreditavam e não lhe davam tréguas. Uma manhã, deixou-se dormir e, quando acordou, já o dia ia avançado. Pôs a tanga e saiu apressadamente de casa, mas muitos dos credores já estavam no aldeamento.

— Que fez ele? — perguntou Okereke. O velho tomou mais rapé e disse:

— Saltou para dentro do poço.

Houve um silêncio pensativo.

— Que aconteceu depois? — perguntou Okereke em voz baixa.

— Era a estação seca e não havia muita água no poço. Depois de todos os credores terem fugido, a mulher dele, com uma escada, ajudou-o a sair de lá.

— E quanto às suas dívidas?

— Oh… não sei. Mas teve sossego durante um dia.

Okereke deu voltas à cabeça com tal história. Era de certo interessante, até divertida. Se estivesse com disposição para isso, ter-se-ia rido francamente com a imagem de um homem desaparecer num poço e a multidão desaparecer em pânico. Mas, nesse momento, não lhe servia de nenhuma ajuda.

Quando se despediu e saiu do aldeamento, parou e deitou uma olhadela para o poço por cima dos troncos que o rodeavam. A superfície da água estava a dois metros do cimo, pois a estação das chuvas mal tinha acabado e o poço estava muito cheio. A água era escura como óleo e parecia tão espessa como sopa.

Okereke estremeceu.

Tentou esquecer-se da história do velho e continuou a andar um pouco ao acaso em direcção à aldeia. Quando sentiu um carro a aproximar-se por detrás, não olhou mas afastou-se com a cara virada para floresta, para o deixar passar, acompanhado de uma sufocante nuvem de pó.

Mas o carro parou e o condutor debruçou-se da janela para o saudar. Era o marido da irmã de Ijeoma, Chukuem, um mestre-de-obras que estava muito bem na vida. Passava a maior parte do tempo na cidade e só raramente ia a casa. Okereke desejou saber que é que o trazia a casa desta vez e Chukuem esclareceu-o rapidamente.

— Tentei comprar mais uma terra para cultivar, mas houve demasiadas discussões. Três dos donos anteriores discutiam os limites e um outro homem limpava a terra enquanto falavam. Por isso deixei de a comprar para não arranjar problemas.

Olhou de lado para Okereke.

— Sabes de algum pedaço de terra que alguém esteja disposto a vender?

Não foi a primeira vez que Okereke se admirou da velocidade com que as novidades se espalhavam. Como de costume, a explicação, uma vez conhecida, era simples. Mas o que ele não sabia era que a mãe de Ijeoma, tendo recebido a máquina de costura para guardar em segurança, comentara para quem a quisesse ouvir que o inútil do Okereke parecia estar necessitado de dinheiro. Chukuem, marido da outra filha, que acontecia estar de visita, ouviu o que ela disse. Alguns anos antes, quando tentara comprar terras, Okereke tinha respondido que ele não necessitava de vender as terras do seu pai, falando com mais orgulho do que o aconselhável, irritando a mãe de Ijeoma, cujo pai tinha arranjado má fama por tal comportamento … mas essa era uma outra história.

Agora aqui estava Chukuem a fazer a mesma abordagem, obviamente apoiado nalguma informação de que desta vez teria sucesso. Via-se claramente isso pela forma tranquila como se sentava ao volante, tirando um cigarro que acendeu, e pela sua expressão confiante.

Okereke não perdeu tempo em perguntas inúteis.

Sorriu.

— Ainda bem que me encontras. O dinheiro está escasso. Quero vender um pequeno bocado das minhas terras.

— O preço também é pequeno, espero — retorquiu o cunhado, sorrindo também, e foram juntos vê-lo.

Umas horas mais tarde, Okereke dirigiu-se lentamente para casa. Essa noite tinha de se encontrar com Chukuem, assinar o contrato e receber o dinheiro, exactamente quinze libras. Lembrou-se do cobrador anterior, com a cabeça curvada pela preocupação e o sorriso forçado, devido à falta de hábito. Ijeoma e a mãe dar-se-iam imediatamente conta de que se tinha apropriado do dinheiro dos impostos, quando não vissem um centavo do pagamento de Chukuem. Seria essa a única explicação possível para a venda apressada sem lucro. Então começariam as discussões, as perguntas sem resposta, as censuras inevitáveis. Entre esse momento e o momento presente teria que saborear a paz e a calma que sem dúvida não teria durante todo o próximo ano.

Sentiu-se muito cansado.

 

Rosina Umelo
O homem que comia dinheiro
Lisboa, Edições 70, 1980

 

A escola secreta de Nasreen – uma história verdadeira do Afganistão

A escola secreta de Nasreen

Uma história verdadeira do Afeganistão

 

A minha neta Nasreen vive comigo em Herat, uma antiga cidade do Afeganistão, onde outrora floresceram as artes, a música e a educação. Mas depois chegaram os soldados e tudo mudou. As artes, a música e a educação desapareceram. Nuvens negras pairam agora sobre a cidade.

A pobre Nasreen fica em casa todo o dia, porque as raparigas estão proibidas de frequentar a escola. Os talibãs não querem que as raparigas estudem, como eu e a mãe de Nasreen fizemos quando éramos crianças.

Uma noite, vieram eles e levaram o meu filho, sem qualquer explicação. Esperámos dias e noites pelo seu regresso. Cansada de esperar, a mãe de Nasreen pôs-se, finalmente, a caminho, à procura dele, embora fosse proibido às mulheres e raparigas andar sozinhas pela rua.

Muitas luas passaram à minha janela enquanto eu e Nasreen esperávamos. Nasreen nunca falava nem sorria. Ficava sentada, à espera que o pai e a mãe aparecessem.

Eu sabia que tinha de fazer algo.

Ouvi rumores sobre uma escola secreta para raparigas que ficava por detrás de um portão verde, num caminho perto da nossa casa. E queria muito que Nasreen frequentasse essa escola. Queria que ela conhecesse o mundo, que estudasse, como eu tinha feito. Queria que ela falasse de novo. Assim, um dia, Nasreen e eu apressamo-nos a chegar ao portão verde. Felizmente, nenhum talibã nos viu. Bati ao de leve. A professora abriu o portão e corremos para dentro. Atravessamos o recreio da escola – uma sala numa casa particular cheia de raparigas. Nasreen sentou-se ao fundo da sala. Quando a deixei rezei: “Por favor Alá, abre-lhe os olhos para o mundo.” Nasreen não falou com as outras raparigas. Também não falou com a professora. E em casa manteve-se em silêncio.

Eu receava que os talibãs descobrissem a escola. Mas as raparigas eram espertas. Entravam e saíam a diferentes horas para não levantar suspeitas. E quando os soldados se aproximavam do portão, alguns rapazes desviavam a sua atenção. Ouvi falar de um talibã que bateu ameaçadoramente no portão, exigindo que o abrissem. Mas tudo o que encontrou foi uma sala cheia de raparigas a lerem o Corão, o que era permitido. As raparigas tinham escondido os seus trabalhos, enganando assim o soldado.

Uma das raparigas, Mina, sentava-se junto de Nasreen todos os dias. Mas nunca falavam uma com a outra. Enquanto as raparigas aprendiam, Nasreen vivia fechada em si mesma. A minha preocupação agravava-se. Quando a escola fechou para as longas férias de inverno, Nasreen e eu sentávamo-nos junto ao fogão. Alguns familiares poupavam comida e lenha para nos dar.

Mais do que nunca, tínhamos saudades da mãe de Nasreen e do meu filho. Alguma vez viríamos a saber o que tinha acontecido?

No dia em que Nasreen regressou à escola, Mina sussurrou-lhe ao ouvido:

— Tive saudades tuas.

— E eu também — respondeu-lhe Nasreen.

Com aquelas palavras, as primeiras desde que a mãe fora à procura do pai, Nasreen abriu o seu coração a Mina. E sorriu pela primeira vez desde que o pai fora levado à força. Pouco a pouco, dia após dia, Nasreen finalmente aprendeu a ler, a escrever, a somar e subtrair. Todas as noites mostrava-me o que descobrira naquele dia. Abriam-se, para Nasreen, as janelas naquela sala de aula. Conheceu e estudou os artistas, os escritores, os sábios e os místicos que, muito tempo antes, tinham tornado Herat importante.

Nasreen já não se sente só. O conhecimento que vai acumulando estará sempre com ela, como um bom amigo. Agora ela pode ver o céu azul para lá das nuvens escuras.

Quanto a mim, tenho a consciência tranquila. Continuo à espera do meu filho e da sua mulher. Mas os soldados nunca poderão fechar as janelas que se abriram para a minha neta.

Insha’ Allah.

Nota da Autora

O Fundo Internacional para as Crianças, uma organização sem fins lucrativos que se dedica a ajudar crianças de todo o mundo, contactou-me para escrever um livro baseado numa história verdadeira. Senti-me imediatamente atraída por uma organização no Afeganistão que fundou e apoiou escolas secretas para raparigas durante a ocupação Talibã, entre 1996 e 2001. O fundador destas escolas que pediu anonimato partilhou comigo a história de Nasreen e da sua avó. O nome de Nasreen foi alterado.

Antes de os Talibãs controlarem o Afeganistão:

70% dos professores eram mulheres;

40% dos médicos eram mulheres;

50% dos estudantes de Cabul eram do sexo feminino.

Depois da ocupação Talibã:

as raparigas estavam proibidas de frequentar a escola ou a universidade;

as mulheres estavam proibidas de trabalhar fora de casa;

as mulheres estavam proibidas de sair de casa sem um familiar do sexo masculino;

as mulheres eram obrigadas a usar a burca que cobria toda a cabeça e o corpo, deixando apenas uma pequena abertura para os olhos;

não era permitido cantar, dançar ou lançar papagaios. As artes e a cultura foram banidas na terra natal do famoso poeta Rumi. As esculturas colossais de Bamiyan Buddhas, esculpidas na montanha, foram destruídas.

Tinham começado anos e anos de isolamento e de terror. Mas também havia atos de coragem de cidadãos que desafiavam, de muitas formas, o regime Talibã, incluindo o apoio a escolas secretas de raparigas. A sua coragem nunca vacilou.

Jeannete Winter

Nasreen’s Secret School – A true story from Afghanistan

New York, Beach Lane Books, 2009

(Tradução e adaptação)

 

O devorador de coragem

O devorador de coragem

 

Em pleno centro da zona pedonal estava sentado um tipo gordo a olhar com má cara para as pessoas que passavam. Abria constantemente a boca, abocanhava no vazio, mastigava e engolia. Depois, coçava a enorme barriga, sorridente, e tornava a abrir a boca em busca de nova presa invisível. Uma e outra vez.

As pessoas que passavam por ele, ou que por vezes quase tropeçavam nele, estremeciam, assustavam-se, e apressavam-se a fugir. Parecia que estavam com medo. Mas o indivíduo ia ficando cada vez mais gordo. O que é que aquele monstro gordo estaria sempre a comer?

As pessoas indignavam-se.

— Que desaforo! — dizia uma a tremer. — Devia-se afugentar o fulano!

— Ora veja, parece que está a comer-nos!

— Sinto um calafrio pelas costas abaixo. Porque é que ninguém faz nada?

A opinião era unânime: aquele indivíduo tinha de desaparecer e com ele aquela sensação desconfortável que todos sentiam. No entanto, ninguém ousava fazer nada. As pessoas rondavam por ali, cheias de medo. O indivíduo gordo, no entanto, continuava a abocanhar e comia, comia, e o medo das pessoas crescia, crescia.

De repente, uma menina pequena dirigiu-se ao homem gordo.

— Quem és tu? — perguntou-lhe, destemidamente. — E o que estás aqui a fazer?

— Não me conheces? — ressoou o monstro. — Ah, ah, ah! Vais já ficar a conhecer-me, sua menina impertinente.

O indivíduo gordo ergueu-se em frente da menina, mostrando todo o seu tamanho. Abriu o focinho devorador, bateu os dentes e rugiu.

— Sou bem conhecido por toda a gente. Mas tu não me conheces, o Devorador de Coragem? Uááá!

Como soou horripilante! As pessoas assustaram-se. Mas a menina disse:

— Não tenho medo!

— Isso vai já mudar! — gritou o Devorador de Coragem, abrindo a boca na direcção da menina. — Apanho-vos a todos!

Mas a menina riu-se e disse em voz alta:

— Coragem, é só o que é preciso! — E repetiu uma e outra vez, e todas as pessoas se lhe juntaram:

— Coragem, é só o que é preciso!

A frase ecoava alto pela zona pedonal e, de repente, as pessoas começaram a sentir um pouco menos de medo.

O Devorador de Coragem olhou em volta, inseguro. Aquilo nunca lhe acontecera. Respirou com dificuldade. Custava-lhe cada vez mais a respirar!

— O que é que queres de mim? — perguntou a arfar. E a menina respondeu:

— Coragem, é só o que é preciso!

— Preci-ci-so! Co-co-ragem! — gemeu o monstro. Abocanhou novamente para o ar, depois esvaziou-se. Como um balão, explodiu em nada e — puff! — desapareceu.

— Agora comeu-se a ele mesmo! — exclamou a menina, rindo-se.

As pessoas sentiram-se aliviadas.

— Coragem, é só o que é preciso! — disseram a rir-se, e continuaram o seu caminho.

A menina apressou-se a ir para a escola. Já era muito tarde! Pensou na professora, que, de certeza, ia voltar a ralhar-lhe. E murmurou baixinho:

— Coragem, é tudo o que é preciso!

 

Elke Bräunling

Da wird die Angst ganz klein

Limburg, Lahn Verlag, 1998

Tradução e adaptação

 

Uma oficina diferente

Aboubacar trancou a porta da sua oficina com um suspiro cansado mas satisfeito. O dia fora longo. Parecia que todas as motas e motocicletas da cidade tinham decidido avariar naquele dia. Felizmente não lhe faltavam clientes. Alguns diziam que não havia melhor mecânico em toda a capital, Ouagadougou, outros diziam que em todo o Burquina Faso! Aboubacar sorria modestamente. Sabia bem que, quando os clientes que tinham chegado suados a empurrar a motoreta sob o sol intenso regressavam a casa montados nela, não se poupavam a elogios… de alívio e de felicidade!

A meio dos quarenta, Aboubacar era o filho mais velho de uma família numerosa. Ainda pequeno, os pais tinham-no enviado para casa de um parente afastado que vivia na capital, para aprender um ofício e ser mais tarde o chefe da família, como era a tradição. Um vizinho mecânico, a quem todos tratavam carinhosamente por TioAssouf, gostou daquele rapazinho de olhar vivo e curioso, e acabou por levá-lo para a sua oficina. A família afeiçoou-se a Aboubacar, e como os filhos de Assouf tinham partido para França, este acabou por passar a viver em casa dele.

Ao final do dia, o Tio Assouf gostava de se sentar à porta de casa a fumar e a ler o jornal. Certo dia, o rapazinho perguntou-lhe:

— Tio Assouf, o que está a fazer com esses papéis nas mãos?

— Estou a ler o jornal, Aboubacar — respondeu-lhe seriamente.

— E porque é que está sempre a ver os mesmos papéis?

— Aboubacar, eu não estou a ver, estou a LER — disse-lhe. — E isto é um jornal. Aqui estão escritas as coisas mais importantes que acontecem no nosso país. Chega cá.

E perguntou-lhe em tom mais baixo:

— Tu sabes ler?

— Não.

— Humm… é pena… podias ajudar-me aqui numa frase que não consigo ler. Sabes, quando tinha a tua idade, não tive a sorte de poder ir para a escola todos os dias e aprendi só um bocadinho. Mas como tinha muita vontade, fui continuando a aprender sozinho. Mas há algumas palavras que não sei ler muito bem, e outras que não percebo, porque são novas. É por isso que demoro muitos dias, quer dizer… Bem… digamos que leio mais devagar. Mas… espera aí! Se não sabes ler, como é que descobriste que estou com o mesmo jornal?

— Porque há dois dias que vejo sempre a mesma imagem na parte de trás da página — respondeu Aboubacar.

— Tu és esperto, rapaz! — exclamou o Tio Assouf, passando-lhe a mão pela cabeça e soltando uma gargalhada jovial. De repente parou, com os olhos fixos em Aboubacar e disse-
-lhe, com um largo sorriso radioso:

 — Como é que eu não pensei nisto mais cedo! TU é que vais aprender a ler e a escrever. E vamos ver se conseguimos que seja já na próxima semana! De manhã, escola. De tarde, logo se vê.

— Tio Assouf, eu tenho de trabalhar na oficina. É por isso que estou aqui!

— Não, Aboubacar. Aprender a ler e a escrever, a pensar sozinho e a compreender o que se passa à nossa volta é mil vezes mais importante. Até para trabalhar na oficina. Sabes fazer melhor as contas, percebes melhor o que fazes, podes ler e aprender coisas novas em livros e não demoras uma semana para ler um jornal de cinco folhas, como eu. Amanhã mesmo vou falar com o professor e logo se vê se podes ir para a escola normal ou juntar-te ao grupo de crianças cá do bairro a quem dá aulas em casa ao fim do dia. Anda, vamos jantar e contar tudo à Tia Esther.

A esposa de Assouf ficou radiante com a perspetiva de oferecer um futuro mais promissor a Aboubacar. Ela própria lamentava ter sido obrigada a ficar em casa e a ocupar-se unicamente das tarefas domésticas. Sentia que as raparigas não deviam ter um tratamento diferente dos rapazes. Por que razão não as mandavam à escola e as retiravam de lá quando eram precisas em casa? Se eram elas que iam ao mercado, que vendiam e faziam as compras? E dizia o que pensava em voz alta, sem vergonha do que pudessem pensar:

— As mulheres são tão capazes como os homens!

Decididamente, a família do Tio Assouf era muito diferente das normais, e não admira que Aboubacar se tivesse empenhado ao máximo em aprender avidamente tudo o que lhe ensinavam, quer fosse na escola ou na oficina, e escutasse com atenção as conversas de Assouf e da esposa e se começasse também a questionar sobre determinados assuntos.

Assim, de cada vez que fechava a oficina, que fora a de Assouf, Aboubacar nunca deixava de pensar nele e na esposa, e agradecia-lhes as oportunidades que lhe tinham dado.

♦♦♦

Naquele dia tão quente, Aboubacar ainda tinha tempo, antes do jantar, para se juntar aos amigos no largo, debaixo da árvore de mangas.

— Então, Abubacar, que tal o dia? — saudaram os amigos quando o viram chegar.

— Bebe uma cerveja — convidou-o Salit. — Com este calor, qualquer dia vais ter de comprar um ar condicionado para a oficina!

— Ar condicionado? Isso é para ti, que trabalhas para o estado…

— Sim, mas também não faz grande falta. À velocidade com que carimbam os papéis, não devem aquecer muito! — riu-se Aziz.

— Valia mais gastar o dinheiro num despertador. Passam o tempo a dormir, qualquer dia ainda ficam lá fechados de noite! — riu-se outro.

— Se o negócio continuar assim, precisava era de meter um… — começou Aboubacar.

— Olha, quem tem mais um em casa, sou eu.

— Vais ter outro filho?

— Não, tenho uma cunhada da sobrinha da minha mulher. Diz que o marido a tratava mal e resolveu fugir… Apareceu lá em casa cheia de nódoas negras, quase sem forças e lavada em lágrimas. Imaginem que caminhou dois dias inteiros. Vinha num estado miserável! A pena que metia!

— Coitada! Não consigo entender porque é que alguns maridos tratam tão mal as mulheres! Uma prima da Srª Maimouna, a que vende bolos no mercado, também fugiu para cá.

— Tratar mal? Mas as mulheres querem-se em casa a trabalhar e a ter filhos! E as filhas devem casar-se o mais depressa — ripostou o velho Suleiman.

— Porquê? Isso não é vida. Porque não hão de saber ler e escrever, ir à escola, trabalhar em qualquer lado, serem tratadas com respeito? São tão capazes como os homens. Olha a prima da Srª Maimouna. Tirou um curso de costura e agora trabalha em casa como costureira. Aprendeu a ler e consegue costurar a partir dessas revistas de costura modernas.

— Ora, lá vens tu com as tuas modernices, Abubacar — continuou Suleiman.

— Não são modernices. Vocês, Salit, não têm mulheres lá no escritório? E não fazem o mesmo trabalho?

— Sim, são da família do chefe. E… a verdade é que até não trabalham mal, quero dizer… bem… despacham as coisas mais depressa, lá isso é… E já que falas na prima da Srª Mamouna, a minha mulher já lá mandou coser uns tecidos e diz que não quer mais ninguém.

— Veem? Então?

— Pode ser, mas não acho bem. Só tive rapazes, mas se tivesse filhas…

— Pensavas de maneira diferente — atalhou rapidamente Abubacar.

— Ai, sim? Tu e as tuas ideias do costume. Se são tão boas como os homens, Abubacar, porque não metes nenhuma na oficina? — perguntou o velho Suleiman num tom desafiador.

— E porque não? Só porque ainda não me apareceu nenhuma.

Nesse momento, a mulher de Aboubacar chegou a correr.

— Aboubacar, desculpa, podes vir depressa para casa? Precisava de falar contigo.

— Aconteceu alguma coisa, Aida?

— Vem depressa. É a tua irmã Miriam.

♦♦♦

Miriam era a irmã mais nova de Aboubacar. Embora com vinte anos menos, era a sua preferida. Sempre insistira em trazê-la para junto dele, mas os pais nunca o permitiram e obrigaram-na a ficar na aldeia e a trabalhar no campo. Um pouco à revelia e com o apoio do irmão, Miriam tinha conseguido frequentar a escola durante três anos, chegando a levar os livros para o campo enquanto guardava as cabras. Tentara ganhar o máximo de tempo que conseguira, mas os pais acabaram por obrigá-la a casar aos dezoito anos com um homem dezanove anos mais velho. Numa família, uma mulher é mais um peso, uma boca a alimentar, e, se não casar, é mal vista por todos.

Fora um casamento infeliz. Miriam tinha de trabalhar no campo, cuidar dos animais e da casa. Era obrigada a entregar ao marido o dinheiro que conseguia juntar com as vendas no mercado, e ele gastava-o todo em cerveja. Bêbedo, humilhava-a e batia-lhe violentamente. Por infelicidade, o primeiro filho que teve foi uma menina, que morreu ao fim de um ano. O marido violentava-a porque queria um rapaz. O segundo filho tornou a ser uma menina que nasceu já morta. Bêbedo, o marido espancou-a e a família passou a desprezá-la ainda mais, obrigando-a a fazer todo o tipo de trabalhos e injuriando-a por não conseguir gerar filhos. Fruto da violência física e psicológica de que era vítima, nunca mais pôde ter filhos. Até que num dia em que o marido, bêbado, a espancara e abalara da aldeia com outra mulher, levando todo o dinheiro que possuíam, Miriam fugiu.

— Bem sabes que a nossa família nunca me aceitará de volta e a do meu marido, então… Nem a quero ver. Desculpa ter aparecido aqui, Aboubacar, mas não tenho dinheiro nenhum nem para onde ir. Só me lembrei de ti. E como sempre quiseste que viesse para Ouaga…

— Mas como conseguiste chegar até aqui? São mais de cem quilómetros!! E olha-me para a tua cara, estás toda pisada. Tens de ir imediatamente ao hospital.

— Estava tão desesperada que saí da aldeia sem pensar. Apanhei alguma fruta pelo caminho até chegar perto da aldeia do Sr. Ibrahim, que me encontrou na estrada. Como vinha ao mercado, trouxe-me na carrinha dele. Foi uma sorte. Importas-te que fique aqui por uns dias? Não quero incomodar nem dar despesa; hei de arranjar trabalho e, logo que possa, mudo-
-me.

— É que nem pensar, Miriam! — interrompeu Aida. — Ficas aqui connosco. Primeiro, vamos curar-te essas feridas, descansas o tempo que for preciso e depois pensamos numa forma de passares a ganhar algum dinheiro para ti. Temos agora uma costureira nova cá no bairro a quem aconteceu o mesmo que a ti. Tem bastante serviço, talvez precise de uma ajudante, e as mulheres têm de se unir. Tu ainda és nova e a vida não acabou, não é, Aboubacar?

— Claro! E desde quando é que a minha irmã mais nova ia andar por aí perdida nesta cidade? Agora que te livraste do teu marido, é aqui que a tua vida vai finalmente começar. E agora vais lavar-te imediatamente e descansar.

— Obrigada, Aboubacar, obrigada, Aida. Muito, muito obrigada. Sinto-me bem melhor e vocês tiraram-me um peso enorme do coração. Vou lavar-me e venho já ajudar-te a preparar o jantar, Aida.

— Não preferes descansar?

— Acho que não. Sinto-me tão aliviada que parece que já nem estou cansada.

— Tu é que sabes. Então, para comemorar, o jantar tem de ser especial. Não é todos os dias que se comemora uma decisão e uma mudança tão importante como a tua. O que há de ser?

— Hum… que tal um estufado de inhame com arroz de tomate e cebolas? Se bem te conheço, Miriam — atalhou Aboubacar — é a tua comida preferida! E voltei a esquecer-me de uma coisa na oficina! O tio Bono trouxe-me umas papaias … que por sinal também são os nossos frutos preferidos! Venho já!

— Muito obrigada! — agradeceu Miriam atirando-se ao pescoço do irmão. — E a ti também, Aida. Nem imaginas a sorte que tens!

Nessa noite, a sobremesa teve de esperar para o dia seguinte: Miriam adormeceu à mesa. Aida e Aboubacar deitaram-na cuidadosamente na cama deles e voltaram para a cozinha.

— Coitada da tua irmã. Acontece a tantas mulheres! Ao menos ela teve a coragem de sair da aldeia.

— Eu sei. Estive sempre à espera deste momento, acreditas?

♦♦♦

Nessa noite, Miriam dormiu pesadamente e só acordou depois da hora do almoço do dia seguinte.

— Meu Deus! — exclamou ao encontrar Aida. — Nem acredito que dormi tanto!

— Como te sentes? Tens a cara toda pisada.

— Estou bem, obrigada. Estou com muito mau aspeto mas não me dói nada. Desta vez não fiquei com golpes. Vou por umas folhas para ajudar a cicatrizar. Aliás, sinto-me tão aliviada, que nem penso na minha cara. Mas acredito que não esteja nada bonita…

— O Aboubacar está na oficina e eu tenho de sair, não sei se queres vir comigo.

— Estive a pensar… Realmente, se a tal costureira precisar de alguém que a ajude… Costurar não é o meu forte, mas faço qualquer coisa. Achas que posso fazer algumas limpezas?

— Espera. Vamos ver primeiro cá no bairro. Também há um restaurante de uma organização holandesa que dá aulas de hotelaria…

— Muito obrigada, Aida. Eu vou ter com o meu irmão.

Miriam passou a fazer companhia ao irmão na oficina e, com o tempo, a dar-lhe uma ajuda. Enchia os pneus, mudava o óleo, afinava os travões. Os amigos de Aboubacar brincavam com ele e a princípio não viam com bons olhos que as suas motas fossem arranjadas por uma mulher. Chegou até a perder alguns clientes. Mas encolhia os ombros e continuava. E Miriam gostava cada vez mais do trabalho. Descobrira a sua vocação!

— Aboubacar — disse certo dia Salit, entrando com a motoreta pela mão. — Desculpa dizer-te isto, mas prefiro que sejas tu a compor a minha mota. Trouxe-ta cá ontem para arranjar, e hoje ia-me enfiando pela barbearia dentro porque me falharam os travões. O Aziz também trouxe a dele e está boa… Não sei o que se está a passar, se é que me percebes. Sabes que gosto do teu trabalho e não queria mudar…

Aboubacar observou a motoreta e coçou a cabeça, embaraçado.

— Peço imensa desculpa — Salit. — Sei muito bem o que se passou. Ontem tivemos muito trabalho e lembro-me que a minha irmã arranjou a do Aziz e eu a tua. Esqueci-me de ver se os travões estavam afinados. A minha irmã nunca se esquece… Lamento imenso. Vou já arranjá-la.

— Hum… foi a tua irmã que tratou a do Aziz? É que ele…

— Sim, sim — respondeu Aboubacar. — Deve ser de família. Ela tem imenso jeito e aprendeu em pouco tempo. Aconteceu alguma coisa à do Aziz? — perguntou preocupado. — Como ela não tem ainda muita experiência…

— Hum… Bem… não. É que… O Aziz disse que a mota dele tinha ficado como nova desde que saiu ontem daqui e anda a espalhar isso pelo mercado. Estou a ver que não vais precisar de nenhum empregado. Ou melhor… até vais, pela publicidade que ele anda a fazer. Fico contente por ti e pela Miriam. Tem outro ar e … outra postura, desde que trabalha contigo, não sei explicar. Soube ontem que a minha prima também está a passar mal com o marido. Ainda é muito nova, também casou à força e o marido trata-a brutalmente. Tenho imensa pena porque ela é muito jovem e bonita. Desde que te conheci que fiquei a pensar nestas coisas e já lhe dei a entender, da última vez que a vi, que podia vir para minha casa. A minha mulher até foi a primeira a falar-lhe. De cada vez que vejo a Miriam pergunto-me porque é que a minha prima não faz o mesmo.

— O que é que eu fiz, Salit? — pergunta Miriam, que vinha a entrar e ouvira a última parte da conversa.

— Mudaste a tua vida! Tenho uma prima que está a passar pelo mesmo que tu passaste e dei-lhe a entender que podia vir para minha casa.

— E fizeste muito bem, Salit. Tenho sabido no mercado que há imensas mulheres a quererem libertar-se. Nem é vir para a cidade, algumas até são de cá. É sair do inferno em que vivem e recomeçarem a viver. Tenho ouvido imensas histórias… Aboubacar, tenho uma proposta para te fazer: lembrei-me de abrirmos uma espécie de escola de mecânica só para mulheres. Conheci duas raparigas que me pediram muito que as ensinasse e se a tua prima quiser, Salit, já tem onde vir aprender. O que é que não falta em Ouagadougou? E no Burkina Faso? Motas, motocicletas e motorizadas. E os mecânicos são sempre precisos. Vais ver, irmão, que vamos poder ajudar imensa gente! E acredita que ainda vamos abrir mais escolas!

— Faz isso Aboubacar, faz! — insistiu Salit — Se for preciso dinheiro para alguma coisa, eu ajudo.

— Obrigado, Salit, mas é claro que a ideia me agrada. Já andava a pensar nisso há algum tempo, mas não tinha pensado em que fosse só para mulheres. Acho que quem não vai gostar da ideia vai ser o tio Suleiman — disse Aboubacar com uma gargalhada. — Não sei o que tem, mas desde domingo que não me fala, só cumprimenta com um ar estranho.

— A sério? — perguntou Salit. — O que é que lhe fizeste? Anda por aí a correr montado na mota como um rapaz! Realmente anda esquisito, nuca o vi conduzir tão rápido! Acreditas que ia virando uma bancada de mangas? Vi eu com os meus olhos!

— Olha, lá vem ele!

— Boa tarte, tio Suleiman! Quer uma cerveja? Já vamos fechar!

— Aa… hum… Aboubacar, Miriam, boa tarde. Não obrigado, tenho de ir para casa. — Tossicou antes de continuar: — E venho entregar-te este dinheiro para pagar o resto da reparação, Miriam. A mota está ótima! — acrescentou num tom entusiasmado, e seguiu.

— Realmente anda esquisito! Mas que dinheiro? Que reparação? Nem cá veio com a mota…

— Eu sei o que se passa — disse Miriam, satisfeita. — Na quarta-feira passada, naquela semana em que tiveste de sair da cidade e eu fiquei sozinha, apareceu aqui na oficina a velha tia Celine, a mulher dele, com a mota. Parece que ele não queria mandá-la arranjar porque tu não estavas. Mas ela precisava que ele lhe fizesse uns recados com urgência. Sabes como ele é teimoso. Insistia em que só tu é que lha podias compor. A tia Celine, que fala muito comigo, e até já chorou quando me contou umas coisas, fartou-se. Aproveitou quando ele estava a dormir e trouxe a mota. Pagou-me metade porque era dinheiro dela… bem sabes que as mulheres não têm muito… Quando ele saiu ao fim da tarde, notou que a mota estava diferente. Ela acabou por contar-lhe e ele zangou-se tanto que não lhe falou durante um dia inteiro. E disse-lhe que não pagava o resto da reparação nem lhe dava dinheiro. Só não estava à espera da coragem da mulher, que disse que não lhe cozinhava enquanto ele a tratasse assim! Como teve de comprar comida fora e tem bastante idade, apanhou uma tal diarreia…e lá acabou por fazer as pazes ao fim do segundo dia, e confessar que a mota nunca tinha andado tão bem, segundo me contou a tia Celine. Agora que está bom de saúde, passa o dia montado nela de um lado para o outro. E o facto de ter vindo pagar o que faltava, foi um bom sinal. Amanhã entrego o dinheiro à tia Celine, quando a encontrar. Não são ricos e de bom grado lho ofereço. Parabéns, tia Celine, temos sempre idade para exigir que nos respeitem!

 

 

In: DeutscheWelle

(Tradução e adaptação)

Ali e a máquina fotográfica

Ali vive em Istambul, uma grande cidade da Turquia. A sua casa fica num prédio antigo, perto da famosa Mesquita Azul. Depois das aulas, Ali vai para casa e senta-se à janela a contemplar os barcos que se fazem ao mar.
— O que estás a fazer? — pergunta-lhe a mãe.
— Estou a fotografar estes barcos — responde Ali.
A mãe olha para o filho e ri.
— A fotografar? Mas como podes tu fotografar, se nem sequer tens máquina?
— Isso sei eu, mãe! Por isso estou a tirar fotografias com a minha cabeça, que é onde as posso ver.
Ali aponta um sítio junto dos olhos e a mãe ri de novo.
— Deixa-te de brincadeiras e vai para a loja do teu pai! — diz ao filho.
O pai de Ali vende legumes e frutas e o rapaz trabalha na loja depois da escola.
— Não te mexas! Fica junto da porta — diz Ali, de repente, quando chega junto do pai.
— Porquê? — pergunta este.
— Quero tirar-te uma fotografia!
O pai sorri.
— Uma fotografia? Primeiro, tens de arranjar uma máquina. Depois, podes tirar-me uma fotografia.
— Compra-me uma máquina, pai! — pede Ali.
O sorriso do pai desvanece-se.
— Não tenho dinheiro para máquinas… — diz, devagar.
Todas as tardes, Ali vai passear na parte velha de Istambul, e observa as casas construídas junto da água. Algumas são muito velhas. Depois, olha para os homens que estão na ponte a pescar. Por fim, dirige o olhar para os barcos. E fotografa tudo com a mente. “Como hei-de arranjar uma máquina?”, pensa. De repente, a resposta surge-lhe. “Já sei, vou trabalhar no mercado!”
Perto da escola de Ali existe um mercado velho, com pequenas lojas onde se compra e vende comida. Todas as tardes, depois da escola, o rapaz dirige-se para lá. Trabalha sempre com um sorriso, carregando os sacos dos clientes. As pessoas gostam dele e dão-lhe algum dinheiro, que Ali logo mete no bolso.
— Um dia vou ter muito dinheiro — diz à mãe. — Depois, compro uma máquina e tiro-te uma fotografia na cozinha.
— Na cozinha não! — diz a mãe. — Tiras-me uma na varanda, com o teu pai.
— Na varanda não! — diz o pai. — Na minha loja.
Uma tarde, Ali carrega um saco pesado para um cliente idoso.
— Está um homem a seguir-nos — diz o velhote. — Conhece-lo?
Ali olha para o homem alto e forte atrás deles e responde:
— Não, não conheço. Não trabalha no mercado.
— Toma bem conta do meu saco. Talvez seja um ladrão! — diz o cliente.
Ali pensa no dinheiro que tem no bolso e sugere:
— Vamos caminhar mais depressa.
— Eu não posso andar mais depressa. Tu sim, que és novo! — queixa-se o velho.
De repente, o homem alto e forte agarra no saco que Ali transporta e desata a fugir. O rapaz vai atrás dele, mas o ladrão agride-o. Ali cai e o dinheiro sai-lhe do bolso. O homem pousa o saco, pega no dinheiro e foge. Ali devolve o saco ao velhote.
— Muito obrigado. És um rapaz muito bondoso — agradece o cliente.
Ali fica triste, mas não fala do dinheiro que perdeu. Nessa noite, nem sequer conta o sucedido aos pais. “Posso sempre recomeçar”, pensa.No dia seguinte, está de novo no mercado, à espera de trabalho, no meio da algazarra. De repente, uma senhora de idade vem ter com ele e pede:
— Podes carregar estes dois sacos para mim? Vivo junto da estátua de Ataturk.
Enquanto Ali transporta os sacos, a senhora pergunta:
— São muito pesados?
— Não para mim, que sou forte! — responde Ali.
Chegam, por fim, junto da estátua de Ataturk. A senhora comenta:
— Lembro-me de Ataturk, porque foi um homem muito importante para a Turquia.
— Posso tirar-lhe uma fotografia junto da estátua — oferece-se Ali.
— E onde está a tua máquina fotográfica? — admira-se ela.
— Não tenho — diz Ali.
A senhora olha para ele e sorri.
— Tira lá a minha fotografia sem máquina. Mas primeiro, deixa-me arranjar o cabelo.
Chegam à rua onde a cliente vive e o rapaz carrega os sacos até ao andar dela. É um andar espaçoso, cheio de fotografias.
— Quanto dinheiro queres? — pergunta a senhora.
— Quanto dinheiro me quer dar? — returque ele.
— Senta-te e espera — pede a cliente.
Dirige-se a um pequeno quarto e volta com uma máquina fotográfica nas mãos.
— Esta foi a primeira máquina do meu filho. Fica com ela — oferece.
Ali fixa a máquina durante um bom bocado. Por fim, pega nela, mas logo a devolve.
— É uma máquina muito bonita, mas não posso ficar com ela.
A senhora pega na mão do rapaz e coloca a máquina nela.
— O meu filho já não a quer, porque agora tem uma nova.
— Como posso agradecer-lhe? — pergunta Ali.
— Volta cá um dia e tira-me uma fotografia. Uma fotografia a sério. E, agora, aqui tens o dinheiro de hoje.
— Não posso aceitar dinheiro algum! Mas posso transportar os seus sacos outra vez — diz Ali.
— És um bom rapaz. Lembra-te do meu nome: Sra. Yildiz.
— Não me esquecerei, Sra. Yildiz.
— Adeus, Ali. Tira boas fotografias com a máquina do meu filho.
Ali corre para casa e conta à mãe o que aconteceu.
— A máquina funciona? — quer saber a mãe.
— Claro que funciona. Vou agora mesmo tirar-te uma fotografia.
— Mas nem tem rolo, filho.
A mãe dá-lhe algum dinheiro e diz:
— Vai comprar um rolo que eu vou comprar um vestido novo. Depois, tiras-me uma fotografia.
— Obrigado, mãe! Mas eu quero comprar rolos com o meu dinheiro e não com o teu.

 

♦♦♦♦

E Ali continua a trabalhar todos os dias no mercado, depois das aulas, e chega tarde a casa. “Esta vida é bem difícil”, pensa. “As pessoas trabalham muito e recebem pouco.” Mas chega o dia em que já tem dinheiro suficiente para comprar um rolo. “Agora já posso tirar fotografias a sério”, diz para consigo. Lembra-se da Sra. Yildiz e vai até casa dela. Quando ela abre a porta e o vê, fica muito contente. Ali diz:
— Quero tirar-lhe uma fotografia.
Vão até à cozinha, onde um homem alto bebe café.
— Este é o meu filho Yusuf. Tira-nos uma fotografia aos dois. Senta-te junto de mim, Yusuf.
— Sorriam, por favor — pede Ali.
— O Yusuf trabalha num jornal e pode ensinar-te a tirar fotografias — diz a Sra. Yildiz.
Ali fita Yusuf e pergunta:
— Pode? É que eu quero aprender a tirar boas fotografias.
Yusuf sorri.
— Tira algumas fotografias por aí e depois aparece no jornal a mostrar-mas.
— Vou tirar o máximo que puder. Tenho-as todas na minha cabeça — diz o rapaz.
Ali passeia pelas ruas de Istambul que, de repente, lhe parece uma cidade muito bonita. Tira fotografias de pontes, de barcos e de mesquitas antigas. Também tira fotografias de pessoas nas ruas e nas lojas. Um dia, decide ir até ao jornal falar com Yusuf. Yusuf contempla as fotografias e diz:
— Bem, não estão mal…
— Não estão mal? — admira-se Ali.
— Não, as tuas fotografias não estão mal.
— Não estão boas? — insiste o rapaz.
— Algumas estão, mas outras não — diz, sincero, Yusuf.
Ali fica aborrecido e pede as fotografias de volta. Yusuf não percebe a atitude do rapaz. Este regressa a casa e conta à mãe o que aconteceu.
— Não foste muito inteligente, filho. Não és propriamente um fotógrafo famoso…
Ali sente-se triste consigo mesmo.
— Às vezes, abro a boca e falo sem pensar.
— Vai ter com Yusuf e pede-lhe desculpa.
— Agora não me sinto capaz. Estou zangado.
Ali deambula pelas ruas e vai-se perguntando: “Porque me afastei de Yusuf? Não foi uma atitude correcta. Porque não pensei primeiro? Porque…?”
De repente, repara numa pequena loja de fotografia. Entra e vê um idoso sentado a uma mesa. O nome dele é Selim e tem uma cara prazenteira.
— Gosto muito da sua loja. Tem máquinas bonitas. Queria trabalhar consigo — diz Ali.
— Mas eu não posso pagar-te — explica o velho.
— Não quero dinheiro. Quero aprender a tirar fotografias. Por favor, veja as minhas — pede o rapaz.
Selim observa-as e comenta:
— Cada um de nós vê através dos seus olhos. Mas os bons fotógrafos vêem as coisas através da lente da máquina.
E Ali começa a sua aprendizagem. Primeiro tira fotografias de pessoas. Depois fotografa portas e janelas.
— As portas e as janelas também têm vida — explica Selim.
Na cidade, há sempre muitas crianças a trabalhar nas lojas, ou a vender fruta, bebidas frescas e jornais nas ruas. Essas crianças sorriem com a cara mas não com os olhos. Ali mostra as fotografias a Selim.
— Gosta delas? — pergunta.
— Gosto. Estás a aprender. Estás a aprender a fazer fotografias.
— Quando poderei vendê-las a um jornal? — quer saber o rapaz.
— Espera… — aconselha Selim.
Ali continua a trabalhar no mercado depois das aulas, porque precisa de rolos para a máquina. E também aproveita para tirar fotografias das pessoas que frequentam o mercado. Numa manhã de sábado, bem cedo, vê algumas crianças em cima duma ponte. Têm olhos grandes e tristes e estão a pescar. Ali fotografa-as. Depois, vai até ao andar de Selim, na parte velha da cidade, e mostra-lhe a fotografia das crianças na ponte. Selim contempla-a durante muito tempo.
— Isto sim! Estás a aprender depressa.
— O senhor é muito meu amigo. É um autêntico professor!
— Gosto de te ensinar. És como um filho para mim — diz o idoso.

♦♦♦♦

Certo dia, Ali vê a Sra. Yildiz, mas afasta-se rapidamente.
— Ali, Ali, porque foges? — pergunta ela.
Ali detém-se.
— Eu sou muito orgulhoso… O Yusuf contou-lhe o que aconteceu?
E Ali relata o sucedido no jornal…
— Estou muito arrependido!
— Não sei do que estás a falar. Só sei que uma das tuas fotografias vem hoje no jornal.
— Uma fotografia minha no jornal? Qual delas?
— Uma com duas crianças numa ponte a pescar um grande peixe.
— Estou tão contente, Sra. Yildiz! — diz Ali, e ri, satisfeito. — Posso levar os seus sacos?
— Não, obrigada. Vai para casa.
O rapaz corre para a loja de Selim.
— A minha fotografia saiu no jornal!
— Saiu, pois. Ora vê só — diz Selim, mostrando-lhe o jornal.
— Mas… não percebo. Como foi ela aí parar? Foi o senhor que a mostrou ao Yusuf!
Selim sorri e diz:
— Mas olha que não podes parar de aprender!
— Tem toda a razão! — concorda Ali.
— Amanhã é um dia muito importante para ti — continua Selim.
— Não percebo — diz Ali.
— O jornal tem uma vaga para um estágio de fotografia. E o estagiário és tu. Amanhã começas um novo trabalho!
E desatam os dois a rir.

Raymond Pizante
Ali and his camera
Essex, Penguin Books, 2000
(Tradução e adaptação)

O elefante acorrentado – Jorge Bucay

Jorge Bucay
Deixa-me que te conte. Os contos que me ensinaram a viver
Lisboa, Pergaminho, 2004

O elefante acorrentado

— Não consigo — disse-lhe. — Não consigo!

— Tens a certeza? — perguntou-me ele.

— Tenho! O que eu mais gostava era de conseguir sentar-me à frente dela e dizer-lhe o que sinto… Mas sei que não sou capaz.

O gordo sentou-se de pernas cruzadas à Buda, naqueles horríveis cadeirões azuis do seu consultório. Sorriu, fitou-me olhos nos olhos e, baixando a voz como fazia sempre que queria que o escutassem com atenção, disse-me:

— Deixa-me que te conte…

E sem esperar pela minha aprovação, o Jorge começou a contar.

Quando eu era pequeno, adorava o circo e aquilo de que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e força descomunais… Mas, depois da sua actuação e pouco antes de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das suas patas.

No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me óbvio que um ani­mal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.

O mistério continua a parecer-me evidente.

O que é que o prende, então?

Porque é que não foge?

Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante. Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.

Fiz, então, a pergunta óbvia:

— Se é amestrado, porque é que o acorrentam?

Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante e da estaca e só o recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito essa pergunta.

Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:

O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.

Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele.

Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro… Até que, um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino.

Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge porque, coitado, pensa que não é capaz de o fazer.

Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer.

E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação.

Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força…

— E é assim a vida, Damião. Todos somos um pouco como o elefante do circo: seguimos pela vida fora atados a centenas de estacas que nos coarctam a liberdade.

Vivemos a pensar que «não somos capazes» de fazer montes de coisas, simplesmente porque uma vez, há muito tempo, quando éramos pequenos, tentámos e não conseguimos.

Fizemos, então, o mesmo que o elefante e gravámos na nossa memória esta mensagem: «Não consigo, não consigo e nunca hei-de conseguir.»

Crescemos com esta mensagem que impusemos a nós mesmos e, por isso, nunca mais tentámos libertar-nos da estaca.

Quando, por vezes, sentimos as grilhetas e as abanamos, olhamos de relance para a estaca e pensamos:

Não consigo e nunca hei-de conseguir.

 O Jorge fez uma longa pausa. Depois, aproximou-se, sentou-se no chão à minha frente e prosseguiu:

— É isto que se passa contigo, Damião. Vives condicionado pela lembrança de um Damião que já não existe, que não foi capaz.

»A única maneira de saberes se és capaz é tentando novamente, de corpo e alma… e com toda a forca do teu coração!

Minha rica lã – Ant. Torrado

Minha rica lã

Esta ovelha está muito triste.

Veio o tosquiador e rape-rape-rape deixou-a sem pêlo.

Ela que tanto se orgulhava dos seus caracóis, ela tão cheia de si como uma senhora de casaco de peles, ela tão pesada e repolhuda, ficar assim por metade, nuazinha, envergonhada e tiritante, era caso de meter dó.

— Quero a minha lã — balia a ovelha tosquiada. Foi ter com o pastor.

— Eu não tenho culpa — disse-lhe ele. — Quem arrecadou a tua lã foi o cardador.

A ovelha foi ter com o cardador que se encarrega de limpar, separar e desfibrar a lã tosquiada.

— Quero a minha lã — exigiu a ovelha.

— Já não é da minha conta — disse o cardador. — A fiandeira levou toda a cardação.

A ovelha foi ter com a fiandeira que torce os fios, de maneira a que fiquem consistentes e de espessura uniforme.

— Quero a minha lã — exigiu a ovelha.

— Já não a tenho comigo — disse a fiandeira. — O tecelão levou o novelo todo.

A ovelha foi ter com o tecelão que cruza e entrelaça os fios no tear, para formar o tecido.

— Quero a minha lã — exigiu a ovelha.

— Já não está nas minhas mãos — disse o tecelão. — O dono da fábrica de confecções levou a peça de fazenda com ele.

A ovelha foi ter à fábrica de confecções, onde são cortadas, moldadas e cosidas as fazendas, vindas da fábrica de tecelagem.

— Quero a minha lã — exigiu a ovelha ao capataz da fábrica de confecções.

— Já não é comigo — disse o capataz. — As costureiras fizeram casacos de lã, que os lojistas compraram.

A ovelha dera voltas e voltas. Estava cansada. Perdera muito tempo, à procura da sua rica lã. De um lado para outro demorara meses, na sua busca. O que uma ovelha passa, quando se lhe mete uma ideia na cabe-ça. Mas não era hora de desistir.

Foi ter a uma loja de roupas.

Atendeu-a um caixeiro muito delicado:

— Vossa Excelência o que deseja?

— Quero a minha lã — exigiu a ovelha.

— Vossa Excelência deseja a lã da mesma cor daquela que usa ou tem outra preferência? — perguntou o caixeiro.

Só então a ovelha, ao passar os olhos por um dos espelhos da loja, é que reparou em si. Estava toda coberta de lã, tal e qual como antes de ter sido tosquiada.

— Afinal já estou servida, obrigada — disse a ovelha, mais tranquila. E saiu da loja com o seu próprio carrego de lã.

António Torrado
Trinta por uma linha
Porto, Civilização Editora, 2008

Flor de Água – Marcelino Truong

Flor de Água

Havia outrora, na região vietnamita de Anam, um belo porto onde as embarcações vinham abrigar-se após as longas travessias do Mar da China.

Numa das ruelas do porto, situava-se a modesta loja de uma família de artesãos, na qual estes confeccionavam lampiões multicolores há já muitas gerações.

Nela viviam o jovem Oceano, a sua mulher, Reflexo da Lua, e a mãe desta, Dona Ameixa. Viviam os três em harmonia e apenas uma nuvem toldava o céu da sua felicidade.

Casados há bastante tempo, o jovem casal sonhava com um bebé de quem cuidar. E Dona Ameixa ansiava por conhecer as alegrias de ser avó. Porém, a criança tardava…

A afeição desta humilde gente recaía, então, num pássaro cor de fuligem, um animal quase mágico. Chamava-se Glu-Glu, porque imitava com perfeição o gorgolejar de Oceano quando este lavava os dentes.

Quando lhe apetecia, Glu-Glu falava. Ou seja, repetia palavras e ruídos que ouvia em seu redor. E diga-se de passagem que conhecia algumas palavras bastante desagradáveis: “Estúpida!”, “Palerma!”, “Gordo!” e “Cocó!”

Certa manhã, Reflexo de Lua pôs ao ombro uma canga carregada de lampiões que ia vender no mercado da aldeia vizinha. Glu-Glu, que gostava de passear, acompanhou-a, repetindo as suas palavras favoritas sempre que cruzava alguém na estrada. Todos se riam.

Durante a sua caminhada, Reflexo de Lua olhava as jovens mães com pena. À saída do porto, parou diante de um pequeno altar, dedicado a Quan Âm, a Deusa Celeste. Com pauzinhos de incenso entre as mãos unidas, murmurou esta oração: “Suplico-te, Deusa Celeste, concede-nos a alegria de acolher uma criança no nosso lar!” Enquanto murmurava estas palavras, o incenso ascendia ao céu em espirais perfumadas…

No mercado, havia muita gente. Os lampiões de Reflexo de Lua vendiam-se bem. Glu-Glu fazia o seu número e a bolsa da dona enchia-se depressa.

A dois passos de ali, dois malfeitores planeavam um golpe, sentados num banco da vendedeira de chá verde.

— Já viste a massa que ela juntou? E o que podemos ganhar com aquele pássaro esperto? — dizia um.

— Vamos preparar-lhe uma bela surpresa — sugeriu o outro.

Quando Reflexo de Lua empreendeu o caminho de regresso a casa, já a lua estendia o seu leque de lantejoulas sobre o mar.

— Vamos depressa! — disse a Glu-Glu, que repetiu “Vamos depressa, palerma!”

No meio do caminho deserto, duas sombras precipitaram-se sobre a mulher e atiraram-na ao chão. Um dos homens roubou-lhe a bolsa, enquanto o outro enfiava o pássaro num saco de juta. Uma voz metálica ergueu-se do fundo do saco bradando “Seu cocó!”

Os dois ladrões desapareceram na noite. Reflexo de Lua levantou-se e viu a gaiola vazia.

— Esperem! Levem ao menos a gaiola! O pássaro vai sentir-se mal dentro do saco!

Mas os bandidos fizeram ouvidos de mercador e mesmo a voz metálica de Glu-Glu deixou de ouvir-se.

A vida continuou o seu ritmo na loja. Oceano e Dona Ameixa ficaram felizes por ver que Reflexo de Lua não tinha sido ferida, mas a loja estava demasiado calma sem o incessante palrar de Glu-Glu…

Algumas semanas mais tarde, Oceano e Reflexo de Lua viajaram até à velha cidade imperial, Hué. Junto do Rio dos Perfumes, ficava o pagode da Deusa Celeste, que operava grandes milagres. Quem sabe se lhes concederia o desejo de um filho…

Enquanto isto, numa velha casa arruinada, no meio dos arrozais, os dois malfeitores estavam exasperados com o pássaro e gritavam insultos um ao outro, que Glu-Glu se encarregava de repetir, o que aumentava ainda mais a confusão.

Depois de uma viagem de vários dias, o jovem casal, envolto numa nuvem de incenso, pôde enfim suplicar:

— Deusa cheia de bondade, concede-nos a felicidade de acolher uma criança na nossa humilde casa.

E a Deusa pareceu sorrir para eles…

Deixaram o pagode, cheios da esperança que o sorriso da Deusa lhes transmitira. No caminho de regresso a casa, ouviram uma voz familiar que dizia:

— Cabeça de burro! Estúpido! Palerma! Gordo!

As exclamações vinham de dentro de uma loja de pássaros. Um velho barbudo gesticulava e ameaçava a ave:

— Ou te calas ou prego-te o bico!

O casal aproximou-se e Glu-Glu, cheio de alegria porque os reconhecera, saltou no poleiro.

Ao ver que o casal se interessava pelo pássaro, o velho exclamou:

— Como ele parece gostar de vós, levai-o convosco. É um favor que me fazeis…

O vendedor abriu a gaiola e deu o animal a Oceano. Tinha-o comprado a dois meliantes que tinham pressa em desembaraçar-se dele. Como os compreendia agora!

Os esposos agradeceram e libertaram Glu-Glu, que lhes fez uma festa.

Alguns meses após a peregrinação ao santuário, o ventre de Reflexo de Lua ficou redondinho como um lampião. O marido e a mãe cumularam-na de atenções. Até o pássaro se calava sempre que percebia que ela precisava de repousar.

Quando caiu a chuva das primeiras monções, nasceu uma menina na loja dos lampiões. A Dona Ameixa coube a honra de escolher um nome para a criança.

— Esta criança foi-nos dada pelo céu como se fosse uma flor das monções. Chamar-lhe-emos Flor de Água. Louvemos a Deusa Celeste pela sua infinita bondade!

— Flor de Água! Flor de Água! — repetiu Glu-Glu, encantado.

E desde esse dia que todos viveram felizes no meio dos lampiões e das lanternas.

Marcelino Truong
Fleur d’eau
Paris, Gautier-Languereau, 2003
(Tradução e adaptação)

Chico

Chico

Chico

Chico vive numa aldeia perdida num dos muitos países de África. Podia ser em Angola, no Senegal ou no Ruanda. Podia chamar-se Chico, Abuabar ou N’gouda. Há muitos Chicos em África. Chicos de olhos brilhantes e pés descalços, com a cabeça povoada de sonhos, com vontade de ter um futuro para viver.

Como quase todos os seus companheiros, Chico levanta-se bem cedinho pela manhã. Ajuda a mãe a tratar das duas cabrinhas, Flor e Kenchú, e só depois parte para a escola. Chico gosta particularmente de Flor. Foi ele quem lhe pôs o nome, no mesmo dia em que ela chegou à palhota, apertada nos braços fortes do pai, ainda mal se segurando nas patinhas frágeis, e a berrar pela mãe. Fora um vizinho que lha dera, como forma de pagar a ajuda no arranjo da cabana.

Na primeira noite, Flor berrou todo o tempo a chamar pela mãe e nem deixava que Kenchú a tentasse acalmar, lambendo-a. Deitado na sua esteira, Chico não conseguia adormecer. Entendia tão bem a cabrinha! O pai dele arranjara trabalho longe, lá na cidade, e só podia vir a casa de quinze em quinze dias. Às vezes, para fazer mais algum dinheiro, ficava fora mais tempo. Quando chegava a hora de regressar à cidade, o pai dizia-lhe que se portasse como o chefe da casa e que devia obedecer à mãe. Como se fosse preciso dizer-lho! Ele bem sabia que a mãe, com o trabalho na fazenda do Sr. Macedo, com os gémeos de três anos e Linita, de oito, não podia fazer tudo, e precisava da ajuda dele.

De todas as vezes que o pai partia, Chico ficava triste o resto do dia, mas depois passava. Quando a saudade lhe enchia o peito até cima e parecia querer saltar pelos olhos, apertava na mão com muita força o seixo que o pai lhe dera naquela tarde em que Chico pescara o maior peixe da sua vida. O pai explicara-lhe que tinha arranjado na cidade um bom trabalho, mas que ia deixar de poder vê-los todos os dias. Depois, metera a mão na água e tirara dois seixos, os mais bonitos que Chico alguma vez vira, e colocou-lhe um na palma da mão.

— Quando tiveres muitas saudades minhas, apertas com força esta pedrinha. A tua saudade vai passar para a minha pedra e eu vou recebê-la e tu vais sentir-te acompanhado.

Em certas ocasiões, as saudades eram tantas que acabavam por conseguir irromper para fora e duas lágrimas teimosas, quentes e grossas, deslizavam suavemente pela face castanha-escura de Chico. Ah, como ele compreendia a cabrinha malhada com a manchinha branca na testa! Esgueirou-se para fora da palhota sem acordar os pais e os irmãos que dormiam, saiu para a noite quente e húmida e entrou na cabana dos animais. Passou a noite inteira deitado ao lado de Flor, que se acalmou e acabou por adormecer com a cabeça poisada no peito de Chico. No dia seguinte, já aceitou de bom grado o leite que Kenchú lhe oferecia.

Os pais estranharam a mudança mas, durante algum tempo, a causa dessa transformação ficou um segredo entre Chico, Flor e Kenchú. Só depois de ordenhadas as cabras e de lhes ter deitado de comer, é que Chico saía para a escola. À saída da aldeia encontrava-se com Djimbu e Mkembé, os seus dois melhores amigos, e juntos faziam o caminho até à escola das Missões.

Ir à escola era o que Chico mais gostava. O seu maior sonho, já segredado para dentro das orelhas de Flor e contado ao pai, durante uma tarde de pesca, era, um dia, poder ensinar outros meninos como ele a ler e a escrever. E haveria de trabalhar tanto, que iria até conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta novinha para os irmãos, igual a uma que vira um dia. Bem, do que ele gostava mesmo, mesmo, era de um dia poder ter um carro como o do Sr. Macedo, o dono da fazenda onde a mãe às vezes ia trabalhar.

Mas esse era o seu maior segredo e ainda nem se atrevera a contar a ninguém, nem mesmo a Flor. Claro que, se o contasse a Djimbu ou a Mkembé, eles também iam querer, e deixava de ser um desejo só dele… De cada vez que o Sr. Macedo vinha à casa grande, somente de tempos a tempos, Chico ficava parado no caminho a observar o grande carro branco e brilhante, tão brilhante que, quando o sol cintilava nos vidros, até fazia doer os olhos, e assim ficava perdido no seu segredo.

Ao chegar à escola, Chico notou um alvoroço desacostumado. Alguns homens em manga de camisa transportavam caixas para dentro do edifício da escola. Pareciam todos muito bem dispostos, e até o Palhinhas, o cão acastanhado do professor, soltava latidos alegres e abanava a cauda, bem disposto. Chico, Djimbu e Mkembé estugaram o passo. Que confusão! Quando a velha furgoneta partiu, deixando a velha escola atafulhada de caixas, sentaram-se, de pernas cruzadas no chão e o professor deu início à abertura das caixas.

Era uma encomenda vinda da Europa com uma oferta de material para a escola. Perante o olhar fascinado das crianças, o professor foi retirando, com largos gestos teatrais mas sinceros, folhas soltas, restos de cadernos, cadernos e blocos novos e usados. Chico nem queria acreditar! Aquele material podia não ser novo, mas para eles isso não tinha a menor importância e era-lhes muitíssimo útil. Quem o enviara parecia adivinhar exactamente aquilo de que estavam a precisar!

O professor continuou a retirar lápis, lápis novos e usados, restos de lápis, lápis de cor – que bonitas as cores! – canetas – eram tão poucas as que lhes chegavam à escola! – borrachas que apagavam o que o lápis escrevia. Mas o melhor de tudo vinha no último caixote… Quando o professor o abriu, o rosto iluminou-se num sorriso. Muito lentamente, como um mágico que tira um coelho da cartola, o professor foi erguendo o braço. As crianças, mortas de curiosidade e com os olhos a brilhar, sustinham a respiração. O professor mostrou…

Livros!! Livros com imagens cheias de cor! Chico sentiu o coração a bater mais rápido. Parecia-lhe que estava a viver um sonho e só tinha medo de que a mãe o acordasse naquele momento.

Livros! Chico era capaz de ficar horas a fio mergulhado e perdido nas páginas de um livro. Ainda não tinha lido muitos. Só três dos meros vinte que constituíam a magra biblioteca da escola. Podia ser muito reduzida, mas os meninos achavam-se importantes por os terem e manuseavam-nos carinhosamente e com muito cuidado. Chico tinha lido os três mesmo até ao fim, e tantas, tantas vezes, até saber as histórias de cor e poder contá-las à noite, em volta do lume, à mãe, ao pai e aos irmãozinhos, que o escutavam com os grandes olhos castanhos muito abertos de espanto e com a respiração suspensa. Se Chico pudesse, levaria um daqueles para casa para lhos ler. Ficariam certamente ainda mais orgulhosos dele. Se algum dia conseguisse ganhar dinheiro, haveria de poupar até conseguir juntar o suficiente para comprar um grande livro de histórias ou de aventuras para ler aos irmãos. O maior e o mais grosso que houvesse à venda.

Os pensamentos de Chico foram interrompidos pela passagem do professor. Já tinha partido os lápis em pedaços mais pequeninos, que distribuía naquele momento pelos alunos. Cada um ia encaixar o seu pedacinho de lápis numa caninha ou num pau para conseguir aproveitá-lo até ao fim. Tinham autorização para levar o material para casa, mas ninguém o levava com medo de perder as preciosas folhas de papel ou os lápis.

Chico pegou no seu, como quem recebe em mãos uma relíquia ou um tesouro. Não, hoje ia ter muito cuidado. Da última vez que preparara o lápis, no preciso momento em que estava a cortar a cana, o Sr. Macedo apareceu no seu carro brilhante, a apitar a uma gazela que se atravessara no caminho. Por momentos, Chico esqueceu tudo o que estava a fazer, imaginando-se sentado nos bancos macios, por trás do volante, com o vento a acariciar-lhe a face, e a apitar a empalas, zebras e macacos. Zás! Deixou cair o braço e cortou o bico do lápis, que, se já era pequeno, ainda mais reduzido ficou.

Que tristeza! Até deu pontapés no velho baobá que se erguia à saída da cabana, de tão furioso que ficou. Porque é que o Sr. Macedo tinha de aparecer precisamente naquele momento? Por causa daquele carro enfeitiçado, já não teve lápis para escrever ao pai – o encarregado da fábrica lia as cartas aos empregados – por aquela altura em que esteve muito tempo sem vir a casa. Não, desta vez ia estar com mil olhos. Nem que passassem dois carros a apitar mesmo ao lado dele, ele ia ceder à tentação de olhar!

Ao regressar a casa, Chico apertava com força o seixinho do rio Tinha tantas novidades para contar em casa! E tanta coisa para escrever ao pai! Queria dizer-lhe que, da próxima vez que viesse a casa, ele, Chico, iria ter novas histórias para contar à noite, junto ao fogo.

I. Birnbaum

O Baile das Flores

O Baile das Flores

— Hoje vou ao baile das flores — anunciou o repolho. — Quem quer vir comigo?

— Ao baile das flores? — sussurrou a cebola, horrorizada. — Para que é que temos o nosso Baile da Salada Russa? É muito mais divertido!

— Tu ficas bem entre iguais — disse a alface. — O teu lugar é aqui e tudo mantém a sua devida ordem.

O pepino anuiu sabiamente com a cabeça.

— Acautelai-vos com as flores do jardim do outro lado da cerca — continuou a alface. — Andam de nariz levantado e olham-nos de cima para baixo. Não passam de ervas sentadas em vasos!

— Não queremos ter nada a ver com elas — disseram as ervilhas. Um arrepio percorreu-lhes as vagens e tilintaram, venenosas:

— Aquelas perfumadas da horta não passam de umas campainhas de enfeite…

— Mas o que é que vocês todos têm contra as flores? — suspirou o repolho tristemente. — Eu gostava muito de ir ao baile delas mas, sozinho, não me atrevo.

— Eu não tenho nada contra as flores. Só têm um aspecto diferente do nosso e às vezes não cheiram tão bem como nós — disse a cenoura pensativa. E calou-se por um momento.

— Sabes que mais? Também vou contigo — decidiu, com um estremecimento da raiz à ponta das folhas.

— Óptimo!

O repolho limpou as folhas e enfeitou-se com uma peninha. A cenoura encontrou uma linda máscara para si.

— Mas que bonitos que vocês estão! — elogiaram os rabanetes e, de repente, deixaram de ter caras coradas e alegres.

O repolho empertigou-se e ofereceu à cenoura um braço forte.

— A menina vem?

Ela acenou com a cabeça, animada, e, de pé leve, deixaram a horta.

No baile, a animação já tinha começado. As flores tinham pedido ajuda ao galo, às galinhas e ao salgueiro. Os grilos cantavam com afinco e os pardais chilreavam ritmos quentes. A água espumava e borbulhava. Alguém tinha aberto a pipa da água da chuva e o escaravelho servia-a aos convidados.

Sentado à entrada, o cão de guarda meneava a cabeça. — Os convidados já estão um bocadinho tocados!…

Repolho e cenoura passeavam pelo baile e iam cumprimentando à direita e à esquerda.

— Quem são estes? — cochichava um cravo a uma tulipa mais velha.

Esta olhou por cima dos óculos e torceu o nariz.

— Legumes, diria eu…

O cravo ficou sem poder respirar e coçava as pétalas, atónito.

— Mas que horror! — exclamou. — Legumes crus no nosso baile. Que indecência!

— Mas o que é que eles têm de vir aqui fazer? Foram ao menos convidados? — queria saber uma rosa.

— Mas que gente tão simplória, não acha, minha querida?

O rosmaninho fez uma vénia perfeita em frente da rosa e levou-a para a pista de dança. Ela ainda era jovem e vermelha.

— Devíamos pô-los daqui para fora. Onde é que já se viu, legumes desconhecidos no nosso baile! — a rosa canina endireitava-se, pronta a picar. — Que gentinha miserável, que ervas insignificantes!

— Nem mais! Não passam de mergulhadores de sopa sem graça, e de pastéis
mal-cheirosos — um malmequer arrepiava-se todo, já meio enjoado.
O repolho ouvia o falatório e os cochichos, e reparara como as rosas se encolhiam, os cravos tremiam de indignação e como um amor-perfeito tivera até um ataque de soluços.

— Parece eles não gostam de nós — disse à cenoura.

— É pena. A música deles é tão bonita — respondeu a cenoura, sonhadora. Cheirou o ar à sua volta. — E há um perfume no ar. É fantástico!

Pensou um pouco.

— Fizemos-lhes algum mal? — perguntou ao repolho.

— Não. Fizeram-nos eles algum mal? — perguntou ele.

— Não — respondeu a cenoura.

— Então pronto, ninguém tem razões para estar zangado.

O repolho sentiu-se mais tranquilo e confiante. Compôs a pena e fez uma vénia à cenoura.

— Estou tão só, menina — disse. — Dá-me a honra?

A cenoura sentiu-se feliz. A noite estava morna, a luz era suave e os pirilampos estavam bem-dispostos. A lua rolou no céu e apareceram estrelas, curiosas. Era uma noite perfeita.

A cenoura piscou-lhe um olho através da máscara. — Será um prazer — disse, estendendo-lhe uma folha delicada.

Misturaram-se com os bailarinos. Um gladíolo recuou quando os viu, e chegaram a pisar os pés de uma dália.

— Se ao menos fossem ervas daninhas — suspirou uma glicínia — ainda floriam quase como nós — mas calou-se, admirada.

O repolho tinha agarrado a cenoura pela cintura e dançavam uma animada rumba-feijoca. Em seguida, deslizaram um maravilhoso tango-pepino e, por fim, saltaram ainda um elegante cha-cha-cha-piri-piri. A cenoura ia ficando sem fôlego, mas seguiu-o corajosamente e não caiu uma única vez. Os dois formavam um par bonito de se ver e as flores aplaudiram, a contra-gosto.

Depois de ver isto, o lírio ousou por fim dirigir-se à cenoura e o repolho convidou uma margarida para dançar. Tocou-se uma valsa encantadora. Depois, a cenoura dançou um galope com um manjerico e o repolho foi buscar a gerbera para uma animada polca.

Foi uma bela noite.

Todos puderam conversar, conhecer-se e cheirar-se.

— Nós vamos convidar-vos para a nossa Salada Russa — prometeu o repolho ao despedir-se.

— E vocês voltam no próximo baile, não é? — perguntou o lírio diligente, que tinha deitado uns olhinhos à cenoura.

Os dois entraram em casa em bicos de pés. Estavam felizes, muito cansados e não queriam acordar ninguém.

Quando o repolho estava quase a adormecer murmurou:

— Quem diria? Tenho de escrever a história desta noite para nunca a esquecer.

— E eu desenho-te algumas imagens — sussurrou a cenoura — e ficamos com um livro.

Os olhos fecharam-se-lhe. — E um dia mais tarde havemos de lê-lo aos nossos netos.

E começou a ressonar baixinho.

Sigrid Laube; Silke Leffler
Der Blumenball
Wien, Annette Betz Verlag, 2005
Texto adaptado

Eu, sozinho, no Fim do Mundo

Eu, sozinho, no Fim do Mundo

Eu vivia sozinho no Fim do Mundo.
Os dias decorriam devagar e bem. Procurava tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Limpava rochas e encontrava fósseis. Reconstituía o esqueleto de monstros enormes com cordel. Jogava à bola até cair de cansaço. Sentava-me e lia. Gostava de ouvir o vento soprar através dos pinheiros eriçados, cujos ramos ondulavam no azul do céu. Comia biscoitos salgados e cartilagens. Ao sol-pôr, tocava melodias para a minha mula ouvir.
Em noites de tempestade, gostava de ficar na minha cabana. Aconchegava-me junto ao fogão e ouvia a chuva e a trovoada. Via os animais de longas caudas, cinco patas, ou bocas beijoqueiras, enfrentarem o trovão. Também nunca tive medo. Adormecia ao som dos seus grunhidos, que mais pareciam barulhos de canalização. Sabia que, de manhã, não haveria vestígios da chuva, excepto um pequeno orvalho nas árvores que ficavam junto dos rochedos desolados. Sentia-me feliz, sozinho, no Fim do Mundo.
Até um dia. Nesse dia, estava eu sentado de cabeça para baixo para que o meu cabelo ficasse completamente de pé, quando vi um homem estranho. Tinha pernas altas, um chapéu de aba larga e uma barba circular. Os seus óculos reflectiam as nuvens.
Montou um cavalete. Tirou um pincel da bota. Pintou o céu e o pinheiro mais solitário. E disse, numa voz que parecia a lã de um carneiro:
— Chamo-me Constantino Brilho e sou visionário profissional.
Olhou-me de alto a baixo e continuou:
— Rapaz, o que fazes o dia inteiro no Fim do Mundo?
— Muitas coisas — respondi.
E contei-lhe dos assobios, do vento e dos pinheiros.
— Só isso? — perguntou, com um ar aborrecido. — Não te divertes? Não tens amigos?
Olhei para os meus pés. Dantes achava que o que fazia era divertido. Agora já não tinha a certeza.
— Penso que as coisas vão mudar bastante por estes lados — disse o Sr. Brilho.
Por cima da pintura do rochedo e do pinheiro solitário, escreveu as palavras: CONSTANTINO BRILHO, VIAGENS MÁGICAS AO FIM DO MUNDO. DIVERTIMENTO GARANTIDO!
Uma semana mais tarde, estava eu a pescar peixes que voavam sobre as cataratas, quando ouvi o ruído de máquinas grandes e homens a darem ordens. Estavam a pavimentar uma clareira. Estavam a abrir valas. E o Sr. Brilho guiava uma visita.
— Aqui — anunciava ele — é o Fim do Mundo. Este é o rochedo. Este é um rapaz local com a sua mula. Vejam como nos olham com um olhar sonhador. E aqui está o local da futura Estalagem do Fim do Mundo.
Fiquei em estado de choque. Tinha-se juntado uma pequena multidão composta por pais e filhos, que me olhavam com curiosidade e fitavam o rochedo embasbacados.
Nem queria acreditar que ele tinha aplanado o terreno.
— Sr. Brilho! — chamei. — Sr. Constantino Brilho!
Apontei para as lajes.
— O que está a fazer? O que fez?
— Trouxe-te uns amigos. Se lhes mostrares a paisagem, dou-te uma moeda de ouro.
— A paisagem? Mas eu vivo numa cabana sozinho. Não quero amigos e não preciso de…
Foi então que olhei para os miúdos que o rodeavam. Sorriam e eram simpáticos. Estenderam as mãos. Um chamava-se Alberto, outro Júlio, e a rapariga chamava-se Margarida. Queriam gostar de mim. E eu queria gostar deles. Sorri.
— Bem — comecei — na realidade…
O Sr. Brilho acenou, encorajador. Perguntei aos miúdos:
— O que querem que vos mostre?
— O que fazes por estas bandas?
Pensei no que fazia: entretinha-me com fósseis, pores-do-sol, assobios, ouvia os ramos, observava os pinheiros.
Tentei pensar em algo que fosse excitante.
— Bem, se cuspirem no topo da terra, a cuspidela nunca mais pára de dar voltas.
— Isso é o máximo! — exclamaram os miúdos.
Passámos o dia na floresta junto aos rochedos. Cuspimos e batemos palmas. Mostrei-lhes os fósseis. Mostrei-lhes os caminhos. Mostrei-lhes as árvores e as pegadas dos animais rastejantes.
Quando chegou a altura de regressarem à cidade, disseram:
— Não queremos ir embora. Voltaremos no Outono à Estalagem do Fim do Mundo.
Quando chegou o Outono, Constantino Brilho tinha terminado a sua estalagem, que ostentava pórticos, torres e espigões. Uma a uma, as folhas caíram das árvores e despenharam-se pela borda do mundo. Gostava de as ver, a rodopiar. Caíam aos meus pés, vindas do céu.
Quando as cores estavam mesmo brilhantes, o Alberto, o Júlio e a Margarida chegaram da cidade. Corremos a estalagem de uma ponta à outra, brincámos com os elevadores, e eles pediram que lhes servissem peru e pastilha elástica no quarto.
Alugámos quatro planadores e atirámo-nos dos rochedos no Fim do Mundo. Gritámos quando sentimos o sangue afluir todo aos nossos pés.
— Nada de lágrimas! — avisou o Sr. Brilho, que estava em terra firme. — Nada de lamúrias! É tempo de divertimento! Senhores e Senhoras, coloquem-se em fila. Saltem hoje e esqueçam o amanhã!
No Inverno, a neve caiu nas árvores, nos rochedos e nos túmulos. Observei os flocos a caírem em silêncio sobre a terra. Um dia, apareceu um trenó, com o Alberto, o Júlio e a Margarida. Cuspimos nas mãos, apertámo-las e piscámos o olho.
Divertimo-nos imenso. Vimos espectáculos de sombras de marionetas à noite, enquanto o vento soprava. Alugámos patins e fizemos figuras de oito nas Cataratas Pataratas e figuras de nove no Lago Conta-Gotas. As pessoas gritavam, enquanto se balançavam nos pinheiros. Os hóspedes patinavam e esquiavam em massa, descendo as encostas aos saltos e deslizando por longas rampas.
— Isto é ou não divertido? — perguntava o Sr. Brilho. — Divertimento a sério. Sentem-se sozinhos, Senhores e Senhoras? Na Estalagem do Brilho, nunca!
O Júlio, o Alberto, e a Margarida voltaram na Primavera. Não se ouvia o vento soprar através dos pinheiros eriçados. O barulho das festas era demasiado alto na floresta. Homens de bigode ensinavam o fox-trot a duquesas e a herdeiras de lavandarias vestidas de seda. Os monstros já não se mostravam quando os relâmpagos surgiam com as chuvas da Primavera. Tinham medo do barulho e das máquinas. O Júlio, o Alberto, a Margarida e eu corríamos pelos caminhos através das florestas, caminhos agora cheios de lixo. Também jogávamos às escondidas.
A cabana onde eu vivia estava rodeada de carrinhos. Já não conseguia encontrar ossos de dinossauros ou moedas de oiro antigas. Os pavilhões e as escadas rolantes tinham-nos coberto.
No Verão, as multidões eram imensas e a estalagem estava aberta para casais em lua-de-mel que vinham em busca do sossego e dos pores-do-sol de quatro horas. Só que estes mal se viam devido à bruma que cobria o paredão e provinha das luzes artificiais das arcadas.
— Quero ver mais divertimentos! — gritava o Sr. Brilho ao megafone, pendurado num prego que parecia vindo do céu. — Nada de silêncios solenes no Fim do Mundo! Só gargalhadas! E saltos! Senhoras e senhores, recomendo-lhes vivamente as vertigens!
Não dormia há sete dias. Havia sempre alguma coisa para me distrair. Tentei falar com os meus amigos:
— Sabem, estive a pensar…
— Não há tempo para pensar! — interrompeu o Sr. Brilho. — É tempo para se divertirem! Vejam, minha gente, o Fim do Mundo! Que vista magnífica, sublime e resplandecente! Vou construir tudo aquilo que quiserem! Deixem tudo o que estão a fazer! Não há tempo para tristezas ou ideias! Vamos DIVERTIR-NOS! DIVERTIR-NOS sem PARAR!
A Margarida estava toda suada.
— Anda lá! — insistiu comigo.
— Aqui vimos nós! — gritava o Júlio.
— Aqui vamos nós! — ria-se o Alberto, rangendo os dentes e rasgando a camisa nas tropelias.
— Penso que é tempo de ir também — disse para comigo.
Tirei o chapéu de papel da cabeça e as luvas das mãos. Enrolei-as e dei-as ao Júlio.
Depois disse-lhe:
— Tenho de ir embora. Sinto falta do vento.
E fui embora.
Agora vivo sozinho no Topo do Mundo. É uma montanha muito alta. Consigo ver a borda da montanha. Os dias passam-se devagar e bem. Como biscoitos salgados e cartilagens. Limpo as rochas e encontro fósseis. Procuro tesouros em velhos mapas de impérios decadentes. Sento-me no alpendre da minha cabana e escrevo cartas aos meus amigos na cidade, Alberto, Júlio e Margarida. Um dia destes vou visitá-los.
Às tardes, escuto o rumor do vento por entre os ramos dos pinheiros eriçados.
Sinto a suavidade da solidão a cair.
Por ora, sinto-me bem, sozinho, aqui no Topo do Mundo.

M. T. Anderson; Kevin Hawkes
Me, All Alone, at the End of the World
London, Walker Books, 2007
(Tradução)

Uma outra forma de escutar

Uma outra forma de escutar

Escutar

Outrora conheci um homem que conseguia ouvir o milho cantar sempre que passava por um campo.

— Ensine-me — pedi-lhe um dia. — Explique-me como consegue ouvir o milho.

— É preciso muita paciência — respondeu ele. — Não podes ter pressa.

— Tenho muito tempo — disse eu.

Este homem ouvia tão bem! Certa vez, ouviu as sementes das flores campestres a germinar debaixo do solo. Quando lhe perguntei como o conseguira, disse-me que tinha tido a sorte de estar no desfiladeiro naquele dia, depois de uma boa chuvada. Segundo ele, aquele era o lugar mais sossegado que conhecia e ficara lá o tempo suficiente para escutar o silêncio.

Disse-lhe então:

— Aposto que ficou admirado quando ouviu as sementes!

— Não, não fiquei — respondeu. — Pareceu-me a coisa mais natural do mundo.

E sorriu, relembrando aquele momento.

Numa outra ocasião, quando estávamos juntos, vimos uma lagartixa a correr para junto de uma rocha. O homem, que tinha por hábito fazer perguntas difíceis que demoram a responder, disse:

— Pergunto-me o que a lagartixa e a rocha pensarão uma da outra.

Encostámo-nos durante algum tempo a uma outra rocha. Depois o homem perguntou-me:

— Estás a ouvir? Parecem gostar bastante um do outro.

E eu respondi:

— Não ouvi nada.

Então ele disse:

— Às vezes, quando as coisas se sentem bem, fazem um leve rumor. O que ouvi, agora mesmo, foi o som de satisfação que a rocha emitiu.

Perguntei-lhe, como sempre:

— Ficou admirado por ouvir esse som?

E ele respondeu:

— Nem por isso. Pareceu-me a coisa mais natural do mundo.

— Quem me dera ouvir também — disse eu, com pena.

— Talvez um dia ouças — animou-me o homem.

Depois, contou-me que uma amiga sua tinha ouvido, aos sete anos, o rumor de um céu cheio de estrelas. E que essa mesma amiga ouvira, aos oitenta e três anos, um cacto a florescer na escuridão. A princípio, não compreendera o que ouvia e tinha-se limitado a seguir o som. Quando deparou com o cacto, este tinha vinte flores brancas que reluziam ao luar.

— A maioria das pessoas nunca ouve estas coisas — comentou o homem.

— Porque será? — perguntei.

— Porque não usam o tempo para fazer uma coisa tão importante como esta.

— Eu vou usar bem o meu tempo, mas tem de me ensinar a escutar — prometi.

— Gostava de poder ensinar-te, mas tens de o aprender com as colinas, as formigas, as lagartixas, as sementes, e coisas desse género. São elas que nos ensinam.

— E não pode dar-me uma pista para eu saber como começar? — pedi.

— Esforça-te por conhecer uma coisa o melhor que puderes. Começa por uma coisa pequena. Não comeces por uma montanha. Não comeces pelo Oceano Pacífico. Começa por uma pocinha, uma semente seca, uma lagartixa, uma mão cheia de pó, ou uma onda de areia.

— Vou começar pela onda de areia — disse eu.

O homem disse-me que tinha começado por uma árvore. Quando era jovem, todas as manhãs trepava a um choupo, e ficava lá sentado a escutar. Valia sempre a pena. Segundo ele, as árvores são muito honestas e não gostam de pessoas complicadas. Não se recordava de ter feito algo mais importante na vida do que sentar-se naquela árvore.

— Conte-me tudo — pedi-lhe.

— Em primeiro lugar, tens de respeitar aquilo que pretendes ouvir. Se pensares que és superior a uma lagartixa, nunca a ouvirás, nem que, para isso, te sentes ao sol durante o resto da vida. Não deves ter vergonha de aprender com a areia, os insectos, ou seja o que for.

— Não terei — assegurei-lhe.

— É bom andar com pessoas, mas deves ir sozinha também. Assim, podes parar e escutar sempre que o momento seja apropriado.

— Vou lembrar-me do que me disse.

E lembrei-me. Mas não funcionou como pensava. Achei que devia ter algum problema porque só ouvia o que todas as pessoas podiam ouvir: o vento, os coiotes, as pombas, as codornizes. Quase desisti, embora continuasse a passear nas montanhas. Na verdade, costumava cantar-lhes canções. Já que elas não cantavam para mim, cantava eu para elas, embora a minha canção só tivesse um refrão: “Olá, montanhas!”

Certa vez, tive de me ausentar durante uma semana. Quando regressei, senti saudades das montanhas. Na manhã seguinte, levantei-me cedo e fui vê-las. E aquelas montanhas pareciam novas. Todos sabemos que as coisas têm um aspecto diferente ao amanhecer… Por onde quer que eu fosse, só pensava: “Eis-me aqui!” e tudo parecia estar bem. Subi a montanha pelo lado rochoso, em vez de tomar o trilho que leva ao topo.

Prefiro aquele caminho, embora seja mais íngreme. Encontrei três penas de falcão, peguei nelas e saudei de novo as montanhas. De repente, dei-me conta de que não era a única a cantar. As montanhas cantavam comigo. Parei e deixei-me estar ali durante mais de uma hora. Nunca escutei com tanta atenção em toda a minha vida.

Claro que as montanhas não cantam alto. Nem sequer cantam de forma a que possamos explicar o som que fazem. Não cantam com palavras. Não podemos transcrever a sua canção. Só posso afirmar que o som vinha das rochas cobertas de lava brilhante, e que era um murmúrio que se movia com o vento. Parecia o som mais antigo do mundo.

E eu estava no centro daquele som às sete horas da manhã e pensava apenas: “Eis-me aqui a escutar!” E nem sequer estava surpreendida. Parecia-me a coisa mais natural do mundo.

Byrd Baylor
The other way to listen
New York, Aladdin Paperbacks, 1997
(Tradução e adaptação)

Sugestão de actividades

O conto acima transcrito é um acto de reverência face à natureza e aos seus mistérios. A atenção silenciosa e expectante da narradora, bem como a sua persistência, acabaram por torná-la sensível aos sons mais subtis e à vida que palpita no interior das coisas.

Ensinar às crianças o sentido da contemplação da Natureza é importante para o desenvolvimento da sua sensibilidade e espírito criativo, que poderão em seguida manifestar através de desenhos ou de escrita de pequenos apontamentos poéticos.

Sugere-se ainda a leitura dos contos:

A mesa dos ricos

Um lugar tranquilo

Eu, sozinho, no Fim do Mundo

As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas

 

As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas

Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta. O que são palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas, como, Obrigado, Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim. Palavras tão doces que são como mel no coração.

Seria obra do Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê, preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas.

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O Minorca que queria ser igual aos outros

O Minorca

Igual aos outros

Queria tanto ser como os outros! Roubar compotas e biscoitos, ser comilão e travesso, intrépido e endiabrado. Esta ideia tornou-se uma obsessão para mim. Ao acentuar permanentemente as diferenças entre mim e os outros, os adultos só reforçavam o meu desgosto.
Um dia, quando íamos às compras, a minha mãe parou a falar com uma vizinha, no passeio estreito da padaria. Uma daquelas “cavaqueiras amenas” que eu detestava e que duravam horas.
Armado de toda a paciência, começava por admirar a montra. Mas uma pessoa cansa-se rapidamente dos croissants, dos pães com chocolate e dos palmiers. Se ao menos tivéssemos parado em frente da loja de brinquedos da rua da República! Puxei pela mão da minha mãe, que fez de conta que não era nada com ela, tão absorta na conversa que estava.
— O seu filho tem um ar tão bem-comportado! — admirou-se a vizinha, que recusava aperceber-se da minha impaciência. — Não é como o meu, um verdadeiro tornado! Não consegue estar quieto um segundo. Tem de estar sempre a correr e a saltar. Vê-se logo que é um rapaz!
“Também sou um rapaz”, pensei, enquanto olhava as nuvens a fazerem uma corrida no céu, para ver qual delas seria a primeira a tapar o sol. Tinha de me ocupar enquanto elas conversavam.
Finda a conversa, a minha mãe conduziu-me na direcção do talho, enquanto concluía:
— É verdade, o Éric é muito calmo.
O talhante, achando-se muito esperto, interpelou-me:
— Um bife para o nosso jovem? A carne vermelha é boa para os músculos e ajuda-te a ser homem.
Olhei para os meus pulsos magros e suspirei. Seria algum dia um homem? Tinha as minhas dúvidas. Quando tinha distribuído os músculos, a natureza esquecera-se de mim.
Alguns passos mais e, diante da mercearia, uma senhora fez-me uma festa na cara:
— É tão gentil este menino. Tão doce. O meu mais velho é terrível. Só aprecia os desportos violentos. Vai ser como o pai, forte e desportivo.
Detestava estas ternuras falsas. Não era um animal que se elogia. Às vezes, virava a cabeça para escapar à mão enluvada que aprisionava as minhas narinas num odor de perfume enjoativo ou recuava a cara para escapar à marca que uns lábios carmesins iriam deixar-lhe e que nem com saliva sairia.
Já devia estar habituado a estas situações. Era sempre a mesma coisa. A minha candura, a minha doçura e a minha pele aveludada atraíam as carícias.
— O Éric é muito dócil, é um sonhador. Nunca será um desportista — defendia-me a minha mãe, algumas lojas à frente, onde parara para conversar com alguém que não via há uma eternidade.
As mulheres são tão faladoras! Para comprar pão, carne, esparguete ou manteiga têm de estar sempre a falar: da ementa da véspera, das doenças dos filhos, das plantações do jardim ou das asneiras do cão.
— Que elegante que ele está, de calças e casaco. Nunca posso vestir o meu filho como deve ser, porque se enfia na lama mal sai de casa. É um lutador. Os rapazes são terríveis. Enfim, mostram que têm carácter.
O orgulho destas mães em relação aos seus rebentos insuportáveis exasperava-me. As suas reflexões insinuavam-se na minha mente e provocavam verdadeiros estragos. Para agradar às mães, era preciso gostar de andar à pancada! Eis uma conclusão catastrófica.
A minha mãe reiterou:
— O Éric não é endiabrado.
Acaso haveria uma certa pena na sua voz? Decepção? Estava farto de ser diferente. As mães davam-me como exemplo para fazerem boa figura, mas nas minhas costas chamavam-me medroso, ou pior, “um betinho”.
Mas que culpa tinha eu de gostar de jogos calmos? De estar quase sempre na lua? De não me divertir a sujar-me de propósito?
Até agora tinha vivido feliz no meu casulo de miúdo sonhador, mas, de repente, via-me obrigado a colocar-me certas questões desagradáveis. Será que devia comportar-me como os outros? Parecer-me com eles? Decalcar as minhas atitudes nas deles? Será que não tinha direito à diferença?
Era impossível forçar-me a ser o que não era ou a provocar uma luta. Mas, e se a mamã se sentisse decepcionada por não ter como filho um verdadeiro rapaz, um desportista? Ela tinha o direito de se sentir orgulhosa de mim. Se ter carácter era gostar de se sujar e andar à pancada, havia de lhes mostrar que também eu tinha carácter.
Da próxima vez que a minha mãe se cruzasse com uma vizinha, levantaria a cabeça com orgulho e diria:
— O Éric também tem uma personalidade forte. Ontem veio coberto de nódoas negras…
Durante alguns dias, dediquei-me à resolução deste dilema delicado: como obter um ar de “verdadeiro” rapaz. Não era fácil: é preciso ter nódoas, arranhões, canelas esfoladas, ossos partidos, cabelos hirsutos, ranho no nariz, dedos sujos, palavrões prontos a sair.
Um rapaz é um durão. Eu era um mole, conhecia os meus limites. Era inútil provocar um grandalhão sempre pronto para a bulha: deitava-me ao chão com uma estalada. Mas também estava fora de questão atacar um rapaz mais fraco: era ir contra o meu código de honra.
Eu tinha sentido moral. O sentido moral impede-nos de nos tornarmos uns crápulas, mesmo que isso signifique a nossa salvação. É uma barreira que quereríamos transpor, mas não o fazemos porque não é correcto. Bastava-me atacar o pequeno Marc para me sentir um fortalhaço. Porém, o meu sentido moral opunha-se a tal. Tinha de encontrar outra solução. Pela minha mãe.
Subitamente, tive uma ideia. Lutaria contra mim mesmo. Só tinha de pensar como o faria.
Era uma forma de me assegurar de que não faria mal a ninguém e de que não receberia muitos sopapos.
Delineei um plano.
Às quatro e meia, à saída das aulas, fiquei para trás. Dirigi-me, num passo decidido, para uma poça de lama que rodeava a caixa de areia. Saltei para dentro dela e depois, para tornar o resultado mais espectacular, atirei-me ao chão e chafurdei à vontade. Que horror! A lama colou-se-me ao blusão, penetrou-me nos sapatos, salpicou-me a cara e empastou-me os cabelos.
Quem diz luta diz golpe. Puxei pelo tecido dos calções. Com não conseguia rasgá-lo, agarrei numa pedra pontiaguda e rompi-os.
Faltava o mais difícil. Arranjar algumas mossas. Reflecti longamente neste problema, mas não havia soluções ideais. Era mesmo preciso levar pancada.
Escalei um muro de pedra e atirei-me para o chão. Que queda! Vieram-me as lágrimas aos olhos. Nada de choradeiras. Limpei a face com os dedos sujos de terra. Tinha dores. Um dos meus joelhos sangrava, o outro estava bem esfolado. Coxeava e apertava a ferida para tentar parar as fisgadas de dor que sentia.
Para compor o quadro, decidi roçar o pulover vermelho que a minha avó Marie me tinha oferecido no meu aniversário na roseira da entrada da escola. Arranhei as mãos e estraguei a camisola. Estava num lindo estado!
Será que devia aplaudir a minha transformação? Não sabia. Sentia-me infeliz. Mas não podia lamentar a minha sorte, já que outros faziam isto por prazer. Era, finalmente, um verdadeiro rapaz!
Saí a correr da escola: estava sujo, roto, pisado, ensanguentado, mas tinha o aspecto do macho, do herói, do justiceiro.
Quando entrei em casa, gritei:
— Olha, mamã, andei à pancada como os outros!
A minha mãe não me felicitou. Antes me agrediu com palavras:
— Quem te pôs nesse estado? É uma vergonha. Vou falar com a mãe desse brutamontes. Não precisas de provocar os grandalhões… O pulover da avó está bom para o lixo… E os calções também… Vem cá, vou tratar do teu joelho. Assoa-te e lava a cara.
Nem uma só palavra para dizer que apreciava o meu novo estado de arruaceiro. Fiquei decepcionado.
O que iria ela contar à vizinha quando nos cruzássemos no passeio? As mulheres são complicadas. Como lhes agradar? Desisto. Eu nunca seria um durão!

Anne-Marie Desplat-Duc
Le Minus
Toulouse, Éditions Milan, 2002

tradução e adaptação

Micha e o mistério da Páscoa – Um novo dia

Um novo dia

Quando Micha acordou na manhã seguinte, já era dia claro. Esfregou os olhos e sentou-se na cama. Rebeca e Ariel há muito que estavam acordados, Miriam e Ester também. Só Daniel, ao lado dele, dormia profundamente. A pouco e pouco, Micha lembrou-se do dia anterior e da noite.

Acordou por completo quando se lembrou do que acontecera a Jesus. Agora estava a lembrar-se novamente das muitas pessoas que tinham estado em casa deles, das suas preocupações e medos. E não pôde deixar de pensar em João, que tinha voltado a fugir durante a noite. Em nada lhe parecera o alegre João que ainda ontem de manhã tinha sido. Micha fechou os olhos outra vez. Agora iria voltar a acordar e tudo não passaria de um pesadelo. No entanto, quando reabriu os olhos, nada mudara. Não era sonho. Tinha de facto vivido aquela noite má!

Daniel, ao seu lado, sentou-se na cama, muito calado. De repente, tapou as mãos com a cara e começou a chorar. Marta e Rute foram ter com eles ao quarto. Marta apertou Daniel com força contra si e baloiçava-se de um lado para o outro. Micha também se apertava contra a mãe.

— Eles têm de libertar Jesus — dizia Rute, tentando que a voz soasse confiante e esperançosa. — Ele não fez nada de mal.

— Só disse e fez o que Deus quis que fizesse — acrescentou Marta. — Jesus curou doentes, deu de comer a quem tinha fome e falou aos homens sobre o grande amor de Deus.

— Não, não podem julgá-lo e matá-lo — disse Micha com determinação.

— Não digas coisas tão horríveis — repreendeu-o a mãe.

— Mas ele próprio disse que tinha de morrer — respondeu Micha em voz baixa.

Quando de se levantaram e Rute lhes serviu pão, mel e leite, repararam que todos os outros já lá não estavam. Só Miriam com a mãe, Madalena.

— Todos têm amigos e familiares na cidade — explicou Rute. — Nos próximos dias vão ficar albergados em casa deles. Já foram embora de manhã cedo.

— E a mãe convidou Miriam e a mãe, Madalena, a ficarem em nossa casa! — exclamou Ester. Viraram-se todos para ela e viram o quanto se alegrava com aquilo.

— Quando o Daniel estiver pronto, também temos de ir em embora — disse Tomás, que se sentou à mesa com Jonatan. Tinham estado a falar um com o outro em voz baixa e só agora repararam que os dois rapazes tinham entrado.

— Não! — exclamaram Micha e Daniel ao mesmo tempo.

— Não pode ser — disse Micha. E Daniel fez coro: — Eu quero ficar aqui.

— Os vossos avós vão ficar zangados se os netos não quiserem morar com eles!

Marta estava mesmo descontente.

— Estão a contar que vamos agora todos morar em casa deles — confirmou Tomás.

— Os teus pais têm razão — disse Jonatan a Daniel.

— Vocês podem visitar-se um ao outro todos os dias — disse Rute.

— Os avós têm mais netos — exclamou Micha de repente e riu-se da sua própria ideia. — Talvez fiquem ainda mais contentes se agora dormirem três netos em casa deles.

— E nós precisamos de muito pouco espaço — acrescentou Daniel. — Apertamo-nos todos uns contra os outros.

Rute riu-se

— Vai e pergunta se também podes dormir em casa deles — disse a Micha, fazendo-lhe uma festa na cabeça. — Hoje estamos todos convidados a ir comer outra vez a casa deles. Depois perguntamos aos avós.

Virou-se para Miriam e para a mãe:

— Venham também!

Será que o avô ainda estava zangado com o tio Tomás? Micha não gostava nada de se lembrar da discussão. Será que o tio David ia voltar a pegar-se com o pai? Era bom que Miriam e a mãe também fossem. Se houvesse desconhecidos à mesa, de certeza que não iriam começar a discutir.

Rolf Krenzer
Micha und das Osterwunder
Stuttgart, Gabriel Verlag, 2003
Traduzido e adaptado

A resiliência infantil

 

Já todos nos questionámos como é possível que existam crianças que apesar de terem passado pelas maiores dificuldades ao longo da vida se transformam em adultos equilibrados e saudáveis, enquanto outros qualquer acontecimento um pouco menos vulgar os destrói emocionalmente. A essa capacidade chama-se resiliência. A palavra surge do latim resilientia e é habitualmente utilizada em Física de Materiais, para designar a “resistência do material a choques elevados e a capacidade de uma estrutura para absorver a energia cinética do meio sem se modificar”.

O termo foi adoptado pelas Ciências Sociais para caracterizar as pessoas que conseguem resistir e ultrapassar as adversidades apesar de estarem expostas a ambientes adversos. Ser resiliente implica ter conseguido desenvolver capacidades físicas ou fisiológicas que conduziram aparentemente a uma certa imunidade às adversidades.

 Diversos estudos mostram que existe uma estreita relação entre a resiliência e dois outros aspectos: a criatividade e o ambiente familiar, principalmente em pessoas com uma infância marcada pelo sofrimento.

Parece ser nesta infância dolorosa que mais tarde descobrem a inspiração que os leva a dedicarem-se às artes e à escrita de romances ou de relatos autobiográficos. Toda essa criatividade tem por base as feridas da infância já saradas.

De facto, há uma marcada necessidade, por parte de crianças que foram maltratadas pela vida, de divulgarem a sua história em obras autobiográficas e em muitas outras formas de arte, transformando o sofrimento no seu oposto, como se quisessem mostrar ao mundo que foram suficientemente fortes para o ultrapassar.

Não existe uma fórmula mágica para nos transformarmos em resilientes. No entanto, ao longo dos últimos anos, os investigadores têm-se desdobrado em esforços para tentar chegar a conclusões acerca dos factores que devem ser desenvolvidos em cada um de nós. Destaca-se, desde logo, o aumento da auto-estima e do auto-conceito. Termos plena consciência das nossas capacidades e acreditarmos nelas será uma importante base para o sucesso, seja em que área for.

Outro aspecto diz respeito à rede social que nos rodeia. Uma criança, ou mesmo um adulto, que vivam socialmente isolados não terão tantas possibilidades de enfrentar positivamente as dificuldades que lhes surjam.

Por fim, outro dos factores fundamentais diz respeito à capacidade de se descobrir o sentido da própria vida. Saber para onde caminhamos dá-nos um rumo e ajuda-nos a desenvolver a criatividade, de forma a encontrarmos meios de lá chegarmos.

 

Características

As pessoas que possuem uma maior capacidade para a resiliência têm características comuns: inteligência, capacidade de reflexão, autonomia, capacidade de relacionamento e de iniciativa, humor, criatividade, sentido ético, entre outras. No entanto, para que uma criança cresça e se desenvolva como resiliente necessita de ter figuras parentais que sejam modelos valorizados de identidade.

A expressão ARTÍSTICA foi usada por muitos ao longo da História corno forma de encarar os dramas é dificuldades da vida. A arte favorece a resiliência. A pintora mexicana Frida Kahlo é disso um exemplo.

 

Um exemplo de resiliência

O clássico conto do Polegarzinho Polegarzinho pode ser considerado uma metáfora da resiliência infantil, já que põe em acção uma criança que, por detrás de uma aparente fragilidade, consegue ultrapassar com êxito as dificuldades da vida. A história conta que um casal de lenhadores tinha sete filhos e um deles, por ser muito pequeno, era conhecido como Polegarzinho. Muito pobres, os lenhadores deixaram deter possibilidades de alimentar os filhos e resolveram abandoná-los na floresta. É a partir daqui que começa a ser posta à prova a capacidade desta criança de superar as adversidades, e após várias peripécias, que incluem vencer um ogre, o Polegarzinho acaba por se transformar num grande mensageiro, o que lhe permite, enriquecer e ajudar a sua família e as pessoas mais pobres da sua região.

Os contos infantis mostram à criança como ultrapassar dificuldades e incutem-lhe esperança e coragem, na medida em que mostram exemplos de outras crianças que estiveram igualmente em situações difíceis e conseguiram superá-las.

Chama-se resiliência à capacidade para vencer na vida apesar das adversidades.

 

Texto: Teresa Paula Marques, psicóloga clínica/psicoterapeuta
In Certa – nº 135; 4-16 de Novembro 2008
excertos adaptados

Júlia e as luzes da vida

Júlia e as luzes da vida

— Avó?

Júlia abre devagarinho a porta do quarto da avó. Já é meio-dia e a avó ainda está na cama. Nem sequer abriu as cortinas. Júlia entra no quarto em bicos de pés. A avó está com os olhos fechados. A cabeça escorregou um pouco para o lado como se tivesse torcido o pescoço. Júlia nunca tinha vindo da escola e encontrado a avó a dormir!

— Avó, porque é que não dizes nada?

Júlia assusta-se com a sua voz no quarto silencioso e mergulhado na penumbra.

— Avó, não estás doente, pois não?

Mas a avó não responde.

De repente, Júlia sente medo, medo de que alguma coisa horrível tenha acontecido à avó. Corre para a sala e disca o número de telefone da mãe.

— Júlia? Já sabes que não deves telefonar-me para o escritório!

A voz da mãe soa impaciente e irritada.

— Sim — Júlia engole em seco. — É por causa da avó — diz muito baixinho. — Ela está na cama e não responde.

— A avó ainda está na cama? E não responde?

A mãe respira rápido e com força.

— Espera, eu vou para casa! — diz, e desliga.

Júlia fica sentada na sala. Não se atreve a ir outra vez junto da avó adormecida, que está tão diferente, tão estranha. E sente uma saudade muito grande da avó, com os olhos a piscar afavelmente por detrás dos óculos, e com a barriga redonda, contra a qual Júlia tanto gostava de se encostar.

Assim que ouve os passos da mãe, levanta-se de um salto, mais aliviada.

— Mamã!

Júlia quer abraçá-la mas a mãe afasta-a e corre para o quarto da avó. Depois é tudo muito rápido, como num sonho mau. A mãe telefona para o hospital, uma ambulância chega e dois homens vestidos de branco levam a avó. A mãe também vai e Júlia fica sozinha.

Quando a mãe regressa, já está escuro lá fora. Pendura o casaco no bengaleiro e senta-se à mesa da cozinha. Parece estar com a cara pálida e cansada.

— Agora tens de ser muito forte, Júlia — diz ela.

Júlia não percebe o que ela está a dizer.

— E a avó? — pergunta. — O que se passa com ela?

— A avó adormeceu para sempre — responde a mãe.

— Não é verdade! — exclama Júlia.

— É, Júlia — diz a mãe. — A avó nunca mais vai poder regressar.

— Não acredito! — grita Júlia.

— A avó já era velha — diz a mãe. — No próximo ano ia fazer setenta anos.

— A avó não era velha… para mim, não.

Saltam-lhe lágrimas dos olhos e rolam-lhe pela face.

— E o coração da avó também já estava velho — continua a mãe. — Já não trabalhava muito bem e agora parou. Como um relógio que parou.

— Não, não, não!

Júlia tapa os ouvidos.

Não é possível que a avó esteja morta! A avó não pode estar morta. Olha por entre as lágrimas para a mãe. Porque é que ela está tão calma? Porque é que não está a chorar? Não gostava da avó?

— Júlia! — diz-lhe a mãe. — A vida continua. E acredita no que te digo: não vais ficar sempre triste.

— Vou! — grita ela. — Sempre!

A mãe suspira.

— Júlia, tudo isto também não é nada fácil para mim. Não piores ainda mais as coisas.

Levanta-se e deixa a cozinha.

Júlia ouve a porta do quarto de banho bater atrás da mãe, depois a água corre durante muito tempo. Quando sai do quarto de banho, a mãe tem o mesmo aspecto de sempre. Escovou os cabelos, a pele brilha, rosada e até sorri um pouco.

— Vou fazer agora alguma coisa para comermos — diz. — De certeza que estás com fome.

— Fome? — Júlia abana com a cabeça. — Não!

A mãe tira farinha e ovos do armário e começa a fazer uma massa. Já não estará a pensar no que aconteceu à avó?

Os olhos de Júlia voltam a encher-se de lágrimas.

“Avó!”, soluça ela e corre para o quarto. Atira-se a chorar para cima da cama e esconde a cara na almofada. A mãe devia vir agora consolá-la, como a avó sempre costumava fazer! Mas a mãe não vem e Júlia acaba por adormecer.

Dois dias mais tarde, tem lugar o enterro da avó. Júlia queria ir ao cemitério. Gostava de ver o caixão e a sepultura onde a avó vai ser enterrada ao lado do avô, mas a mãe não deixa.

— Um enterro é uma coisa muito, muito triste — diz. — Demasiado triste para uma criança.

“Mas o que é que ela percebe de estar triste?”, pensa Júlia. Nem no enterro a mãe chora. Parece só muito pálida e magra com o fato preto, as meias de vidro e os sapatos pretos. E está cansada, muito mais cansada do que de costume. Deita-se imediatamente no sofá e sacode as perguntas de Júlia com um seco “Agora não, Júlia, por favor!”

Na manhã seguinte, a mãe não tem tempo nenhum para Júlia. Tem de estar no escritório mais cedo do que o costume, porque a espera um trabalho urgente.

— O teu pequeno-almoço está em cima da mesa. Promete-me que comes alguma coisa! — diz ela da porta.

Júlia promete. Mas quando se vê sozinha em frente do prato com as sandes, não consegue comer nada. Vai ao quarto da avó. Tudo parece triste e abandonado: a cama por usar, a cadeira vazia, o robe da avó no armário, dependurado numa cruzeta.

— Avó! — diz baixinho.

Se a avó aqui estivesse…

Mas Júlia podia ir visitar a campa da avó!

Apressa-se a ir buscar o casaco e põe-se a caminho.

A porta do cemitério não está trancada. Júlia abre-a e entra. Como tudo, de repente, ficou silencioso! E ninguém está ali, só ela. Sente-se um pouco perdida.

Além, junto do salgueiro grande, está a lápide do avô. Júlia pára em frente do pequeno monte ao lado da lápide do avô. É por debaixo daquele monte, por debaixo de todas aquelas flores e coroas que a avó está agora?

Júlia não acredita. Mas lá está o nome da avó na fita presa à coroa.

PARA A QUERIDA AVÓ, COMO ÚLTIMA LEMBRANÇA DA JÚLIA, lê ela num dos laços.

Foi a mãe que fez isto? Para a avó como última lembrança…

As lágrimas vêm-lhe aos olhos.

— Avó, porque estás tão longe? — soluça ela. — Volta! Eu gosto tanto de ti!

As folhas do salgueiro sussurram levemente. Júlia levanta a cabeça. Um sopro de vento acaricia-lhe a face – muito suavemente. A avó acariciava-a sempre assim!

— Avó, estás aqui? — pergunta.

As folhas voltam a sussurrar, baixinho e misteriosamente, como se tivessem uma mensagem para Júlia.

Em seguida, os ramos afastam-se e aparece uma figura. É uma criança com uma cara pálida, quase transparente.

— Quem és tu? — pergunta Júlia.

A criança sorri e começa a sussurrar uma melodia. É a melodia da caixa de música da avó!

— Conheces a minha avó? — a voz de Júlia treme.

— Sim — responde ela. — E vim até aqui porque quero ajudar-te.

— Ajudar-me? — pergunta Júlia.

— Eu sei que perdeste a tua avó — responde a criança. — Mas se quiseres muito, posso mostrar-te que, apesar disso, ela ainda está contigo.

— Oh, sim! — exclama Júlia.

— Então fecha os olhos!

Júlia fecha os olhos e ouve uma música suave: a melodia da avó.

— Abre agora os olhos — diz a criança.

Júlia pestaneja. Tudo ficou diferente. O céu tornou-se negro e, à sua frente, está um lago onde ardem inúmeras velas. As velas bóiam na água como ilhas de cera branca.

— Onde é que eu estou? — pergunta.

— Estás no Lago das Luzes da Vida — responde a criança.

— E a avó? Onde é que está a avó?

— Aqui só está a sua luz da vida — diz a criança.

Entra para um barco que está na margem do lago e faz sinal a Júlia.

— Anda!

Júlia segue-a, hesitante.

O barco desliza pelo lago, junto às velas, sem lhes tocar. Júlia olha em volta admirada. Algumas das velas bóiam na água sozinhas, outras estão todas juntas. E todas têm tamanhos diferentes: algumas parecem acabadas de acender, outras já arderam muito e outras já estão apagadas.

— Cada luz é a vida de uma pessoa — diz a criança. — Quando uma pessoa morre, a sua luz também morre.

— Então, todas as velas que já não estão a arder são… pessoas que morreram? — pergunta Júlia.

— Sim — responde a criança.

— E a luz da avó?

— Também já não está a arder.

O barco continua a vogar.

Júlia quase não se atreve a respirar com medo de apagar uma das luzes da vida.

— As chamas não se apagam — diz a criança suavemente.

— Apagam! — exclama Júlia. — Uma acabou agora mesmo de se apagar!

— Sim, mas não foi por nossa causa.

— Então ela não se apagou porque… a pessoa morreu?

— Sim.

— E as outras luzes que estão a tremer… Essas pessoas também vão morrer?

— Talvez sim, talvez não — responde a criança. — Quando uma pessoa adoece gravemente ou quando tem muitas aflições… então a sua luz começa a tremer.

— A luz da avó também tremeu?

— Sim. E até a tua!

— A minha luz também?

— Sim, ora olha: ainda está a tremer!

O barco pára.

— Como é que tu sabes qual é a minha luz? — pergunta Júlia.

— É a minha tarefa — responde a criança.

Aponta para uma ilha com quatro velas.

— Aquela ilha além é a tua ilha da vida. E a luz que está a tremer é a tua luz da vida.
Júlia sente um calafrio.

Na ilha, só há uma vela a arder calmamente e com força. Duas já se apagaram e a maior, a luz da vida de Júlia, tremula como numa corrente de ar.

— Está a tremer desde que a luz da vida da tua avó se extinguiu — diz a criança.

— É porque estou tão triste! — responde Júlia com a voz a tremer. — Porque tenho tantas saudades da avó!

— Mas a tua avó ainda está à tua beira — diz a criança. — A luz da vida dela ainda está ao lado da tua na ilha da vida.

— Avó! — murmura Júlia.

— Enquanto a amares, a sua luz da vida nunca se vai afundar — diz a criança.

— Afundar? — pergunta Júlia, assustada.

— Sim. Quando não houver ninguém que ame a tua avó… a luz da vida dela vai para o fundo do lago.

— Mas eu continuo a gostar da avó! — exclama Júlia.

— Eu sei — diz a criança. — Só porque gostas dela de todo o coração é que tive autorização para trazer-te até aqui e mostrar-te a ilha da vida e as luzes da vida.

— E a avó? — diz Júlia. — Levas-me até ela?

— Ainda não — responde a criança.

— Porque não?

— Só posso fazer isso quando a tua luz da vida também se tiver apagado.

— Então tu és… a morte? — pergunta Júlia.

— Tenho muitos nomes — diz a criança.

— Mas és uma criança!

— Apareço aos homens sob muitas formas.

Olha para Júlia e sorri.

— Não preciso de ter nenhum medo de ti! — diz Júlia.

Calam-se as duas por um momento.

— Ora olha! — diz a criança. — A tua luz da vida já não está a tremer!

E é verdade: a luz de Júlia arde calma e claramente como a da mãe. Júlia olha para as chamas.

De repente, começa a soar uma música. É a música da caixinha da avó.

— Agora fecha os olhos — disse a criança.

Júlia fecha os olhos. A música vai soando cada vez mais baixinho até que pára.

Volta a abrir os olhos. Está sozinha.

As flores e as coroas na campa cheiram bem – um cheiro doce e pesado, como o perfume da avó.

— Agora sei que continuas ao meu lado — diz Júlia baixinho.

Depois volta-se e vai embora.

Angela Sommer-Bodenburg
Julia bei den Lebenslichtern
München, C. Bertelsmann, 1989
Tradução e adaptação

A história da árvore do Paraíso

A história da árvore do Paraíso

No início do mundo, o Grande Criador plantou um jardim.

Inúmeras plantas formosas cresciam em cada um dos seus diferentes campos.

Havia jardins de florestas, completamente cobertos de musgo verde e campainhas ondulantes, que acenavam timidamente ao vento. Pequenos seres povoavam estes jardins, farejando e sussurrando a toda a hora.

Havia jardins de pradarias cheios de ervas oscilantes, que os animais percorriam com passadas graciosas.

Havia também jardins subaquáticos, para os seres do mar profundo. Tinham folhas roçagantes, arrastadas pelas correntes, e misteriosas flores de pétalas trémulas.

Os mais belos de todos eram os jardins de árvores. Eram tão altas que tocavam o céu. Nessas árvores, os pássaros todos faziam os seus ninhos. Os ramos, cheios de folhas, enchiam-se de trilos e chilreios, de gorjeios e assobios, de melodias trinadas, que caíam em sonora cascata para deleite do mundo.

O Grande Criador pediu aos homens que tomassem conta do mundo e construíssem para si próprios casas simples e seguras, num dos jardins de que gostassem.

Mas o tempo foi passando e as pessoas tornaram-se cada vez mais ambiciosas…

— Vamos construir CASAS MAIORES! — disseram. — Há materiais de construção em abundância para usarmos como quisermos.

Em breve começaram a construir palácios.

Cada novo edifício era mais alto do que o anterior e os palácios eram feitos cada vez com mais magnificência.

As suas salas às centenas estavam cheias de todo o tipo de luxos… mas a ambição das pessoas não conhecia limites.

Os jardins do mundo foram caindo em ruínas, cada um deles imagem da mais desoladora devastação.

Todas as árvores tinham sido abatidas.

Os pássaros agitavam-se tristemente no chão frio, tentando, com desespero, construir novos ninhos.

As suas canções foram silenciadas.

Então, do alto do seu palácio, uma criança olhou para o mundo devastado e chorou.

— Desce à terra — sussurrou-lhe, por entre o vento, a voz do Criador. — Lá encontrarás uma semente, que deves semear num local onde possa crescer em segurança.

A correr, a criança desceu as escadas em caracol da torre do palácio.

Pousada na terra, estava uma semente castanha, enrugada, feia.

A criança pegou na semente com delicadeza.

— Onde poderei semeá-la em segurança? — perguntou-se.

Foi caminhando, caminhando, até que chegou a uma vala na qual uma lama escura corria lentamente e alguns juncos baloiçavam no vento frio.

— Coloca-a aqui, onde nunca ninguém vem! — parecia sussurrar o vento.

E foi ali que a menina enterrou a semente.

Devagar, em silêncio e completamente invisível, a semente começou a germinar.

Cresceu e fez-se uma árvore forte. Sob os seus ramos, outros jardins começaram a florescer. Em breve, as criaturas reuniram-se à sua volta.

A árvore cresceu mais alto do que todos os palácios. Os pássaros voavam por entre os seus ramos e aí construíam os ninhos.

Cresceu tanto, que chegou ao Paraíso. E quem assim o desejasse, poderia subir pelos seus ramos até ao Jardim do Paraíso do Grande Criador.

Tradução e adaptação

Mary Joslin
The tale of the heaven tree
Oxford, Lion Publishing, 2001

A teia de aranha

A teia de aranha

Eu tive de ir ao sótão procurar uns jornais antigos.
Como toda a gente sabe, o sótão é o lugar da casa que menos é limpo. Nunca se convida as visitas para ir ao sótão. Nunca se utiliza o sótão, cheio de baús, malas e caixotes, para dar festas de aniversário. Até talvez não fosse má ideia…
Eu a entrar no sótão, e a esbarrar com uma teia de aranha.
— Que falta de consideração — barafustou a aranha. — Uma teia que me deu tanto trabalho a fabricar!
— Foi sem querer. Desculpe — disse-lhe eu, um tanto encavacado.
— Quem estraga, arranja — gritou-me ela.
— Mas eu não sei tecer teias de aranha…
— Então, não tivesse rasgado. Quem estraga, arranja — insistiu ela.
Não tenho feito outra coisa. Pedi instruções a um tecelão, a uma bordadeira e a uma senhora que trabalha em malhas. Cada uma ensinou-me o que sabia e eu, mal ou bem, com uma agulha muito fininha e um fio de nylon ainda mais fino tenho passado os dias no sótão a cosipar a teia da dona aranha.
Com tantas responsabilidades na minha vida, tantas histórias para contar, e sucede-me a mim uma destas.
Ainda se a aranha se calasse, mas não se cala:
— Quem estraga, arranja.
E sempre a desfazer do meu trabalho:
— Que falta de jeito. Que horror.
Mais dia, menos dia, também eu me enervo e mando a aranha contar histórias, em vez de mim. Sempre queria ver como é que dava conta do recado.

António Torrado
http://www.historiadodia.pt

Ser amigo

Ser amigo

O sol entrava a rodos pelas janelas da sala de aula e ia brincar nos cabelos dos meninos. Às vezes projectava uma mão na folha de papel, fazendo uma engraçada sombra. E era uma tentação para a pequenada. Alguns às escondidas pegavam num pequeno lápis e desenhavam-na sobre a folha, enquanto a professora ditava: Primavera, nome de Estação, como se escreve, Marco? Marco acordava então das suas divagações de luz e de sombra, e respondia:

— Com letra maiúscula, senhora professora.

A professora continuava… Guidinha, Joãozinho, Antoninho… Venham fazer um trabalho de grupo. E Marco pensava: e eu? E eu? porque sou só Marco e não Marquinho? E quedava-se a pensar… talvez o meu nome não dê jeito… Mas ficava triste, sentia que para ele não havia tanta ternura. Aquele Marco de duas sílabas bem marcadas feriam-no constantemente e sentia-se só… ele que nem sequer tinha irmãos.

Chegou a hora do recreio. Uma manhã inundada de luz. Os passarinhos chilreavam contentes, ostentando a sua bela plumagem e entoando doces trinados. As crianças brincavam tirando das suas saquinhas, que as mães cuidadosamente bordaram os saborosos lanches. E brincavam, riam, pulavam. De repente, junto ao muro da escola, parou uma pobre menina, suja, com um irmãozinho ao colo…

— Como te chamas? — perguntou Marco.

— Sílvia — respondeu a menina embalando o irmãozito que chorava.

Marco pensou: — também ela não era Silviazinha.

— Queres pão?

— Quero.

Marco partilhou a sua merenda com Sílvia e ficaram amigos. Todos os dias a menina aparecia, todos os dias Marco partilhava com ela a sua merenda e a menina trazia-lhe uma flor silvestre, que ele guardava cuidadosamente entre as folhas do seu livro. Marco pensava que a vida era cheia de contrastes de luz e de sombras… Mas também pensou que a amizade e o amor estão nos actos e não nas palavras, que não é por um simples inho ou inha que há mais amor. E, daí em diante, sentia-se mais feliz.

Maria José Craveiro R. Valente
O meu mundinho
Aveiro, Livraria Estante Editora, 1987

A minha mãe está sempre cheia de pressa

A minha mãe está sempre cheia de pressa

Tudo começou no dia em que a mãe de Ivan retomou o trabalho e começou a olhar o seu relógio com paixão. Durante todo o dia não tirava os olhos dele e dizia:

— Meu Deus, já são cinco horas? Já são seis horas, trinta e sete minutos e vinte e quatro segundos? Já são oito horas e vinte e oito? Mas isso é terrível!

E corria, cabelos ao vento, do emprego para a escola, da escola para o emprego, do emprego para as aulas de violino de Ivan, das aulas de violino de Ivan para as suas aulas de canto, das aulas de canto para o dentista, do dentista para o talho, do talho para a mercearia…

A mãe de Ivan queria fazer tudo. Para ganhar tempo, tinha comprado, numa loja especializada, um par de sapatilhas supersónicas, que tinham um motor que se acciona através de um botãozinho vermelho. Estas sapatilhas chegavam a atingir quinze quilómetros por segundo. Parece muito divertido, não parece?

Só que não era nada divertido, porque a mãe de Ivan achava que o filho era demasiado lento para o seu gosto. Quanto mais pressa tinha, mais o achava indolente. Então, enervava-se e criticava-o. Ficava furiosa com aquilo que via como lentidão, mas que era, na realidade, um comportamento perfeitamente normal. Quando Ivan estava a desenhar, tinha de acabar o desenho em três segundos (tenta tu desenhar um carneiro ou um avião em três segundos e vê se é possível). Quando Ivan tocava violino, tinha de fazer os exercícios em três milésimas de segundo, caso contrário a mãe punha-se a suspirar e olhava para o relógio como se este fosse um comboio que ela tinha de apanhar.

— Despacha-te! — dizia.

Mas parecia dizer “Pacha-te!Pacha-te!”, como se fosse um comboio. À força de tanto correr, a mãe de Ivan pôs-se a fazer disparates. De manhã, em vez de beijar Ivan à despedida na escola, beijava o director. À noite, Ivan saía do banho cheio de sabonete seco, porque não havia tempo para o lavar com água. Em casa, só se comia peixe e carne crus porque não havia tempo para ligar o forno. Um dia, quando, depois de uma festa de aniversário, a mãe foi buscar Ivan a casa de um amigo, saiu com outra criança, porque esta tinha apertado os atacadores dos sapatos mais depressa do que Ivan.

E é claro que se esquecia das coisas essenciais: beijar, fazer mimos ou falar com o filho. Estas eram ocupações que, segundo ela, tomavam demasiado tempo. Não é pois de admirar que Ivan tenha pensado que a mãe já não gostava dele. Então, para tentar prender a sua atenção, como se tenta prender a água entre as mãos, começou a andar mais devagar. De manhã, demorava vinte minutos e quinze segundos para atar um cordão. Só de um sapato! Quando bocejava, demorava três minutos a abrir a boca. A mãe ficava louca de raiva, mas este comportamento era mais forte do que Ivan.

Quando mais ela se apressava, mais ele se atrasava. Ivan pensava que se andasse mais devagar, a mãe começaria também a andar mais devagar e poderia amá-lo e abraçá-lo como quando ele era pequenino. Claro que ele podia dizer isto à mãe mas, quando se tem cinco ou seis anos, já não se chora para ter o que se pretende. Então, exprimimo-nos de outra forma. Toma-se um caminho diferente do das lágrimas.

Certo dia, aconteceu o que tinha de acontecer: Ivan adoeceu de lentidão. Dormia o dia todo. Bocejava, fechava os olhos e não queria fazer nada, como se a mãe o tivesse cansado com tantas correrias. Já não podia ir à escola porque, quando acabava de se vestir, já tinha anoitecido. A mãe consultou inúmeros médicos que faziam urgências (daqueles que chegam de motorizada de quinze em quinze minutos).

O primeiro falou de uma gripe-relâmpago, o segundo de uma infecção cerebral, o terceiro de uma crise de crescimento. Ivan engoliu xaropes de alcaçuz, de framboesa e de banana. Mas continuava a dormir. Então, pela primeira vez em muito tempo, a mãe começou a reflectir. Deitou fora todos os xaropes e sentou-se à cabeceira do filho. Sem fazer barulho, desligou as sapatilhas supersónicas e pô-las aos pés da cama, como fazemos quando estamos à espera do Pai Natal.

Um dia, Ivan abriu os olhos muito devagarinho e viu a mãe a descalçar as sapatilhas. Saltou logo da cama, como se estivesse curado.

— És tu, mamã? Esperaste por mim? Amas-me um bocadinho?

— Claro que te amo. Mesmo quando andava sempre a correr de um lado para o outro amava-te na mesma. Nunca deixei de te amar. Como pudeste pensar, por duas milésimas de segundo, que eu tinha deixado de te amar?

A mãe de Ivan pensou que nunca se dizem vezes demais aos filhos que os amamos mais do que tudo, mais do que o trabalho, mais do que o nosso emprego, mais do que o tempo que passa, mais do que qualquer outra coisa! Abraçou o seu filho querido com muita força durante quinze minutos, e garanto-te que, naquele dia, nem sequer olhou para o relógio. Nem naquele nem nos que se lhe seguiram.

 

* De acordo com os números de uma sondagem Ipsos realizada em 1999, as mulheres, sobretudo as jovens mães – com idades compreendidas entre 24 e 25 anos – não sonham com uma viagem a Honolulu, nem com uma casa cheia de conforto, mas com tempo suplementar para dedicar à família.

* Entrar no universo das mães é entrar no universo da felicidade e da culpabilidade, dizem as mães que trabalham fora de casa. “Quando estou a trabalhar, penso que devia estar com os meus filhos. Quando estou com eles, lembro-me do trabalho que deixei no escritório.” Daí a corrida contra o relógio, para tentarem estar nos dois sítios ao mesmo tempo.

* A qualidade dos momentos que passa com os seus filhos é preferível à quantidade. As crianças preferem uma mãe bem-disposta que trabalha fora de casa a uma mãe deprimida em casa. Mas o tempo que passarem com os filhos deve ser-lhes totalmente consagrado. Quando chega a casa, a mãe não deve pôr-se ao telefone durante horas. Deve desligar o telemóvel e ligar o atendedor de chamadas. Telefone quando os seus filhos estiverem deitados.

Também não deve suprimir a história ao deitar. É um momento de partilha essencial. Tente também ouvir o seu filho, sentada no chão, sem fazer nada.

A criança tem o seu próprio ritmo. Talvez que o tempo que demora a vestir-se seja uma reacção à sua pressa constante. “Perca” tempo a dizer-lhe que gosta dele, a fazer-lhe mimos. Não deixe que o pudor, a falta de tempo ou a negligência a impeçam de lho dizer.

* Tens a sensação de que o teu pai ou a tua mãe estão sempre a apressar-te ? É normal que os pais que trabalham estejam sempre a fazer mil coisas de cada vez.

Ficas triste? É claro que se vivêssemos numa ilha deserta teríamos todo o tempo do mundo para estarmos juntos. Mas as mães têm muito que fazer: ocupar-se da casa e dos filhos, preparar as actividades… Às vezes, ficam muito excitadas, agitadas e enervadas.

Os avós têm mais tempo. Trabalham menos, ou nem sequer trabalham, e vivem mais de acordo com o ritmo das crianças.

Histórias para os mais pequeninos  

O ladrão de palavras

O ladrão de palavras

Há muitos anos, havia um homem que roubava palavras. As nossas melhores palavras. Metia-as, cuidadosamente, num saco de linho e desaparecia. Para ser sincero, na nossa aldeia, que uma sebe de montes abraça, nunca ninguém viu o rosto do homem e ninguém lhe sabia o nome. Mas, pela manhã, as pessoas acordavam pobres. Pobres, sempre mais pobres e tristes.

As palavras, nesse tempo, eram de ouro.

O homem introduzia uma palhinha invisível no nosso silêncio e apartava as palavras. Da mesma arte se servia para desencaminhar palavras dos livros e dos jornais. Não as roubava todas, porque isso daria muito nas vistas. Ele aprisionava as palavras alegres, as mais luminosas, as nossas melhores palavras — e nós sobrevivíamos no meio de palavras sem sabor.

Palavra insípida é como fruto desconhecido do sol.

Cada dia vivido, menos palavras havia para agasalhar a tristeza. Era como se a mãe quisesse fazer um pão-de-ló e não houvesse açúcar; como se nós fôssemos abelhas proibidas de produzir mel.

Impedidos das palavras luminosas, emagrecia a imaginação: e assim seria impossível pedalar até ao fim dos sonhos. O sonho, na nossa aldeia, era veludo que enxugava a melancolia.

Nós conhecíamos o local onde o homem abrigava o saco da alegria. Ficava num bosque cerrado, nem o sol podia furar a copa das árvores. O bosque estava povoado de cogumelos: engordavam de sombra e de humidade. Alguns cogumelos atingiam a grandeza das árvores!

Nenhum de nós podia ir ao bosque. Entre outras palavras, ele roubou-nos a coragem. Também correu a notícia de que os cogumelos seriam venenosos. Todos os cogumelos, os pequenos — do tamanho de guarda-chuva aberto — e os grandes. Bastaria olhá-los e perderíamos a vida!

Com o andar do tempo, a nossa tristeza transformou-se em nuvem. E essa nuvem, de um momento para o outro, rasurou o sol em quase metade da aldeia: essa parte do povoado ficou sombria como o bosque.

Todos os dias, porque o silêncio era tecido de palavras sem sabor, a nuvem estendia o domínio. Temeu-se uma praga venenosa de cogumelos! Para afastar a maldição, pela manhã, queimávamos rama verde de pinheiro em redor das casas.

Os cogumelos, enfim, não levantaram a cabeça. Mas a nuvem, que medrava com o fumo da rama verde, tinha fome, imensa fome de claridade. Grande parte da aldeia, a dada altura, era noite. A calamidade! A calamidade, provocada pelo musgo verde, muito verde deu o primeiro sinal.

«Estranha doença!», disseram os velhos.

No rosto das crianças da aldeia despontou estranha barba, muito verde e húmida.

Testámos todos os xaropes caseiros e outras mezinhas da imaginação do povo Nada. Nada estorvava o avanço do musgo no rosto das crianças. E também de pouco valia ir ao barbeiro. Ele, com a costas da navalha, limpava a nossa cara, mas, na manhã seguinte, a barba irrompia com mais fulgor.

Os velhos disseram: «Ninguém pode ser homem antes do tempo, é contra as leis da natureza!»

Mandaram chamar o médico.

Não escondeu o espanto, o médico que veio de longe. Primeiro, por ver o dia e a noite no mesmo sítio e à mesma hora. Depois a surpresa multiplicou-se à medida que lhe surgiam meninos barbados e tristes. Apenas observou, com minúcia, uma criança, e achou remédio para rebater o mal de todas as outras. Abriu a pasta de couro, retirou um caderno e a caneta. Escreveu rápido. Entregou a receita, não aceitou o dinheiro da consulta. E partiu a toda a velocidade, como se a nossa doença alastrasse por contágio.

O ladrão de palavras estava junto de nós. Ninguém o viu, mas ele esteve sempre no meio de nós. Adivinhámos a sua presença pelas palavras que a palhinha invisível havia sorvido da receita:

«A sombra misturou-se com a tristeza. Só                 um              ,     colher   vezes       dia

               ,             ,  silêncio.»

A nuvem, nesse instante, cresceu largos metros: porque todos nós, velhos e novos, sem saber o que o médico nos havia indicado, ficámos ainda mais tristes. Mas a última palavra da receita (que o Ladrão terá achado de pouco valor para guardar no saco de linho), abria uma pista. Se descobríssemos o verbo que precedia silêncio, seria desvendado o mistério.

O automóvel do médico havia já dobrado o monte, e foi então, de forma inesperada, que se ouviu o grito:

«É preciso prender o ladrão de palavras!»

O grito atravessou a aldeia, acordou os cães do lado onde era noite, assustou as galinhas da parte onde era dia.

Uma mulher ergueu a voz e os braços na direcção da nuvem: afrontou (afrontar, o verbo que procurávamos) o silêncio. De repente, outros habitantes resgataram a coragem, a palavra coragem, adormecida no bosque dos cogumelos!

A nuvem estremeceu, depois, como bicho do monte, fugiu espavorida. Num instante, o céu ficou leve, azul, imensamente azul. E sol, generoso, bebeu a nossa melancolia.

Em grande festa, o povo partiu à descoberta do bosque. Primeira surpresa: não havia cogumelos gigantes, muito menos venenosos. Mas o saco de linho estava lá, ao pé de um velho medronheiro. Abrimos o saco e o saco nada tinha!

Nesse dia luminoso, verdadeiramente luminoso, no saco de linho vazio prendemos o ladrão da alegria. Ele, afinal, era uma palavra — a palavra medo.

Francisco Duarte Mangas
O ladrão de palavras
Lisboa, Editorial Caminho, 2006

O pato e a coruja

O pato e a coruja

 

Era uma vez uma bétula que se erguia no meio de um prado.

Mesmo à beirinha do prado cintilava um charco onde um pato nadava em círculo, mergulhando o bico de vez em quando.

O pato subiu para terra, sacudiu-se e olhou para o cimo da árvore.

Após ter olhado algum tempo, gritou:

— Eh, tu, aí em cima!

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A bisavó

A Bisavó

Jacob vai visitar a bisavó que está doente. Ela já não pode andar. Os pés doem-lhe. Não consegue fazer renda. As mãos doem-lhe.

Mas, “torcer” pelo Jacob, ainda consegue, como costuma dizer.

— Não morras — pede-lhe Jacob. — Promete-me!

— Não posso prometer-te isso — diz a bisavó. — Mas, mesmo quando morrer, vou estar sempre contigo e pensar em ti lá do céu. Só espero que me sinta melhor do que aqui. Ao lado de Jesus, não vou ter mais dores. Ao lado de Jesus, vou sentir-me forte e alegre.

Jacob fica a pensar.

— Mas gostava que te deixasse a cara que tens agora — diz-lhe. — Porque és bonita.

Lene Mayer-Skumanz (org.)
Jakob und Katharina
Wien, Herder Verlag, 1986
(texto traduzido e adaptado)

Um convite para jantar

Um convite para jantar
 

Convidámos Khalil para jantar. É um amigo nosso, egípcio. Já o tínhamos ajudado quando, há alguns anos, acabava de chegar, com a sua pobreza um pouco assustada, e a sua dignidade e seriedade, que muito nos impressionaram. Na altura, ajudámo-lo a libertar-se dos preconceitos próprios de quem vem de um país pobre, com todas as dificuldades inerentes à cor da pele e ao domínio da língua.

Não quer dizer que tenhamos feito muito pelo Khalil: limitáramo-nos a indicar-lhe um pequeno apartamento que poderia alugar, acrescentando: «Se precisares de alguma coisa, estamos à disposição.»

Nunca teve grandes necessidades: só alguns endereços, algumas explicações sobre usos, costumes e leis, uma ou outra ajuda para decifrar certas expressões e umas quantas palavras difíceis, nomeadamente para ultrapassar determinadas complicações burocráticas. Pediu-nos, sobretudo, algum tempo: para estarmos juntos; para passar as tardes de Domingo, para não se sentir demasiado só e perdido.

Nasceu assim uma certa familiaridade entre nós, por isso, às vezes, convidamo-lo para jantar. Isto ajudou-nos a descobrir como é maravilhosa a hospitalidade. De início, também nós sentíamos sobretudo desconfiança e hesitação: talvez um medo indefinível (de quê, afinal?), e principalmente embaraço frente ao seu universo feito de deserto e pobreza, de uma língua desconhecida e de um céu sem nuvens: era tudo isso que estava escrito no rosto escuro de Khalil.

Porém, mal entrou em nossa casa, ofereceu pistácios aos miúdos e cumprimentou a cozinheira (que neste caso era eu), pelo cheirinho delicioso que vinha da cozinha (Khalil exerce a profissão de cozinheiro), e ficámos com a sensação de que os mundos estranhos existem apenas para se encontrarem. Foi um serão muito divertido, aquela primeira vez em que o recebemos em nossa casa. E, desta vez, convidámo-lo para trocar votos de Bom Natal. Também ele, pobre homem, trazia um presente para nós.

Abriu o seu embrulho sob o olhar curioso das crianças. Deve ter intuído imediatamente a desilusão delas: era um ícone – um ícone barato, mas bem feito. Representava a SS. Trindade, com os três anjos sentados à mesa. Contudo, graças ao seu sotaque estrangeiro fascinante e à argúcia que o caracteriza, conseguiu manter-nos a todos encantados, enquanto explicava o seu significado.

Explicou-o mais ou menos assim:

Khalil: «Digam lá, o que representa este ícone?»

Stefano: «São três anjos.»

Khalil: «E o que estão a fazer?»

Stefano: «Nada, estão sentados.»

Marco: «Estão sentados a beber: há um cálice; e o deserto a toda a volta.»

Laura: «Não, estão a tomar uma decisão difícil. Estão a olhar uns para os outros; até parecem um pouco tristes e preocupados!»

Khalil: «Tristes? Estão envoltos em luz, em paz…»

Laura: «Estão mas é tristes! Olha para a cara deles.»

Khalil: «E porque estarão tristes?»

Stefano: «Talvez estejam à espera de alguém que nunca mais chega!»

Laura: «Não, têm de tomar alguma decisão difícil.»

Marco: «Que disparate! Nunca ouvi falar de anjos tristes!»

Laura: «Não percebes nada. Os anjos estão tristes porque os homens são maus.»

Khalil: «Talvez Stefano tenha razão; estão à espera de alguém, e sentem-se preocupados porque nunca mais chega. Esperam alguém para começar o banquete. Quem poderá ser?»

Marco: «Estão à espera de que lhes sirvam o almoço. Na mesa há apenas uma taça. Talvez esperem o dono da casa, que foi buscar o pão e a carne.»

Stefano: «Não, não têm fome. Nem sequer têm tempo para comer: têm na mão um cajado para a viagem; em breve terão de partir.»

Laura: «Talvez esperem um amigo para partir juntos…»

Khalil: «E quem é esse amigo?»

Marco: «Como poderemos saber?»

Khalil: «Quero revelar-vos o meu segredo: estas três personagens esperam um amigo, sim. E esse amigo, reparem bem, sou precisamente eu, que estou a olhar para eles. Aqui à frente há um lugar vazio, para alguém se sentar. Foi preparado para mim. Eu, Khalil, sou estrangeiro nesta terra, mas vocês convidaram-me para jantar. Por isso me senti como um amigo esperado: prepararam-me um lugar à mesa. Por isso já não sou estrangeiro, e os três anjos são vocês: Marco, Laura, Stefano.»

Marco: «Mas nós não somos anjos: às vezes o Stefano só faz diabruras, e a Laura é uma bruxa.»

Laura: «Olha quem fala! Então e tu?»

Khalil: «Vocês de facto não são nenhuns anjos, mas quando acolhem um amigo e tratam com respeito um estrangeiro que vos visita, assemelham-se aos anjos de Deus, ou antes, assemelham-se a Deus. Quem sabe? Talvez estes três não sejam anjos, mas as três personagens que Abraão convidou a deter-se sob o carvalho, e que representam o Pai, o Filho e o Espírito Santo.»

Laura: «Quero pôr este ícone no meu quarto.»

Marco: «Não, este ícone vai ficar aqui, na sala de jantar, onde acolhemos os amigos.»

Stefano: «Sim, sim, na sala de jantar.»

Khalil: «Eu também penso que talvez seja preferível na sala de jantar; de cada vez que nos sentarmos à mesa, poderemos pensar, olhando o ícone: eis que eu sou como o amigo esperado pelos anjos, sou como o hóspede de Deus.»

Entretanto, o jantar estava pronto e tive de interromper a explicação: as crianças lutavam entre si para ficarem ao lado de Khalil, para ouvirem as suas histórias e rirem com o seu sotaque incorrecto. Ele sorria com os seus belos dentes brancos e os seus olhos marotos.

Ao acolhermos um hóspede vindo do Egipto, foi-nos concedida a alegria de nos imaginarmos no deserto, como hóspedes de Deus. Parecia-me inacreditável poder pôr tâmaras em cima da mesa.

 Carlo Maria Martini
Uma bela família
Lisboa, Edições Paulinas, 1999
Texto adaptado

 

 

 

 

 

 

 

 

Pinóquio – António Mota

O nosso blogue completou este mês um ano. Os nossos agradecimentos a todos os leitores que nos têm escrito e incentivado.

História retirada de Páginas de Vida

Pinóquio

Em Montepó, terra de um Portugal remoto e esquecido, vive Abílio, um rapaz que, como todos os da sua idade, está a acordar para o mundo, para a vida, para o primeiro amor…
Calejado pelas agruras duma vida difícil vai aprendendo à sombra de decepções e mínguas; mas vai, também, crescendo, acalentado pela magia das histórias e dos sonhos que lhe dão ânsias de fugir em busca de outros destinos.

O padrinho Sebastião, contava-nos minha mãe, era da família dos bichos do mato. Sempre teve o comportamento dum lobo solitário, duma raposa astuta, duma lebre esquiva. Não deixava que nada o prendesse a qualquer cadeado.

Sempre curioso e insatisfeito, Sebastião experimentara imensas profissões. Foi moço de recados e trolha, caixeiro, pintor, electricista, canaliza dor, mecânico de motorizadas, pasteleiro, cauteleiro e vendedor de jornais, engraxador e tipógrafo. Frequentava bibliotecas públicas e devorava livros.

— É um regalo para os ouvidos ouvi-lo falar. Quando está a conversar, diz, sem querer, palavras que não entendo, mas que me parecem muito bonitas — dizia minha mãe, embevecida com o irmão que ajudara a criar. — Às vezes, eu pergunto-lhe o significado de certas palavras e ele pede desculpa e explica. Fala melhor que um padre pregador. Cem vezes melhor!

No ano em que terminei a quarta classe, o meu padrinho deu-me um livro. Chamava-se Pinóquio.

— Se o leres, aprendes a sonhar! — disse-me ele, com um sorriso cúmplice.

— Obrigado — disse eu, abraçando-o, sem entender muito bem o que me queria dizer.

Fiquei tão feliz.

Era o meu primeiro livro.

Era o primeiro livro de histórias que ia haver em minha casa.

Era a primeira vez que recebia uma prenda que não se comia, calçava ou vestia.

Agucei um lápis com a minha navalha de gume sempre bem afiado e escrevi na primeira página:

Este livro pertence a Abílio Ribeiro da Silva.
Oferecido pelo meu padrinho.

Para que não ficasse sujo, nem com olhos de gordura, encapei-o com uma folha de jornal.

As coisas nem sempre acontecem como desejamos. Temos de estar preparados para os pequeníssimos ou grandes desastres que nos batem à porta sem avisar.

A vida é feita de risos e de lágrimas, de sonhos e desencantos. E quem disser o contrário é parvo, ou mentiroso.

Ainda hoje me dói falar disto. Mas a verdade tem de ser dita: não li o livro oferecido pelo meu padrinho. Nem sequer a primeira página pude saborear.

Numa tarde de chuva, meus irmãos resolveram arrancar algumas folhas do Pinóquio para acenderem uma fogueira. Como as folhas ardiam bem, arrancaram-nas todas.

Confrontado com a tragédia, fiquei a olhar para os restos das folhas calcinadas que se tinham espalhado na lareira. Alguns pedacinhos, mais pequenos que a cabeça dum dedo mindinho, levantavam voo, subiam em direcção à chaminé e desapareciam.

Explodi.

Bati em mim próprio: na cabeça, no peito e na cara.

Bati nos meus irmãos, subitamente amedrontados e perplexos.

Berrei, arranquei cabelos aos meus irmãos e a mim próprio.

Desesperado, gritei e protestei até me doer a garganta.

A Rosa e o Toninho começaram a choramingar, tristes por me verem tão triste.

— Mas que conversa é essa, menino? — perguntou minha mãe, admirada.

— Estes inocentes queimaram-me o livro que o meu padrinho me deu. Estes patetas queimaram-me o Pinóquio.

— Quem é que queimaram?

— O meu Pinóquio.

— O teu Pinóquio? De que é que estás a falar, menino? Não te entendo…

— O livro que o meu padrinho me deu chamava-se Pinóquio. E os estúpidos dos meus irmãos fizeram uma fogueira com o livro.

— E estás a fazer esse escarcéu todo por causa dum livro?! Cala-te, menino, cala-te!

— Mas eu quero o meu Pinóquio!

— Cala a caixa, que é melhor para ti. O teu pai está aí a chegar. Meu filho, o que não tem remédio remediado está. Acabou a conversa. Olha que o teu pai está aí a chegar.

Meu pai entrou na cozinha e eu emudeci. Recusei-me a jantar. Inventei uma dor de barriga, deitei-me cedo e adormeci a imaginar vários significados para a palavra Pinóquio.

António Mota
Filhos de Montepó
Canelas, Edições Gailivro, 2003
Excertos adaptados

 

Retirado de Páginas de Vida

O pão de tâmaras e nozes

O pão de tâmaras e nozes

Sebastião está sentado ao colo do pai a brincar ao “Quanto é que gostas de mim?”

— Quanto, pai?

— Assim! — e o pai aperta Sebastião com força contra si.

— E da Joana?

— Assim! — outro apertão forte.

— E da mãe?

— Assim!

— E de nós todos juntos?

— Assim, assim, assim!

Sebastião solta gritinhos de alegria porque o pai o aperta com muito força, e diz em seguida:

— E a mãe gosta tanto de ti como do pão de cada dia.

— Como?

— Foi ela que disse. Ou qualquer coisa parecida. Gosta assim de ti porque tu estás sempre presente para nós como o pão de cada dia.

— Também não está mal dito — responde o pai.

Sebastião pensa por uns momentos.

— Porque é que não disse ‘bolo’?

— Porque não se come bolo todos os dias. Pão, sim. Precisamos de pão para viver – e o pai bate com a mão na testa. — Pão! Não queríamos cozer um pão especial para pôr no cesto da Páscoa?

— Sim! No forno do avô!

Quando o pai era novo, viveu na quinta Hinteregg. Já mora no vale há muito tempo mas a pequena quinta com as macieiras e o forno antigo ainda lhe pertence. De cada vez que é preciso cozer pão, Sebastião e os pais vão a Hinteregg.

— Pai, faz um pão como o que Jesus comeu no tempo dele.

— Estás a falar da última ceia? Nessa altura comeu pão matzo, segundo a tradição judaica. Era um pão ázimo, seco e fino feito sem fermento. Estás a falar de um desses pães?

Sebastião franze a testa.

— Não. Gostava de algo mais substancial. No Domingo, vou perguntar outra vez à Lena, logo depois da missa.

A catequista tem um livro de receitas do tempo de Jesus.

— O teu pai tem razão — diz a Sebastião. — Durante os feriados de Pesach, os judeus não comiam nada feito de massa levedada. Faziam bolos de especiarias com farinha de matzo e ovos. Mas para outros dias de festa tinham pães levedados. Olha, aqui está: pão de passas, trança de sésamo, pão de figos, pão de nozes e tâmaras…

— Pão de nozes e tâmaras soa bem — diz Sebastião.

— Eu vou copiar-te a receita — diz Lena. — Achas que o teu pai podia levar o grupo da comunhão? Cozer pão em Hinteregg seria uma óptima aula de grupo!

O pai estuda a receita e suspira.

— Com fermento natural? Mas vai demorar dias!

— Não faz mal — diz Sebastião. — Ainda há tempo. Posso dizer aos meninos que vamos cozer pão na Quinta-Feira Santa?

O pai suspira outra vez.

— Está bem. Vou então tirar livre a Quinta-Feira Santa. E agora vou mostrar-te como se faz levedura natural.

Numa bacia de barro mistura, com uma colher de pau, farinha integral com água morna. Depois coloca a massa lá fora, no terraço soalheiro.

— A mistura precisa de ar para poder fermentar. No ar há microrganismos tão minúsculos que só se podem ver ao microscópio. Os fermentos penetram na massa e modificam-
na com os seus gases até ficar pegajosa e com bolhas.

À noite, Sebastião traz a terrina para a sala para a massa ficar ao calor. No terceiro dia começam a aparecer as primeiras bolhas. A massa também já tem outro cheiro.

— Isto está a ficar bom?

— Sim. Cheira a fermentado. É neste começo de fermento que misturamos agora farinha e água para fazer o fermento final.

Na manhã de Quinta-Feira Santa, Sebastião espantou-se. O fermento tinha duplicado de tamanho! O pai deita um pedaço numa chávena que guarda no frigorífico.

— É para a próxima vez que cozermos pão. Agora vamos fazer a massa para o teu pão de nozes e tâmaras. Para isso vamos precisar do maior alguidar que houver cá em casa!

O pai volta a misturar farinha e água morna, depois mel e uma chávena pequena de azeite, tâmaras e nozes secas picadas finas. Amassa com força e cobre a massa com um pano da cozinha.

A mãe abana a cabeça:

— Antigamente cozer pão era tarefa de mulheres, não era? E bem morosa!

A mãe enche um cesto com a merenda para Hinteregg, porque até mesmo o aquecer do forno e o cozer demoram horas. Sebastião e o pai levam para o carro o recipiente com a massa. Vão buscar as crianças à paragem do autocarro e depois sobem a montanha.

Na antiga cozinha de Hinteregg cada criança dá forma ao seu pão. São depois cobertos com panos e colocados ao sol. Agora têm de “crescer” pelo menos durante duas horas. Sobra-lhes muito tempo para merendar e brincar. Mas todos querem ajudar a acender o forno.

O antigo forno está ao ar livre na orla do pomar. Tem espaço para nove pães. O pai de Sebastião empilha os cavacos de madeira segundo uma forma que aprendera em pequeno com a avó. Espera até a madeira ter ardido e ficar reduzida a brasas. As crianças mergulham ramos de pinheiro num balde de água. O pai varre as brasas para o lado e varre o chão com os ramos hú- midos. Agora é tão emocionante!

Cada criança faz uns riscos por cima do pão com uma faca. De seguida os pães vão ao forno. O pai mete-os lá dentro com uma pá de cabo comprido e fecha a porta.

— Agora já ganhaste uma cerveja — diz Sebastião.

— E um pão de queijo — diz Susana.

É bom sentar-se ao lado do forno quente e sentir o vento de Primavera na cara. É agradável imaginar como Maria terá cozido pão para o seu pequeno Jesus e para José, há dois mil anos. As tâmaras, comprara-as a um vendedor.

— Mercadoria de Jericó de primeira categoria! — teria garantido o vendedor.

Terá Jesus ajudado a fazer a massa? Ter-se-á ajoelhado, impaciente, diante do pequeno forno de barro bojudo? Ou só provou o pão de tâmaras e nozes mais tarde, aquando da sua primeira peregrinação a Jerusalém, com doze anos?

— Esperai aqui à sombra — pode ter dito José. — Aquele padeiro ali vende pão de tâmaras e nozes segundo uma antiga receita de Jericó. – E meteu-se na confusão da multidão para comprar esta saborosa especialidade para os seus dois entes queridos. Com um pouco de queijo fresco com ervas, uma mão-cheia de azeitonas e um copo de chá de menta, o pão era uma refeição completa.

Passada uma hora, o pai tira o pão de tâmaras e nozes do forno. Como cheira bem! Sebastião tem água na boca.

— Mas a Lena disse que só daqui a dois dias é que sabe mesmo bem!

— Mesmo a tempo para o cesto da Páscoa ! — diz o pai.

Sebastião assente com a cabeça. É tarefa sua fazer e enfeitar o cesto da Páscoa para ser benzido na igreja. Sebastião já se sente contente. Vai pôr lá dentro pão e sal, manteiga e cerovias, ovos pintados e carne, e tapa tudo com a toalha bordada a ponto de cruz vermelho. Na asa prende dois narcisos.

Será que a sua amiga Ana, na cidade, também vai benzer o cesto? Esta noite ainda há-de telefonar-lhe.

Lene Mayer-Skumanz
Anna und Sebastian
Wien, Herder Verlag, 2003
Tradução e adaptação

Uma Páscoa atribulada

Uma Páscoa atribulada

Nova Iorque, Lower East Side, 1912. A área sudeste de Nova Iorque acolheu milhares de emigrantes durante as grandes ondas de emigração para a América. Esta zona pobre da cidade tornou-se na área com maior densidade populacional do mundo. Aqui viviam pobremente muitas comunidades estrangeiras, entre elas a de Judeus e era na Lower East Side que se encontrava a maior comunidade Judaica do mundo. Num modesto apartamento, vivem Ella, de doze anos, Henny, de dez, Sarah, de oito, Charlotte, de seis e Gertie, de quatro anos, com a mãe e o pai, um comerciante de coisas usadas. O dinheiro não abunda, mas a mãe dirige a casa habilmente. Uma casa onde reina a alegria e a harmonia e onde se comemora com seriedade todas as festas religiosas do calendário judaico.

– Então, não te levantas? – perguntou Ella.
Era um dia normal de escola e Sarah costumava ser sempre a primeira a levantar-se.
– Não me sinto bem.
– O que é que tens? Dói-te outra vez a garganta?
– Sim, quando engulo. Também me dói a cabeça e sinto o nariz a arder por dentro.
– Pareces estar muito quente. É melhor chamar a mãe.
A mãe não se mostrou muito preocupada. Já estava habituada a que as filhas ocupassem a “cama dos doentes”, como chamavam ao sofá que estava na cozinha. Das cinco irmãs, era Sarah a que lá passava mais tempo. Nessas alturas, e com a ajuda de uns lençóis, a mãe transformava o sofá em cama, e ia ao quarto buscar as doentes. Henny olhava para Sarah com inveja. Detestava ir à escola e estava sempre à espera de que acontecesse alguma coisa que a impedisse de ir.
– Mãe – disse – enquanto a Sarah estiver doente não vais precisar de ajuda?
– Acho que serias mais um estorvo do que uma ajuda, Henny.
Henny foi para junto de Sarah, no sofá.
– Que sorte! Eu também gostava de ficar doente.
– Só dizes isso porque não sabes como é horrível.
A mãe estava atenta a Sarah. Veio junto dela, pôs-lhe a mão na testa e sentiu-a a escaldar.
– Ella – disse – corre à loja do pai ainda antes de ires para a escola e diz-lhe que chame o Dr. Fuchs.
Mergulhou um pano em água fria, torceu-o, dobrou-o em quatro e pô-lo na testa de Sarah.
Quando as outras saíram, Gertie tentou distrair Sarah, mas ela não reagia.
– Deixa-a dormir – disse a mãe. – É o melhor que pode fazer. Anda, podes ajudar-me a tratar das loiças para o Pesach (refeição ritual da Páscoa hebraica e que celebra a fuga do Egipto.) – É já daqui a uma semana.
Só uma semana e havia ainda tanto que fazer!
Durante a festa da Páscoa, que dura oito dias, não se pode comer pão ou outros alimentos feitos com massa levedada. Nos dias anteriores à Páscoa, as famílias judaicas limpam tudo para eliminar qualquer resto de massa fermentada: até as panelas, sertãs e pratos têm de ser substituídos. Cada família judaica crente tem tanta loiça, que mais parece possuir uma loja de loiças. A família tem de ter dois serviços para uso diário, um para o leite e derivados, e outro para os pratos de carne, e ainda mais dois serviços para o Pesach. Isto para não falar da loiça bonita para os dias de visitas.
Quando as meninas voltaram da escola, o Dr. Fuchs estava em casa. Com a sua voz sonora mas simpática, ordenou a Sarah que deitasse a língua de fora e dissesse “aa”. As irmãs e a mãe estavam à sua volta a ver. Quando acabou o exame, o Dr. Fuchs voltou-se para a mãe:
– Parece escarlatina. O melhor é examinar também as outras meninas.
– Escarlatina! – exclamou a mãe.
Escarlatina significava quarentena e isolamento. Significava também que tinha de cozinhar dietas, provavelmente pratos fermentados, e a Páscoa estava à porta. Como iria conseguir conciliar tudo? Mas não deixou transparecer a sua preocupação na presença das filhas, que já estavam em fila diante do médico para serem examinadas.
Henny foi a primeira. Parecia estar bem de saúde. Gertie e Charlotte não aparentavam ter nada. O médico examinou Ella durante mais tempo e, no final, meneou a cabeça.
– Lamento, mas a pequena também tem escarlatina.
– Já era de esperar – respondeu a mãe calmamente. – Dormem juntas na mesma cama.
– Tem de deitar as duas num quarto separado – disse o Dr. Fuchs à mãe. – E tente manter as outras afastadas. Eu torno a passar amanhã e vejo como é que elas estão. Não tenha medo, que vai conseguir ultrapassar tudo isto. Pense que tem um bom médico!
O Dr. Fuchs riu da sua piada para animar a mãe, pegou na mala e saiu, rindo ainda.
Henny tinha agora uma boa desculpa para ficar afastada da escola, mas não estava nada contente com isso. “Quarentena”, pensava. “Nenhuma das minhas amigas pode aproximar-se de mim.” Também não podia chegar perto das duas irmãs nem passar o dia inteiro a brincar com bebés como Charlotte e Gertie!
Embora exteriormente se mostrasse calma e andasse de um lado para o outro como se nada fosse, a mãe estava preocupada. “Mantenha as doentes afastadas das que estão saudáveis”, ordenara o Dr. Fuchs. O melhor era deixar Ella e Sarah dormir no seu quarto e ficar junto delas. As crianças doentes precisam muitas vezes da mãe durante a noite.
Podiam usar a cama desdobrável que tinham para as emergências. O pai podia dormir no sofá da cozinha ou, se não quisesse, dormia na cama de Ella e de Sarah, no quarto das meninas.
A mãe preparou o quarto que ia ser o das doentes por muitas semanas. Depois, vestiu outra roupa, levou as doentes para a cama e tornou-lhes tudo tão confortável quanto podia. Em seguida, voltou a mudar-se e foi para a cozinha.
– Ouviram todas o que o médico disse – explicou então às filhas que não estavam doentes. – Não podem ir nunca ao quarto onde Ella e Sarah estão. Não quero que fiquem também doentes. Henny, leva esta receita à farmácia, por favor. Tens de esperar até que o remédio esteja pronto para depois o trazeres. Dá um salto ao pai, e diz-lhe que as meninas estão com a febre escarlatina. Charlotte e Gertie, vocês vão ajudar-me a arrumar outra vez os pratos. Por ora, não precisamos deles.
– Mãe – perguntou Charlotte – vamos, mesmo assim, festejar a noite de Seder (Seder (hebreu “Ordem”) Refeição de festa da festa das duas primeiras noites da Páscoa)?
– Claro que sim! – respondeu a mãe.
– A Ella e a Sarah já vão estar boas? – perguntou Gertie.
– Não, acho que não. É claro que já vão estar melhor – acrescentou rapidamente – mas vão ter de continuar de cama.
Nessa noite, a mãe foi acordada por um choro abafado. Despertou imediatamente, como sempre acontecia quando uma das filhas precisava dela, e reconheceu a voz de Sarah.
– Não chores – acalmava-a a mãe – que eu estou à tua beira.
– Enxota-o! Enxota-o! – chorava Sarah.
– Sim – respondeu a mãe. – Já o enxotei.
Não fazia nenhum sentido dizer a uma criança a arder de febre que não havia nada para enxotar.
Ella sentou-se na cama e perguntou:
– Está a delirar, mamã?
– Está. Se calhar teve sonhos maus. Daqui a pouco já se acalma.
– Tive um sonho tão mau! – soluçou Sarah. – Uma coisa estava a crescer cada vez mais e eu não conseguia pará-la. Os meus dedos iam ficando cada vez mais inchados, e a cara também. Pensei que ia rebentar. Fiquei tão assustada que chamei por ti!
– Eu estou aqui, não tenhas medo. Volta a adormecer. Eu sento-me à tua beira e mando tudo embora.
Dito isto, a mãe sentou-se na cama de Sarah, no silêncio da noite, segurando-lhe as mãos, até as duas crianças adormecerem. Depois, pousou cuidadosamente a mão de Sarah e voltou para a sua cama.
De manhã, as duas meninas pareciam melhor, embora a cara de Sarah estivesse cheia de manchas vermelhas. Ella achou muita graça à figura da irmã, até ao momento em que se deu conta de que ela própria também tinha manchas na testa e à volta das orelhas.
Mais tarde, veio um funcionário do Ministério da Saúde e afixou na porta da cozinha um selo de quarentena. Charlotte e Gertie iam constantemente lá fora e ficavam a olhá-lo, cheias de respeito.
Nessa tarde bateram à porta.
– Quem é? – gritou a mãe.
– Sou eu, o Charlie. Não tenha medo, que não quero entrar. Só venho para conversar um bocadinho.
A mãe saiu para falar com Charlie, o empregado do marido.
– Como estão a Ella e a Sarah? – perguntou.
– A Sara não passou nada bem esta noite.
– Isto é muito difícil para si – disse Charlie com simpatia. – Há alguma coisa em que possa ajudá-la? Quer que vá comprar alguma coisa?
– Obrigada, Charlie, mas o meu marido já foi hoje às compras.
– Eu trouxe uma coisinha para as doentes, para elas se irem entretendo um pouco. Está a ver o embrulho aí ao canto, ao pé da porta? Sim, é esse – disse, quando a mãe pegou no embrulho. – E não se preocupe demasiado, mãe!
As doentes alegraram-se com o presente. Dentro do embrulho havia duas ardósias pequenas com esponja e uma caixa com giz de cor.
– O Charlie é amoroso. Pensa em tudo – disse Ella.
Os três dias seguintes passaram depressa. O doutor vinha de manhã, examinava as doentes, brincava com as outras, e voltava a sair. Durante o dia, Sarah estava alegre e cheia de vivacidade, e ela e a irmã conversavam muito uma com a outra. Durante a noite, a febre subia e chamavam então pela mãe, que passou mais três noites sem dormir.
Ao pequeno-almoço do quarto dia, esta anunciou:
– Hoje à noite começa o Pesach.
A mãe tinha concluído todos os preparativos. A casa estava a brilhar e os pratos para o Pesach estavam limpos. O Sr. Basch, o merceeiro, tinha amontoado diante da porta uma quantidade de embrulhos com comida especial para o Pesach.
As doentes estavam melhor. As erupções na cara e no corpo estavam a diminuir.
Nessa tarde, Charlotte e Gertie estavam sentadas no sofá da cozinha a fazer desenhos engraçados. As duas meninas tinham estado o dia todo estranhamente sossegadas. Se a mãe não tivesse tanto que fazer, de certeza que teria notado e estranhado mas, como não se dera conta, foi apanhada de surpresa pelas palavras de Charlotte:
– Mãe, sinto-me esquisita. Dói-me tanto a garganta!
E, como se isto não bastasse, Gertie disse também:
– A mim não me dói a garganta, mas sinto-me tão cansada!
– Era engraçado se também apanhássemos a escarlatina – disse Charlotte. – Assim, a nossa casa tornava-se um hospital a sério!
A mãe não achou graça e disse apenas:
– Vamos pedir ao Dr. Fuchs que vos examine também. Ele já deve estar a chegar.
O Dr. Fuchs veio e examinou-as. Não havia dúvida: a mãe tinha mais dois casos de escarlatina para tratar.
Henny foi informar o pai. Quando regressou, já havia quatro camas no quarto das doentes, e Charlotte e Gertie tinham sido metidas na cama. Ella e Sarah deram-lhes as boas vindas efusivamente. Henny, pelo contrário, andava na cozinha de um lado para o outro. Porque é que era a única que não estava doente? Agora é que não tinha mesmo mais ninguém com quem brincar.
A primeira noite de Seder tinha chegado. Que vazia parecia a mesa, só com três talheres! Nos anos anteriores, tinham sido convidados pobres, amigos e parentes! Os copos de cristal brilhantes foram enchidos de vinho: um grande para o pai, um médio para a mãe, e um pequeno para Henny. Um guardanapo imaculado cobria o tabuleiro de Seder que o pai tinha previamente preparado. Na bandeja estavam três pedaços de pão matzo (mão israelita feito sem fermento), símbolo da união, pois todos os Judeus deviam ser irmãos. No canto superior direito da bandeja, o pai tinha posto os ossos do cordeiro da Páscoa, e no canto superior esquerdo, um ovo cozido com casca, ambos símbolo das oferendas que nos tempos antigos eram feitas pelos Judeus e sacrificadas nesse dia sagrado. No centro da bandeja havia rábano picante e ervas amargas. No canto inferior direito, um pequeno recipiente com uma mistura de amendoins, maçãs descascadas e vinho, que representavam a argamassa e os tijolos que os Judeus tinham feito para o faraó do Egipto, há muitos milhares de anos. No canto inferior esquerdo havia um raminho de salsa, símbolo da Primavera e da esperança.
A cadeira do pai e o sofá de couro foram chegados à frente para perto da mesa e forrados com almofadas. Enquanto tomavam a refeição, o pai e a mãe iriam recostar-se neles como se fossem rei e rainha.
Nessa noite, não precisavam de ter medo de que não houvesse Haggadahs que chegassem para todos. Haggadahs são pequenos livros muito finos que remontam a mais de dois mil anos e onde está registada a história do Pesach. Os Haggadahs da família estavam escritos em inglês e em hebraico para as crianças poderem seguir a leitura do pai.
Neste Pesach, a mais antiga e a maior das festas judaicas, que começava com um bonito e colorido festejo, havia quatro meninas doentes, de cama, a chorar, porque não podiam participar totalmente.
O pai vestiu a bata de linho branco, pois desde os tempos antigos que as vestes de festa dos Judeus eram brancas, e parou por um momento em frente da porta do quarto, aberta para as crianças poderem ver o seu aspecto solene.
– Não chorem – pediu-lhes. – Vamos deixar a porta aberta e eu vou ler em voz alta para poderem ouvir-me. Se escutarem com atenção, também estarão a participar.
As doentes enxugaram os olhos e passaram a escutar atentamente, embora nada pudessem ver da celebração.
Lavadas as mãos, fez-se a bênção do vinho, que em seguida foi bebido. O pai voltou a encher os copos e distribuiu pequenos ramos de salsa que todos mergulharam em água salgada e em seguida comeram. A água salgada simbolizava as lágrimas que os Judeus haviam vertido quando eram escravos no Egipto. O pai partiu o segundo matzo e escondeu um pedaço grande entre as almofadas da cadeira. Em todas as noites anteriores de Seder, as filhas tinham-lhe seguido os movimentos com atenção, pois aquela que conseguisse tirar o pedaço de pão sem o pai dar conta recebia deste, como recompensa, o que quisesse. O pai tinha sempre dificuldade de saber quem tinha sido o ladrão, mas esta noite não ia haver dúvidas.
Os Haggadahs estavam abertos e o pai começou a cantar em hebraico: Todos vós, que tendes fome, vinde e festejai, todos vós, que não podeis festejar o Seder, vinde e festejai connosco.
Em breve chegaram à parte da cerimónia em que o filho mais novo da família ou, na ausência deste, a filha mais nova, pedia uma explicação sobre a festa. Gertie ensaiara o seu papel durante semanas, e agora não estava à mesa para poder desempenhá-lo. O pai esperou e, em breve soou, vinda do quarto, a vozinha infantil a cantar, hesitante:
Pai, porque é que esta noite é diferente das outras?
Quando a menina acabou, o pai começou a ler com rapidez. Hoje soava apenas a sua voz mas, nas outras noites de Sedar, cantavam todos os convidados.
A celebração continuava e, enquanto o pai cantava, as páginas eram viradas umas atrás das outras, até que os Haggadahs foram finalmente postos de parte.
Teve início a refeição. Bebeu-se o segundo copo de vinho e voltaram a lavar as mãos. O pai estendeu um matzo e os três deram graças. Comeram as ervas amargas. A mãe trouxe para a mesa uma terrina cheia de ovos cozidos, pois os ovos simbolizavam vida e saúde. Foram mergulhados na água salgada e comidos. Após o primeiro prato, seguia-se sopa de galinha com almôndegas pequenas, feitas de farinha de matzo, depois havia galinha, legumes e fruta cozida a vapor.
Quando a refeição acabou, o pai procurou o pedaço de matzo escondido. Tinha desaparecido. Gertie gritou do quarto:
– Mas vocês prometeram-me que hoje eu podia roubar o afikomen (nome dado ao pedaço de pão matzo que é escondido propositadamente.)! Era a minha vez! E ele agora desapareceu e eu não vou receber nenhuma prenda!
– Não te zangues, Gertie – gritou Henny. – Tenho-o eu! E só o dou ao pai se ele nos oferecer às duas uma coisa!
Os olhos do pai piscavam, divertidos.
– Mas isto é uma violência! – disse. – O que posso oferecer-vos em troca do afikomen?
– Eu quero um tanque de roupa pequenino e uma tábua para poder lavar a roupa das minhas bonecas! – gritou Gertie imediatamente.
– Muito bem. E tu, Henny?
– Oh, eu queria uma moeda de cinco cêntimos. Mas jura-nos que vamos receber as prendas!
O pai prometeu e Henny entregou-lhe o afikomen. O pai partiu um pedaço para cada, como sobremesa, da mesma forma que nos tempos antigos era dado um pedaço do cordeiro da Páscoa a quem entrava no templo.
E era agora altura de abrir a porta ao profeta Elias, que um dia viria anunciar a chegada do Messias. Foi-lhe enchido um copo com vinho, pois dizia-se que na noite de Seder ele ia a todas as casas. Abria-se a porta para que entrasse e bebesse o vinho. As crianças não tiravam os olhos da porta e esperavam vê-lo, ou pelo menos ouvir o barulho das asas ao entrar.
As meninas nunca o viam nem ouviam, mas, de todas as vezes, estavam certas de que havia um pouquinho menos de vinho no copo do que antes de abrirem a porta.
– Pai! – gritaram. – O vinho não diminuiu?
– Sim – respondeu o pai. – Vejo que o profeta Elias esteve aqui!
Henny confirmou:
– De certeza absoluta que esteve aqui.
Já era tarde, as doentes estavam cansadas, por isso todos dispensaram as canções tradicionais. Henny e a mãe arrumaram tudo rapidamente e assim se passou a primeira noite de Seder.
A família tinha-se habituado à ideia de estar completamente só. Para a mãe, os dias haviam sido tão cheios de trabalho, que nem lhe sobrara tempo para pensar. Também tinha desistido de proteger Henny da febre escarlatina. Era esforço em vão, porque mal a mãe virava costas, Henny já estava no quarto das doentes. Além disso, o Dr. Fuchs tinha a impressão de que Henny não era atreita a esta doença, caso contrário já a teria contraído há muito tempo.
O único contacto que a mãe tinha para com o exterior era através da janela. Todos os dias, por volta do meio-dia, tocavam à campainha da porta. A mãe corria à janela da sala para cumprimentar os familiares que nesse dia vinham perguntar como iam as pequenas.
Charlie também batia à porta, dia sim, dia não, perguntava pelas crianças e deixava-lhes qualquer objecto pequeno: algumas folhas de papel de cor, ou uma carta engraçada, que fazia rir as meninas. Uma vez, Charlie trouxe cerejas cristalizadas, que elas adoraram. Outras vezes o pacote-surpresa trazia um brinquedo qualquer ou um jogo de tabuleiro.
– Charlie – dizia a mãe – nunca conheci ninguém que gostasse tanto de crianças! As meninas ficam felizes com os seus embrulhos, agradecem e mandam-lhe cumprimentos. Como podemos agradecer-lhe?
– São coisas sem importância – respondia Charlie embaraçado. – Só quero que as meninas fiquem contentes! – E desapareceu imediatamente pelas escadas abaixo.
Uma vez, o carteiro deixou um grosso envelope castanho que vinha dirigido às crianças. Nunca ninguém lhes tinha mandado nada pelo correio, e mal podiam acreditar que fosse para elas.
Ella abriu-o e retirou um exemplar novinho de uma revista infantil. Trazia presa uma carta, que Ella leu em voz alta. Era de Miss Allen, a bibliotecária, a pedir às crianças que se curassem depressa. Estava com saudades das suas carinhas alegres.
– É tão querida! – disse Sarah. – Gosto tanto dela!
– Todas nós gostamos dela – disse Ella, e a opinião era unânime.
O Pesach chegou ao fim e as meninas curaram-se. Tinha chegado o dia em que a casa iria ser desinfectada e, quando finalmente chegou, o funcionário do Ministério da Saúde foi recebido com vivas e aplausos.

tradução e adaptação

Sydney Taylor
Die Mädchenfamilie
München, DTV Junior, 1988
Excertos adaptados

O coelhinho de orelhas azuis

Era uma vaez um coelhinho que tinha orelhas azuis da cor do céu. Quando reparou que os outros coelhos não tinham as orelhas da mesma cor, ficou muito envergonhado. Deixou de brincar com eles e preferiu estar sozinho.
O único amigo que tinha era a lua que aparecia no céu, à noite. O coelhinho contava-lhe toda a sua tristeza, mas a lua nunca lhe respondia. Por isso, decidiu sair dali e procurar um sítio onde ninguém o conhecesse. Mas, para onde quer que fosse, todos ficavam admirados com as suas orelhas azuis e riam-se dele. “O meu lugar não é aqui, e a culpa é das minhas orelhas azuis.”
Um dia, ao passar em frente de uma casa, encontrou no chão o chapéu de um limpa-
-chaminés. “É exatamente disto que estou a precisar!”, pensou o coelhinho. E escondeu as orelhas debaixo do chapéu. Aprendeu a subir às chaminés, a trabalhar com a vassoura e a limpar os fogões.
— Agora pertenço à corporação dos limpa-chaminés — disse o coelhinho.
Mas, certo dia, o chapéu ficou-lhe preso na chaminé e os outros limpa-chaminés viram as suas orelhas azuis. Começaram imediatamente a rir e a gritar:
— Não és um limpa-chaminés a sério!
O coelhinho, cheio de vergonha, fugiu dali a correr e só a lua o acompanhou. Depois, encontrou um chapéu de cozinheiro em frente de um restaurante. “É exatamente disto que estou a precisar!”, pensou o coelhinho. E escondeu as orelhas debaixo do chapéu de cozinheiro. Aprendeu a manusear uma frigideira, a cozinhar legumes e a assar carne.
— Agora faço parte da corporação dos cozinheiros — disse o coelhinho.
Mas, certo dia, o chapéu voou-lhe para a sopa e os outros cozinheiros viram as suas orelhas azuis. Começaram então a rir e a gritar:
— Tu não és um cozinheiro a sério!
O coelhinho, cheio de vergonha, fugiu dali a correr e só a lua o acompanhou. Em frente de uma casa, encontrou então um chapéu de jardineiro. “É exatamente disto que estou a precisar!”, pensou o coelhinho. E escondeu as orelhas debaixo do chapéu de jardineiro. Aprendeu a cavar, a plantar árvores e a cuidar de flores.
— Agora pertenço à corporação dos jardineiros — disse o coelhinho.
Mas, certo dia, uma forte rajada de vento arrancou-lhe o chapéu da cabeça e os outros jardineiros viram-lhe as orelhas azuis. Começaram imediatamente a rir e a gritar:
— Tu não és um jardineiro a sério!
O coelhinho, cheio de vergonha, fugiu dali a correr e só a lua o acompanhou. Ao passar diante de um circo, encontrou o chapéu de um palhaço. “É exatamente disto que estou a precisar!”, pensou o coelhinho. E escondeu as suas orelhas debaixo do chapéu de palhaço. No circo, aprendeu a tropeçar nos próprios pés e a fazer caretas.
— Agora pertenço à corporação dos palhaços — disse o coelhinho.
Até que um dia, um macaco lhe roubou o chapéu da cabeça e os outros palhaços viram as suas orelhas azuis. Começaram a rir e a gritar:
— Tu não és um palhaço a sério!
O coelhinho, cheio de vergonha, fugiu dali a correr e só a lua o acompanhou. Certa vez encontrou, debaixo de uma ponte, o chapéu de um vagabundo. “É exatamente disto que estou a precisar!”, pensou o coelhinho. E escondeu as orelhas debaixo do chapéu de vagabundo. Aprendeu a ser preguiçoso, a deitar-se à sombra, e a sonhar durante o dia.
— Agora faço parte da corporação dos vagabundos.
Mas, certo dia, o rio levou-lhe o chapéu e os outros vagabundos viram as suas orelhas azuis.
— Tu não és um vagabundo a sério!
Então o coelhinho não quis continuar a fugir nem usar mais nenhum chapéu. Sentou-se à beira de um regato no meio de um bosque.
— Não sou um limpa-chaminés a sério, nem um cozinheiro, nem um jardineiro, nem um palhaço, e também não sou um vagabundo. Afinal, quem sou eu?
Nesse momento, a lua apareceu no céu e transformou o regato num espelho. Aí, o coelhinho descobriu outro coelhinho, ele mesmo. E o coelho tinha orelhas azuis. Quanto mais olhava para si à luz da lua, mais gostava daquelas orelhas, das suas orelhas. Até que, de repente, descobriu: a culpa da sua infelicidade não eram as orelhas, mas sim o facto de ter sentido vergonha delas.
O coelhinho desatou a correr, e só a lua o acompanhava. Pelo caminho, encontrou os vagabundos, os palhaços, os jardineiros, os cozinheiros e os limpa-chaminés. A todos mostrou, com orgulho, as suas orelhas azuis e ninguém pensou em rir-se delas.
E o coelhinho ficou contente com tudo o que tinha aprendido: a subir à chaminé, a trabalhar com a vassoura, a limpar fogões, a segurar uma frigideira, a cozinhar legumes, a assar carne, a cavar a terra, a plantar árvores, a cuidar de flores, a tocar trompete, a tropeçar nos próprios pés, a fazer caretas, a preguiçar, a deitar-se à sombra e a sonhar. Continuar a ler

A Gata e o Sábio

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O sábio de Bechmezzinn (aldeia situada no norte do Líbano) era muito rico. Dedicava o melhor do seu tempo ao estudo e a tratar os doentes que o procuravam. A sua fortuna permitia-lhe socorrer os infelizes e toda a gente dizia que ele era a dedicação em pessoa.

Homem piedoso e recto, a injustiça revoltava-o. Muitas pessoas vinham consultá-lo quando tinham alguma divergência com vizinhos ou parentes. O sábio dava os melhores conselhos e desempenhava frequentemente o papel de mediador.

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Bemol Saltitante, um ratinho ao piano

Bemol Saltitante, um ratinho ao piano

O ratinho Bemol Saltitante adorava música. Por isso, vivia dentro de um piano. Era um lugar amplo, elegante e quentinho, mas o que mais lhe agradava era que todos os dias podia ouvir música durante horas.

O dono do piano era um pianista que adorava a sua profissão, pelo que passava dias inteiros a tocar e tocar. Sonatas, rapsódias, partituras e outras peças de música ecoavam na enorme sala, e escapavam pelas janelas.

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A cambalhota do macaco

A cambalhota do macaco

Numa montanha a Oriente, lá muito em cima, onde já nenhum pássaro quer fazer o ninho, havia um ovo de pedra. O vento soprava-lhe e o sol batia-lhe, ninguém sabia há quanto tempo. Um dia, a montanha moveu-se, moveram-se as pedras até ao cume mais alto, o ovo rachou e abriu-se. Saltou um macaco. O corpo era de pedra brilhante, onde a luz do sol se reflectia.

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A noite em branco de Raimundo

A noite em branco de Raimundo

Raimundo é um menino de sete anos. Anda na escola primária e está a aprender a ler e a contar. Aprende também a escrever e a escutar sem falar, quando a professora explica. Raimundo gosta muito de jogar futebol, de brincar às caçadinhas e de pegar no tabuleiro quando come na cantina. Não gosta que os grandes o empurrem no recreio nem de ir com a mãe às compras depois da escola. Quando for grande, quer ser fabricante de jogos de vídeo. Mas isso, só mais tarde. De momento, o que Raimundo mais quer é passar uma noite em branco. Uma noite em branco a sério, como fazem os adultos.

Um dia ouviu os pais falarem disso e, a partir daí, Raimundo não quer outra coisa. Hoje está mesmo decidido: vai viver a sua primeira noite em branco.

Raimundo sabe muito bem que não vai ser fácil. Se não, não era proibido às crianças. Deve ser perigoso. Mas como amanhã não há escola, Raimundo sente-se capaz de enfrentar todos os perigos. Já tem tudo preparado: um anoraque para o caso de a noite ser branca como a neve, um copo grande para o caso de ser branca como o leite, e até molas da roupa. É que um dia a mãe disse-lhe: “Raimundo, estás branco como um lençol!” Não percebeu lá muito bem o que é que aquilo queria dizer, mas não faz mal. Se a noite for branca como um lençol, ele terá de a dependurar. Raimundo pensou em tudo e não está a ver o que ainda possa fazer-lhe falta.

Durante o jantar, não pensa noutra coisa. E pensa de tal maneira, que até se esquece de comer. E como Raimundo costuma comer à glutão, a mãe fica preocupada:

— Está tudo bem, meu amor? Estás com um aspecto esquisito!

— Está tudo bem, mamã, só me sinto um bocadinho cansado.

— Terás febre? Ora chega aqui — diz ela, pegando nele ao colo.

Ai! Ai! Ai! Raimundo conhece bem aquele ar preocupado da mãe. Ela não pode pensar que ele está doente. Da última vez que teve febre, a mãe ficou ao pé dele até Raimundo adormecer, e veio várias vezes durante a noite ajeitar-lhe a roupa.

Para a sossegar, Raimundo começa a cantar e a dançar em redor da mesa.

— Não, mamã. Estão a ver? Não estou doente.

— Está bem, está bem — intervém o pai. — Parece que estás em forma. Vá, acaba lá de comer e vai para a cama!

Para não levantar suspeitas, Raimundo faz um pouco de teatro, como costuma fazer quando chega a hora de ir para a cama.

— Vamos lá, cavalheiro, fecha os olhos. Sonhos cor-de-rosa!

Depois o pai dá-lhe um beijo na testa e sai muito devagarinho.

Debaixo dos cobertores, Raimundo procura não se mexer. E não se mexe mesmo nada. Raimundo espera… espera… Boceja e espera. Tem a impressão de esperar horas. Em baixo, os pais discutem. “Mas então os adultos nunca mais vão para a cama?”, interroga-se ele. Ao fim de muito tempo, ouve-os subir as escadas. Desta vez, sim! Estava a ver que nunca mais chegava a hora. Oh, não, os pais ainda continuam a falar! Raimundo tem vontade de se levantar e de lhes dizer que se vão deitar. Pergunta-se como é que o pai e a mãe, que se vêem todos os dias, ainda têm tanta coisa a dizer um ao outro. Certamente é mais um dos segredos das pessoas crescidas!

Até que enfim: tudo parece calmo.

Raimundo levanta-se devagarinho. Fecha a porta do quarto e tira de debaixo da cama o copo, o anoraque e as molas da roupa. Agora está pronto: a noite em branco pode começar!

Em pijama, senta-se na cama e cruza os braços. Começa a ficar cansado e com os olhos a fecharem-se, mas não pode deixar-se adormecer. Então, põe-se a saltitar no quarto. Não muito alto para não acordar a casa toda.

Para passar o tempo, arruma no álbum os postais de animais e, de seguida, coloca os dinossauros por ordem de tamanho. Depois… começa a aborrecer-se.

Como ainda não sabe ler as horas, não sabe há quanto tempo está à espera. Uma hora? Duas horas? Seja como for, parece-lhe que já espera há mais de um ano. Mas Raimundo não é daquele tipo de rapazinhos que perdem logo a coragem. A noite em branco tem de ser merecida.

Primeiro, é preciso pensar. Uma vez que a noite em branco é para os adultos, não pode fazer brincadeiras de criança. Claro! Devia ter pensado nisso antes! É preciso arranjar uma actividade de gente grande.

É fácil! É… mas ao certo, ao certo, o que é que fazem os adultos quando passam uma noite em claro? Raimundo tenta recordar o que os pais lhe contaram.

Na verdade, eles não lhe contaram absolutamente nada. Nunca lhe disseram o que faziam.

Da última vez que os pais saíram, lembra-se de ter visto a mãe preparar-se. Vestiu uma saia vermelha muito bonita, muito comprida, mas, em vez de calçar sapatos, decidira calçar umas sapatilhas. Ficavam esquisitas com a saia; a mãe explicou-lhe que assim estava mais à vontade para dançar a noite toda. Pois bem, aqui está o que fazem os adultos para passar uma noite em branco: dançam! O problema é que Raimundo não sabe dançar. Às vezes, quando ainda era pequeno, andava à roda com a mãe, mas agora que já tem sete anos, não gosta muito disso. Na escola, as suas amigas dançam muitas vezes no recreio e cantam as canções que estão na moda; e para se armar em grande, Raimundo e os amigos fazem troça delas.

Esta noite, Raimundo lamenta não ter dançado também. Ajudava agora a passar a noite em branco. Mas isso também não deve ser um problema. Com um pouco de vontade, ele vai conseguir.

Raimundo liga o leitor de cassetes que lhe deram quando fez cinco anos. Põe-se a carregar nos botões todos, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, quando, de repente …reineta e maçã francesa; framboesa, framboesa vermelha… ecoou no quarto.

Raimundo até deu um salto para trás. A cassete pôs-se a tocar com o volume no máximo. Atira-se ao aparelho e desliga-o. Com coração aos saltos e o aparelho apertado contra o peito, fica à espera, mas, além do bater do coração, não se ouve mais nenhum barulho na casa.

“Isto das cassetes não é lá muito boa ideia”, diz Raimundo para consigo. Só há canções para bebés. Tem de encontrar canções como as que os pais ouvem no rádio. O rádio! É isso mesmo! No rádio passa música para os adultos!

Raimundo sai do quarto, atravessa o corredor em bicos de pés e entra no quarto de banho sem fazer barulho. A mãe adora ouvir música quando está a tomar banho. Desta vez, Raimundo tem cuidado para não pôr o som muito alto, e liga o rádio pequenino que está em cima do móvel, ao lado do lavatório.

Uma rapariga canta: A minha viiida é para te amar… nunca esquecerei os beijos apaixonados. “Não, esta não é lá grande coisa…”

De orelha colada ao rádio, Raimundo espera por outra canção. Desta vez começa forte. Um cantor grita qualquer coisa que Raimundo não entende. Deve ser inglês. Bem, pelo menos é diferente!

Raimundo serra os punhos – viu os primos grandes fazer assim – balança-se sobre um pé e sobre o outro e abana o rabo. A música vai um pouco mais rápido, mas Raimundo acha engraçado. Vira-se para o espelho, sorri, acha que não está nada mal. Depois, inclina-se para o lado e zás! Uma voltinha… Zás! Pega na escova dos dentes e põe-se a cantar. Vaze sclo flich tav… Não está a sair-se nada mal! Um jeitinho de cabeça para o lado, um saracoteio para a direita e zás! Uma voltinha! Aamo-teee , e a canção chega ao fim. Olha, afinal era francês. A seguinte é do mesmo estilo e Raimundo sente-se cada vez mais à vontade. Mas, de repente… ouve o ranger de uma porta. Lança-se sobre o rádio e desliga-o. Mas tarde demais. Ouve passos a aproximar-se e esconde-se a toda a pressa atrás do cortinado do duche.

De repente, a grande imagem do pai aparece no espelho por cima do lavatório. Raimundo tem vontade de rir ao ver-lhe a cabeça. Com os cabelos desgrenhados, o pai apoia-se na beira do lavatório, boceja ao esfregar a testa e olha para o rádio. Aproxima a cara do espelho e passa as mão pelos pêlos da barba! Como se acabasse de descobrir que tinha pêlos! Na sua idade, já devia estar habituado! Parece não só admirado mas até aborrecido com isso! Raimundo, pelo contrário gostava muito de ter pêlos, porque todos os heróis têm pêlos, toda a gente sabe disso! Se amanhã Raimundo chegasse à escola com barba grossa e preta, a Clementina já não se metia mais com ele!

Raimundo fica com vontade de rir ao imaginar a cara dos seus colegas.

Pronto. Finalmente, o pai sai do quarto de banho. Raimundo corre para o quarto e fecha a porta.

Uau! Talvez ainda não tenha visto a noite em branco mas, para já, está a ser mesmo muito engraçado! Tem pressa de voltar à escola na segunda-feira para contar tudo aos colegas.

A noite ainda não acabou… Bem, a dança foi um fracasso, e agora é preciso encontrar outra coisa. Raimundo dá uma volta pelo quarto. Os dinossauros: estão arrumados! O álbum de animais: está tudo pronto!

Sentado em pijama em cima  da cama, Raimundo pensa, pensa… Quase que adormeceu! Ora deixa cá ver, pensa ele, o que é que os adultos podem fazer mais para passar uma noite em branco, além de dançarem?

Bebem champanhe, pois claro! Na última passagem de ano, os pais foram festejar e levaram uma garrafa de champanhe! Mas é evidente que Raimundo não vai beber champanhe! Um copo de leite, isso sim! Pega no copo que tinha preparado para a sua noite em branco e sai do quarto.

É a primeira vez que se aventura sozinho pela casa, durante a noite. Tem de descer as escadas às escuras, se não quer acordar os pais. Vá, coragem, Raimundo, a casa é a mesma quer esteja iluminada pela lua ou pelo sol.

Mas, ao fundo do corredor, Raimundo fica estarrecido de medo. Dá de caras com uma espécie de gigante com tentáculos, pronto a deitar-lhe as mãos ao pescoço!

Desta vez acabou tudo, nunca mais vai ter uma noite em branco, nunca mais vai ver o novo desenho animado do seu herói preferido, o Musculator Hypertronique, o regresso; nunca chegará a conhecer a irmã grande de Antonino que, segundo dizem, é super-bonita, nunca mais vai ganhar ao pai no xadrez… Vai acabar comido por um monstro. E aos sete anos, não tem graça nenhuma!

O monstro continua imóvel. De tal forma imóvel, que parece morto. Sim, morto, morto de medo, se calhar. Aos poucos, os olhos de Raimundo vão-se habituando à escuridão, e o monstro, visto mais de perto, parece cada vez mais um… um… candeeiro.

Não é um monstro. É aquele horrível candeeiro de pé alto que o tio ofereceu aos pais no ano passado. Com três grandes braços que saem de uma plataforma oval e, na extremidade de cada um, um grande globo prateado.

É a terceira vez, desde o início da noite, que Raimundo tem a impressão de que o coração lhe vai parar. E diz-se mesmo “ficar branco de medo”! É que a noite em branco pode ser isto: ter medo a noite toda. E assim seria muito menos divertido do que o previsto.

Passado o susto — afinal ainda tem possibilidade de vir a conhecer a irmã grande do Antonino — Raimundo desce as escadas e senta-se na cozinha para ganhar fôlego.

Afinal, é giro ser grande e não ter medo de passear pela casa fora, a altas horas da noite!

Abre o frigorífico e pega na garrafa do leite. Enche um copo grande, bebe, volta a encher, bebe de novo, e pergunta o que é que pode ir fazer a seguir.

Raimundo não sabe que horas são. Mas de uma coisa tem ele a certeza: nunca foi tão tarde para a cama. Pergunta-se o que mais poderá reservar-lhe ainda uma noite em branco!

De regresso ao quarto, Raimundo põe-se à janela. Trouxe um copo de leite e bebe-o a olhar para o jardim iluminado pela lua. Tudo parece tão calmo, tão tranquilo.

De repente, um grito na noite fá-lo arrepiar-se. É uma coruja! Mas o grito era tão lancinante que Raimundo entornou o leite todo pelo pijama abaixo! Não haja dúvida, passar uma noite em branco dá que fazer.

Como vai ele explicar à mãe o facto de o pijama estar todo molhado? Ela vai de certeza pensar que ele fez chichi na cama. Mas isso está fora de questão! Raimundo corre para o quarto de banho — agora já não tem medo nenhum de passear no escuro — e leva o secador de cabelo para o quarto.

Despe-se num ápice e, com as molas, prende o pijama na barra da cama e põe-se a secá-lo.

Ainda bem que ninguém o vê! Tem ar de malandro, no quarto, com o secador de cabelo na mão! Se a isso se chamasse “uma noite em vermelho” ainda poderia entender, porque naquele momento estava vermelho de vergonha.

Raimundo continua sem saber o que é uma noite em branco. E pior ainda, começa a sentir frio. Enfia o anoraque e senta-se aos pés da cama. O pijama continua húmido. Raimundo já começa a ficar farto! Toda aquela trabalheira para nada!

Um pouco desiludido, volta para a janela. Lá fora, a lua brilha e, ao fundo da rua, Raimundo vê uma luz branca…muito longe, pequenina. Repara melhor e concentra-se.

Sim, não está a sonhar, há de facto, ao longe, uma luzinha branca. Doido de alegria, Raimundo fixa-se no ponto luminoso. Fixa-o até lhe doerem os olhos, mas a luz não se mexe. Está lá, distante.

Se calhar é um candeeiro de rua. E daí, talvez não!

E se afinal fosse aquilo a noite em branco? Se fosse aquela luzinha que se vê quando está noite escura lá fora?

E porque é que não há-de ser? Raimundo não tem bem a certeza, mas parece-lhe que começa a ter sono. Estende-se na cama, com os braços cruzados debaixo  da cabeça, como vê o pai fazer muitas vezes, e põe-se a pensar. E se ele decidisse, sozinho, como um adulto, que aquela luzinha era a sua noite em branco?

Para poder descobri-la passou por muitas provas. Aprendeu a dançar, a passear no escuro sem ter medo, a desenvencilhar-se sozinho, ficou um pouco mais crescido nesta noite, na sua noite em branco, que foi bem merecida!

E como uma noite em branco é uma espécie de segredo, aquela noite vai ser o seu segredo!

Ao adormecer, Raimundo decide que, quando for mais crescido, há-de voltar a fazer o mesmo, mas desta vez com um amigo, para partilhar um segredo a sério, e talvez para crescerem juntos!

Barnier Armelle

La Nuit Blanche de Raymond

Arles, Actes Sud Junior, 2004

Tradução e adaptação

A menina e o pássaro encantado

A menina e o pássaro encantado

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…
Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…
E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.
Mas chegava a hora da tristeza.
Tenho de ir dizia.
Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…
Eu também terei saudades dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.
Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”
Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…
Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não aguentou mais.
Abriu a porta da gaiola.
Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…
Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…
E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
Que bom pensava ela o meu pássaro está a ficar encantado de novo…
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.
Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!
Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

* * *

Para o adulto que for ler esta história para uma criança:
Esta é uma história sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus…
Depois do adeus, fica aquele vazio imenso: a saudade.
Tudo se enche com a presença de uma ausência.
Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas…
Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles, para sempre… Para que não haja mais partidas…
Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços.
Esta história, eu não a inventei.
Fiquei triste, vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida… E a história simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.
Para quê uma história? Quem não compreende pensa que é para divertir. Mas não é isso.
É que elas têm o poder de transfigurar o quotidiano.
Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. Com isto, angústias e medos ficam mais mansos.
Claro que são para crianças.
Especialmente aquelas que moram dentro de nós, e têm medo da solidão…

As mais belas histórias de Rubem Alves
Lisboa, Edições Asa, 2003

A menina que detestava livros – Manjusha Pawagi

A menina que detestava livros

Era uma vez uma menina chamada Mina. Se, num livro, procurassem o significado do seu nome, descobririam que significa «peixe» em antigo sânscrito. Mas Mina não sabia, porque nunca procurava o significado de nada em lado nenhum. Mina detestava ler e detestava livros.

— Estão sempre no meio do caminho — dizia ela. E era verdade, porque em sua casa havia livros por todo o lado. Não apenas nas prateleiras e nas mesinhas-de-cabeceira, onde normalmente há livros, mas em todos os lugares onde geralmente não há livros.

Havia livros dentro de cristaleiras, de cómodas e de roupeiros, em guarda-fatos e em armários e dentro de arcas. Havia livros em cima do sofá e livros nas escadas, livros a abarrotar dentro da lareira e empilhados em cima de cadeiras.

E o pior de tudo era que os pais de Mina estavam sempre a trazer MAIS livros para casa. Passavam a vida a comprar livros, a trazer livros da biblioteca e a encomendar livros através de catálogo. Liam ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Mas quando perguntavam à Mina se ela queria ler, ela fazia uma birra e gritava: Eu detesto livros! E quando em voz alta tentavam ler-lhe uma história, ela tapava os ouvidos com as mãos e gritava ainda mais alto — EU DETESTO LIVROS!

Havia provavelmente um só ser no mundo que, ainda mais do que Mina, detestava livros. Era o seu gato, Max. Há muito tempo, quando ele era ainda gatinho, caiu-lhe um atlas em cima da cauda. Ficou com a cauda dobrada como um limpa-cachimbos. Desde então, procurava sempre ficar em cima dos livros em vez de ficar debaixo deles.

Uma manhã, depois ter tirado todos os livros do lavatório para lavar os dentes, Mina foi à cozinha preparar o pequeno-almoço para si e para o Max. Primeiro, subiu para cima de uma pilha de volumes de uma enciclopédia, para conseguir chegar aos cereais. Depois, abriu o frigorífico e afastou um monte de revistas para retirar o leite. Deitou um pouco de leite para si e um pouco para o Max.

— Max! — chamou ela. — O pequeno-almoço está pronto!

Mas o Max não aparecia. Tentou novamente.

— Max! — chamou ela. — O pequeno-almoço está pronto! — E ele continuava sem aparecer.

— Onde poderá ele estar? — pensou a Mina. Procurou na banheira e atrás do secador da roupa. Procurou debaixo das escadas e em cima do relógio. Encontrou mais livros, mas não encontrou o Max.

Subitamente, ouviu um grande — Miaaaaaaauu! Correu para a sala de jantar, e lá estava ele, no cimo da pilha de livros mais alta da casa, sem conseguir descer. Esta pilha era formada por todos os livros que os pais estavam sempre a comprar-lhe e que ela sempre se recusava a ler. No fundo da pilha estavam grandes livros ilustrados, como novos, do tempo em que Mina era bebé. No meio, havia livros com o alfabeto e canções de embalar. Em cima, mesmo ao nível do tecto, havia contos de fadas e histórias de aventuras. Os livros estavam todos cobertos de pó.

— Não te preocupes, Max — gritou-lhe Mina.

— Eu vou salvar-te! — E começou a trepar pela pilha de livros acima. De início, foi fácil, porque os livros ilustrados tinham capas duras, e era como se estivesse a subir umas escadas. Mas quando Mina chegou aos livros de capa mole, falhou-lhe o pé num livro de poemas, perdeu o equilíbrio e começou a escorregar.

CATRAPUM! Os livros foram pelos ares. Caíram por todos os lados, as lombadas abriram-se pela primeira vez, e as páginas separaram-se. À medida que os livros iam caindo, iam acontecendo coisas estranhas. Pessoas e animais começaram a cair das páginas e a rebolar pelo chão. Caíam uns em cima dos outros, espalhando os livros e fazendo tombar as cadeiras.

Havia príncipes e princesas, fadas e rãs. E, depois, um lobo e três porquinhos e um troll traquinas em cima de um tronco. O Humpty Dumpty foi pelos ares e depois partiu-se ao meio, por detrás da Mãe-Pata e de uma girafa roxa. Havia elefantes, imperadores, avestruzes e duendes, e uma variedade de macacos, todos emaranhados uns nos outros.

Mas acima de tudo havia coelhos, por todos os lados. Coelhos selvagens, coelhinhos brancos e coelhos de chapéu.

Mina sentou-se no meio daquilo tudo, demasiado surpreendida para se mexer. — Eu pensava que os livros estavam cheios de palavras, não de coelhos! — disse ela, quando caíram mais seis coelhos aos trambolhões de um livro ao seu lado.

Agora, ela já não reconhecia a sala de jantar. O elefante estava equilibrado, em cima de uma mesa de café, a fazer malabarismos com os pratos do melhor serviço. Os macacos tinham arrancado as cortinas e feito delas capas. E os coelhos mordiscavam as pernas da mesa.

— Parem! — gritou Mina. — Voltem para os vossos livros! — Mas havia tantos latidos e grunhidos e passos pesados, que ninguém a ouviu falar. Mina pegou no coelho que estava mais perto dela e tentou metê-lo dentro de um livro de cozinha, mas ele assustou-se tanto, que se contorceu, escapou-se-lhe das mãos e fugiu. Ela abriu outro livro, de onde saíram quatro patos a voar. Voltou a fechá-lo. — Isto não vai resultar — disse Mina. — Não sei a que livro pertence cada um deles. — Pensou por um minuto. — Já sei — disse ela. — Vou perguntar a todos onde pertencem.

Começou por uma criatura estranha que não reconhecia de todo. — Quem és tu? — perguntou ela. — A é de Aardvark! — disse o animal, zangado, e afastou-se à procura do livro do Alfabeto.

Ela encontrou um lobo a chorar debaixo da mesa da sala de jantar e perguntou-lhe onde é que ele pertencia. — Não me recordo se sou do Capuchinho Vermelho ou dos Três Porquinhos! — disse ele a chorar e assoou-se à toalha da mesa. Mas Mina não podia ajudá-lo, porque nunca lera nenhuma das histórias.

Então teve outra ideia. Agarrou no livro que estava mais perto de si e começou a ler em voz alta. — Era uma vez — começou Mina. — Numa terra muito, muito distante…

Devagar, os animais pararam de saltar e de uivar e de falar depressa e de conversar. Aproximaram-se dela para ver o que ia acontecer. Passado pouco tempo, estavam todos sentados em círculo à sua volta, a ouvi-la ler.

Quando Mina chegou ao cimo da segunda página, os porcos que estavam no círculo levantaram-se de um pulo. — Somos nós! — gritaram eles — E a nossa página! Esse é o nosso livro! — Saltaram do círculo, pularam para o colo de Mina e desapareceram dentro dele. Mina fechou-o, antes que eles pudessem pular outra vez cá para fora.

Pegou noutro livro de histórias. Um a um, começou a ler todos os seus livros. E, um a um, os animais encontraram o livro a que pertenciam.

Por fim, ficou na sala apenas um coelhinho vestido com um casaquinho azul. Mina agarrou no livro devagar. Era A História de Pedro Coelho (The Tale of Peter Rabbit, em inglês), — Talvez eu possa ficar com este coelho para mim — pensou ela. Estava a começar a sentir-se sozinha, agora que todos se tinham ido embora.

Mas o coelho ficou à frente de Mina, apoiando-se ora numa pata, ora noutra, nervoso, mexendo o nariz peludo. Estava ansioso por regressar a casa. Então, com um grande suspiro, Mina abriu o último livro. O coelho saltou lá para dentro, abanou a cauda e desapareceu.

A casa ficou em silêncio. O Max estava sentado em cima de uns livros, a lavar a cara. Mina suspirou: — Nunca mais vou voltar a ver aqueles coelhos! — disse ela.

Em seguida reparou que os livros ainda ali estavam, à sua volta. Começou a sorrir.

Quando os pais chegaram a casa nessa tarde, custou-lhes a acreditar no que estavam a ver. Não era por as cortinas terem desaparecido e por os pratos estarem partidos, e as pernas da mesa, roídas. Mas sim porque ali mesmo, no meio da sala, estava Mina. E estava a ler um livro.

Manjusha Pawagi
A Menina que Detestava Livros
Lisboa, Terramar, 2005

Lídia – Nuno Higino

Lídia

Lídia era bonita porque tinha um nome bonito e porque a uma história de Natal convém uma menina bonita. Vivia num apartamento muito alto, voltado para o mar. Tinha um quarto onde dormia, um quarto onde estudava e um quarto onde brincava. Este era o mais bonito de todos. Tinha imensos brinquedos vindos das mais diversas partes do mundo. Tinha brinquedos com música dentro, daquela música duma melodia finíssima e límpida, como uma filigrana. Tinha brinquedos de onde saía uma música que parecia vir de dentro da terra, espessa, distante, quase triste. Tinha brinquedos que exalavam música como se nascesse nas altas montanhas, rarefeita e leve, trazida em asas de condor.

Todos estes brinquedos alegravam Lídia que, muitas vezes, chamava os seus amigos e, no fim da escola, ficavam ali a brincar, a olhar o mar e a ouvir aquelas músicas que saíam de dentro dos brinquedos.

Os pais de Lídia eram viajantes e raramente estavam em casa. Aliás, a sua casa era o avião, tantas as vezes que voavam de cidade para cidade, de continente para continente. Mas quase todos os dias telefonavam a Lídia, perguntando se estava bem e prometendo mais um presente para o regresso. Lídia ficava feliz com os telefonemas, mas quando desligava o telefone, pensava: “Eu gostava tanto de ter os meus pais sempre à minha beira. Gostava tanto que os meus amigos os conhecessem melhor. Gostava tanto de adormecer a seu lado ou acordar com os seus beijos…”

E assim ficava muito tempo suspensa na recordação dos pais. Uma vez ou outra não conseguia evitar uma lágrima mais atrevida. Mas tudo passava e quando os pais regressavam, Lídia matava as saudades, abraçava-os muito, ia com eles jantar fora ou a casa de algum amigo. Só não gostava quando esses encontros eram com pessoas que chegavam sempre atrasadas, passavam a refeição a falar pelo telemóvel e não lhe ligavam importância nenhuma. Se calhar não tinham filhos nem podiam perder tempo com as crianças. Eram homens de negócios.

Regressavam a casa e, logo de seguida, novamente tinham de partir.

— Amanhã sairemos cedo para um país distante…

— Que país é esse? — perguntava Lídia.

— É um país onde há muitas crianças pelas ruas: umas a trabalhar, outras a mendigar, outras a olhar para quem passa. É um país muito grande e muito pobre. Os meninos não têm casa como a nossa, nem escola, nem brinquedos.

— E pais, têm pais? — perguntou Lídia.

— Muitos têm pais, mas são tão pobres, tão desprezados pela vida, que é como se não tivessem.

— Mas eu pensei que vocês só faziam negócios com países ricos, que com os pobres não se negoceia…

— Também fazemos negócios com os ricos, mas, negociando com os pobres, podemos ganhar mais dinheiro, e assim tu terás sempre mais e mais brinquedos.

No meio das conversas, Lídia acabava por adormecer e de manhã, quando acordava, já estava a casa novamente vazia. O que lhe valia é que tinha muitos amigos, com os quais ia tornando menos duras as prolongadas ausências dos pais. Mas o pior foi quando, ao aproximar-se o Natal, Lídia soube pela mãe que tinham uma viagem importantíssima. Por isso não podiam passá-lo em casa.

— Mas nesse país, as pessoas fazem negócios no dia de Natal? — perguntou Lídia.

— Sabes — respondeu-lhe o pai — nesse país o Natal é um dia como outro qualquer. As pessoas têm outros costumes, outra cultura, outra religião.

— Eu pensei que o Natal era Natal em todo o mundo… — disse Lídia com desencanto.

A conversa ficou por ali. Mas Lídia, apesar da tristeza, começou a sonhar com a noite de Natal em casa dos avós. Viriam os primos: a Teresa, a Helena, o Miguel, a Ana e o Luís. Lídia queria fazer-lhes uma surpresa.

Pensou durante alguns dias e, uma noite, teve uma ideia: “Já sei. Vou fazer um teatro em verso.”Lídia gostava de escrever versos e foi escrevendo no seu caderno os versos para o presépio. Mas não os mostrou a ninguém para poder fazer uma surpresa.

Quando chegou a noite de Natal, toda a família se juntou em casa dos avós. Era uma casa muito grande com um terreiro cheio de árvores, umas que tinham folhas todo o ano, outras que no Inverno ficavam todas despidas e à noite pareciam fantasmas gigantes com uma só perna e muitos braços. Entre as árvores havia canteiros de arbustos e plantas. A noite estava de tempestade: a chuva e o vento pareciam dançar uma dança violenta e desconcertada. Os ciprestes que estavam nos cantos do terreiro vergavam-se tanto que pareciam bailarinos em fúria. Mas, na alegria daquela noite, ninguém ligava nada à tempestade.

A consoada era na sala maior: uma sala cheia de brilhos que, reflectidos no espelho ao fundo, a tornavam ainda mais brilhante. Quando a porta de vai-e-vem que dava para a copa se abria, vinham os aromas do Natal e via-se a azáfama das pessoas que estavam na copa e na cozinha e andavam de lado para lado.

Quando todos já tinham consoado, Lídia chamou os primos ao andar de cima e explicou-lhes o seu teatro de verso.

— Todos têm de decorar o seu verso — disse.

Seguiu-se um grande alvoroço com cada um a disputar o seu verso preferido. Quando chegaram a acordo, ensaiaram durante algum tempo e, por fim, desceram, cada um muito senhor do seu papel.

Puseram-se por detrás de um biombo que havia na sala e Lídia pediu silêncio.

— Senhoras e senhores, vamos apresentar: Versos para o Presépio. Ouviram-se palmas, muita excitação e depois fez-se silêncio.

No rosto de todos havia um sorriso de felicidade e curiosidade. Cada um foi saindo na sua vez e dizendo o verso que lhe competia:

Vejo no céu uma estrela
Muito bela.
Navega num mar de prata
Vou com ela.
O seu destino é Belém
Vou também.
Levo flores neste raminho
Para o Menino.
Eu levo um brinquedinho
Para o Menino.
Eu não tenho que levar
Mas vou e oferecerei
Estes versos de cantar.

E todos remataram em coro:

Com as flores e o brinquedo
E estes versos de cantar;
Com a estrela sobre a gruta
E os pastores a dançar,
Meu Menino de Belém
Dança connosco também.

As palmas encheram a sala e parece que os seus brilhos se multiplicavam, dançando nas paredes, no ar, em todos os sítios. Se não fosse a ventania que atirava a chuva contra as portas e as janelas, todos pensariam que, lá fora, o céu era realmente um mar de prata, cheio de estrelas e calmaria.
Ana, que era a mais pequena, não se cansava de saltar, enquanto repetia o seu verso: vou com ela…vou com ela…vou com ela…

Durante um tempo manteve-se este ambiente de excitação e alegria. Tanto mais que, de seguida, foi a distribuição das prendas. Da árvore de Natal cada um foi recebendo os seus presentes: jogos, bonecas, livros de histórias, puzzles, carros telecomandados e até um computador. De todos os presentes que recebeu, Lídia gostou sobretudo do que lhe foi deixado pelos pais: um presépio esculpido em madeira com um Menino negro, sorridente e acariciando o focinho do burro que lhe estava ao pé. Lídia sempre vira o Menino Jesus, branco, deitado nas palhas. Aquela imagem trouxe-lhe à lembrança os meninos negros que tantas vezes via na televisão, esqueléticos, de grandes ventres e um olhar raso de resignação, um olhar de quem foi vencido pela humilhação da fome e do desprezo. Lídia como que ficou ausente da sala, alheia à excitação geral.

Entretanto, veio uma ordem para os meninos se irem deitar. Contrafeitos, lá foram subindo com os seus presentes. Aos poucos, o silêncio foi tomando toda a casa.

Lídia não tinha sono. Quando entrou no seu quarto, sentou-se junto à janela, abriu as portadas, puxou a cortina, colocou o presépio no peitoril e ficou a olhar a tempestade. O vento continuava a agitar as árvores com violência, soltando gemidos tremendos e esmagando a chuva contra as paredes, os muros, as janelas. Mais ao longe, o mar rosnava feroz. Mas, mesmo assim, a sua voz tinha beleza, uma beleza inexplicável.

Lídia encostou o rosto na vidraça para sentir a fúria da tempestade. E pensou nos pais. E pensou nos meninos a quem a miséria roubou o Natal. E pensou que também na sua cidade havia meninos pobres. Mas moravam do outro lado da cidade. E teve vontade de fazer como a menina que conhecia de uma história. Chamava-se Joana e, na noite de Natal, foi levar os brinquedos que recebera ao seu amigo Manuel, que morava do outro lado do pinhal e não ia ter prendas na noite de Natal [A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen]. Mas Lídia não tinha nenhum amigo pobre. Na sua escola não havia meninos pobres. No seu prédio não havia meninos pobres. No seu bairro não havia meninos pobres. Lídia só conhecia os meninos pobres de que lhe falavam os pais, ou os que via na televisão, ou os que moravam do outro lado da cidade, junto ao rio, ou os que, no Verão, vinham arrumar automóveis na praia que havia em frente à sua casa.

Lídia estava muito triste por não poder vencer esta distância entre si e os meninos pobres e por nada poder fazer para alterar a ordem do mundo. E perguntou-se: “Será que os pobres hão-de ser sempre pobres…?” Desencostou o rosto da vidraça e pegou no presépio. Aconchegou-o no colo e acariciou o Menino. Do andar de baixo vinha um ruído distante de talheres e cristais e vozes indistintas. Mas novamente se encostou à janela a ver, ouvir e sentir a tempestade. E, embalada na música da tempestade, Lídia começou a sentir sono. Levantou-se da cadeira, correu a cortina, fechou as portadas, beijou o seu Menino negro, deitou-se e adormeceu.

Natal de 1996

Nuno Higino
A mais alta estrela – Sete histórias de Natal
CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de Canaveses, 2000
Adaptação

O melhor presente de Natal do mundo – a trégua de Natal de 1914

O melhor presente de Natal do mundo

A todos quantos, de ambos os lados do conflito, tomaram parte na trégua de Natal de 1914

Vi-a numa loja de velharias em Bridport. Era uma escrivaninha de tampo corrediço, e o vendedor afirmava tratar-se de uma peça em carvalho do início do século XIX. Há já anos que procurava uma escrivaninha deste estilo, mas nunca tinha encontrado uma que pudesse comprar. Esta não estava em bom estado: a tampa tinha várias rachadelas, uma das pernas estava mal consertada, e havia marcas de queimaduras por todo o lado.

Não era cara, e pensei que poderia tentar restaurá-la eu mesmo. Seria um risco, um desafio, mas era a minha única oportunidade de ter uma escrivaninha de tampo corrediço. Paguei o que o homem pediu, e levei-a para a minha oficina, na parte de trás da garagem. Comecei a restaurá-la na véspera de Natal, sobretudo devido à quantidade de visitas que havia em casa. Faziam muito barulho e eu queria ter algum sossego.

Abri o tampo e puxei as gavetas. Cada uma delas anunciava um desafio maior do que eu tinha imaginado. O verniz estava a descascar um pouco por todo o lado: parecia que a peça tinha sido salva de um naufrágio. Era evidente que esta escrivaninha tinha atravessado fogo e água. A última gaveta estava empenada e tentei abri-la com cuidado. Mas os meus esforços não resultaram e tive de usar toda a força que pude. Bati-lhe com o punho e logo ela se abriu, revelando um compartimento secreto. Este continha uma pequena caixa de folha, com uma folha de papel pautada, na qual a mão trémula de alguém tinha escrito: “A última carta de Jim, recebida a 25 de Janeiro de 1915. Para ser enterrada comigo, quando eu morrer.”

Soube, logo que o fiz, que não deveria abrir a caixa, mas a curiosidade levou a melhor sobre os meus escrúpulos. Como sempre.

Dentro da caixa estava um envelope, endereçado a Mrs Jim Macpherson, I2 Copper Beeches, Bridport, Dorset. Peguei na carta e abri-a. Estava escrita a lápis e datava de 26 de Dezembro de 1914.

Querida Connie

Escrevo-te, feliz, porque acaba de acontecer algo de maravilhoso que quero contar-te já. Ontem de manhã, estávamos todos nas trincheiras. Era Dia de Natal e estava uma das manhãs mais bonitas que vira até então, tranquila e gelada como uma manhã de Natal deve ser.
Gostava de poder dizer-te que fomos nós que tivemos a iniciativa. Mas a verdade, envergonho-me de to dizer, foi que os Alemães é que tomaram a iniciativa. Primeiro, alguém viu uma bandeira branca a ondular nas trincheiras do inimigo. Depois, alguém gritou:
— Feliz Natal! Feliz Natal!
Quando nos tínhamos recomposto da surpresa, alguns de nós retribuíram:
— Feliz Natal para vocês também!
Pensei que tudo ficaria por ali. Todos pensámos. Mas, de repente, vimos um deles, no seu sobretudo cinzento, a agitar uma bandeira branca.
— Não atirem, rapazes! — alguém gritou.
E logo vimos mais Alemães, uns a seguir aos outros, a aproximarem-se da nossa trincheira.
— Mantenham-se em baixo — ordenei aos meus homens. — É uma armadilha.
Mas não era tal.
Um dos Alemães agitava uma garrafa no ar.
— É Dia de Natal. Temos cerveja e salsichas. Querem encontra-se connosco?
Por esta altura, já dezenas deles se dirigiam até nós, atravessando a terra de ninguém que nos separava. Nenhum deles transportava armas.
O soldado Morris foi o primeiro a mexer-se.
— Vamos lá, rapazes! De que estamos à espera?
Ninguém os conseguiu impedir. Eu era o oficial e devia ter travado aquilo imediatamente. Mas nem me ocorreu. Homens de ambos os lados, vestidos com sobretudos cinzentos ou com uniformes caqui, caminhavam em direcção uns aos outros, e eu era um deles. Fazia parte daquilo. No meio da guerra, celebrávamos a paz.
Não podes imaginar, querida Connie, o que senti, quando olhei, nos olhos, o oficial alemão que se aproximava de mim, com a mão estendida.
— O meu nome é Hans Wolf — disse, segurando a minha mão com firmeza e afabilidade. — Sou de Dusseldorf e toco violoncelo na orquestra da cidade. Feliz Natal!
— Sou o Capitão Jim Macpherson — respondi. — Sou professor em Dorset, no leste de Inglaterra. Feliz Natal para si, também!
— Dorset — repetiu. — Conheço muito bem esse lugar.
Partilhámos a minha ração de aguardente e a excelente salsicha dele. E falámos, falámos sem parar. O inglês dele era excelente, mas acontece que nunca tinha posto os pés em Dorset. Tudo o que sabia sobre Inglaterra tinha-o aprendido na escola e nos livros que lia em inglês. O seu escritor favorito era Thomas Hardy,e o seu livro preferido Far from the Madding Crowd. Naquela terra de ninguém, conversámos sobre Bathsheba, Gabriel Oak, Sergeant Troy e Dorset. Tinha mulher e um filho, com seis meses de idade. Enquanto olhava à minha volta, só via manchas de cor cinzenta e caqui a fumar, a rir, a comer e a beber. Hans Wolf e eu partilhámos o que restava do teu óptimo bolo de Natal. Segundo ele, o teu maçapão era o melhor que alguma vez provara. Concordei. Concordávamos em tudo, Connie, e ele era meu inimigo. Nunca houvera uma festa de Natal assim.
Alguém trouxe uma bola de futebol. Os sobretudos foram despidos e transformados em postes de balizas. O jogo começou. Hans Wolf e eu assistimos e encorajámos os jogadores, batendo palmas e batendo com os pés no chão, para afastarmos o frio. Houve um momento em que vi a nossa respiração misturar-se. Ele viu o mesmo e sorriu.
— Jim Macpherson — disse, passado um bocado — penso que é assim que esta guerra devia ser resolvida. Como um jogo de futebol. Ninguém morre num jogo de futebol. Ninguém fica órfão. Nenhuma mulher fica viúva.
— Prefiro o críquete — disse-lhe. — Assim, os Ingleses ganhariam.
Rimo-nos da minha piada e assistimos ambos ao jogo. Pena-me dizer que os Alemães ganharam 2-1. Mas Hans Wolf comentou, com generosidade, que o nosso golo fora mais bem marcado do que o deles.
Quando o jogo acabou, já há muito tinham desaparecido a cerveja, o bolo, a aguardente e as salsichas. Desejei felicidades a Hans e fiz votos de que voltasse a ver a família em breve, de que a guerra acabasse depressa, e de que todos regressássemos a casa sãos e salvos. Respondeu-me:
— Penso que é o que todos os soldados querem, sejam Alemães ou Ingleses. Tome cuidado consigo, Jim Macpherson. Nunca o esquecerei nem esquecerei este momento.
Fez-me continência e afastou-se, devagar, como que involuntariamente. Virou-se para acenar, uma vez mais, e logo se transformou num mais entre as centenas de homens vestidos de cinzento, que regressavam às suas trincheiras.
Nessa noite, ouvimo-los entoar um belo cântico de Natal, “ Noite Feliz”. Os nossos rapazes responderam com “Enquanto os pastores observavam”. Trocámos cânticos durante mais algum tempo e depois calámo-nos. Foi um momento de paz e boa vontade, que recordarei com carinho enquanto viver.
Querida Connie, no Natal do ano que vem, esta guerra não será mais do que uma recordação vaga e terrível. Sei, por tudo o que aconteceu hoje aqui, o quanto ambos os exércitos desejam a paz. Em breve estaremos de novo juntos, tenho a certeza.

O teu querido Jim

Dobrei a carta e coloquei-a de novo no envelope. Não contei a ninguém o meu achado: guardei a vergonha da minha intrusão para mim mesmo. Penso que foi este sentimento de culpa que me manteve acordado toda a noite. Na manhã seguinte, já sabia o que devia fazer. Apresentei uma desculpa qualquer e não fui à igreja com o resto da família. Guiei até Bridport, que ficava apenas a uns quilómetros dali. Perguntei a um rapaz, que passeava o cão, onde ficava a casa.

O número 12 não passava de uma concha vazia, com um telhado em ruínas e as janelas entaipadas. Toquei na casa ao lado e perguntei se sabiam o paradeiro de Mrs Macpherson. Um homem de idade, em pantufas, respondeu afirmativamente. Disse que era uma senhora amorosa, um pouco confusa, o que era normal, dado que tinha 101 anos. Estava em casa quando esta se incendiou. Ninguém sabia como o incêndio começara, mas pensavam que deveriam ter sido as velas. A senhora usava velas em vez de electricidade, porque achava que a electricidade era demasiado cara. O bombeiro tinha-a salvo a tempo. Agora vivia num lar chamado Burlington House, na estrada de Dorchester, do outro lado da cidade.

Encontrei Burlington House facilmente havia serpentinas de papel no corredor e uma árvore de Natal iluminada estava montada num canto, com um anjinho no topo. Disse que era um amigo de Mrs Macpherson e que viera trazer-lhe um presente de Natal. Podia ver, através da porta envidraçada da sala que estavam todos com chapéus de papel e a cantar “Good King Wenceslas”. A Directora também tinha um chapéu e ficou contente por me ver. Até me ofereceu uma tarte de carne picada. Depois conduziu-me ao quarto de Mrs Macpherson.

— Mrs Macpherson não está na sala com os outros, porque hoje sente-se bastante.confusa. Não tem família e ninguém a visita. Tenho a certeza de que vai gostar muito de o ver.

Conduziu-me até uma estufa, cheia de cadeiras de palhinha e vasos com plantas, e deixou-me a sós com Mrs Macpherson. Esta estava sentada numa cadeira de rodas, com as mãos no regaço. O seu cabelo fino, branco e prateado, estava apanhado num rolo. Contemplava o jardim, absorta.

— Olá! — saudei.

Virou a cabeça e olhou-me com um olhar vago.

— Feliz Natal, Connie! — continuei. — Encontrei isto. Penso que é seu.

Enquanto eu falava, os olhos dela nunca se desviaram da minha cara. Abri a caixinha de folha e dei-lha. Os olhos dela iluminaram-se num reconhecimento do objecto e a sua face irradiou uma felicidade súbita. Falei-lhe da escrivaninha, de como a encontrara. Creio que não me ouviu. Ficou calada durante algum tempo, enquanto acariciava a carta gentilmente com os dedos

De repente, pegou na minha mão. Tinha os olhos marejados de lágrimas.

— Bem me disseste que vinhas pelo Natal, querido. E eis-te aqui, o melhor presente de Natal do mundo. Vem para perto de mim e senta-te, meu querido Jim.

Sentei-me ao lado dela e beijou-me a face.

— Estava sempre a ler a tua carta. Era como se ouvisse a tua voz dentro da minha cabeça. Era uma maneira de sentir que estavas comigo. E agora estás mesmo. Agora que voltaste, podes ler a carta tu próprio. Queres lê-la? Só quero ouvir a tua voz de novo, Jim. Depois podemos tomar chá. Fiz-te um belo bolo de Natal em maçapão. Sei o quanto adoras massapão.

tradução e adaptação

Michael Morpurgo
The best Christmas present in the world
London, Egmont Books, 2004

O caçador de borboletas

O caçador de borboletas

Vladimir recebeu muitas prendas no Natal, entre livros, discos, legos, jogos de computador, mas gostou sobretudo do equipamento para caçar borboletas. O equipamento incluía uma rede, um frasco de vidro, algodão, éter, uma caixa de madeira com o fundo de cortiça, e alfinetes coloridos. O pai explicou-lhe que a caixa servia para guardar as borboletas. Matam-se as borboletas com o éter, espetam-se na cortiça, de asas estacadas, e dessa forma, mesmo mortas, elas duram muito tempo. É assim que fazem os coleccionadores.

Aquilo deixou-o entusiasmado. Ele gostava de insectos mas não sabia que era possível coleccioná-los, como quem colecciona selos, conchas ou postais, talvez até trocar exemplares repetidos com os amigos.

Nessa mesma tarde saiu para caçar borboletas. Foi para o matagal junto ao rio, atrás de casa, um lugar onde se juntavam insectos de todo o tipo. Já tinha apanhado cinco borboletas que guardara dentro do frasco de vidro, quando ouviu alguém cantar com uma voz de algodão doce – uma voz tão doce e tão macia que ele julgou que sonhava. Espreitou e viu uma linda borboleta, linda como um arco-íris, mas ainda mais colorida e luminosa. Sentiu o que deve sentir em momentos assim todo o caçador: sentiu que o ar lhe faltava, sentiu que as mãos lhe tremiam, sentiu uma espécie de alegria muito grande. Lançou a rede e viu a borboleta soltar-se num voo curto e depois debater-se, já presa, nas malhas de nylon. Passou a para o frasco e ficou um longo momento a olhar para ela.

— Agora és minha – disse-lhe. — Toda a tua beleza me pertence.

A borboleta agitou as asas muito levemente e ele ouviu a mesma voz que há instantes o encantara:

— Isso não é possível – era a borboleta que falava. — Sabes como surgiram as borboletas? Foi há muito, muito tempo, na Índia. Vivia ali um homem sábio e bom, chamado Buda…

Vladimir esfregou os olhos:

— Meu Deus! Estou a sonhar?

A borboleta riu-se:

— Isso não tem importância. Ouve a minha história. Buda, o tal homem sábio e bom, achou que faltava alegria ao ar. Então colheu uma mão cheia de flores e lançou-as ao vento e disse: “Voem!” E foi assim que surgiram as primeiras borboletas. A beleza das borboletas é para ser vista no ar, entendes? É uma beleza para ser voada.

— Não! – disse Vladimir abanando a cabeça. — Eu sou um caçador de borboletas. As borboletas nascem, voam e morrem e se não forem coleccionadores como eu, desaparecem para sempre.

A borboleta riu-se de novo (um riso calmo, como um regato correndo, não era um riso de troça):

— Estás enganado. Há certas coisas que não se podem guardar. Por exemplo, não podes guardar a luz do luar, ou a brisa perfumada de um pomar de macieiras. Não podes guardar as estrelas dentro de uma caixa. No entanto podes coleccionar estrelas. Escolhe uma quando a noite chegar. Será tua. Mas deixa-a guardada na noite. É ali o lugar dela.

Vladimir começava a achar que ela tinha razão.

— Se eu te libertar agora – perguntou – tu serás minha?

A borboleta fechou e abriu as asas iluminando o frasco com uma luz de todas as cores.

— Já sou tua – disse – e tu já és meu. Sabes? Eu colecciono caçadores de borboletas.

Vladimir regressou a casa alegre como um pássaro. O pai quis saber se ele tinha feito uma boa caçada. O menino mostrou-lhe com orgulho o frasco vazio:

— Muito boa – disse. — Estás a ver? Deixei fugir a borboleta mais bela do mundo.

José Eduardo Agualusa
Era uma vez
Revista Pais e Filhos, s/d