A filha queixava-se ao pai acerca da sua vida e de como tudo lhe era tão difícil. Não sabia como fazer para seguir em frente e acreditava que acabaria por desistir, dando-se por vencida perante as dificuldades. Estava cansada de lutar. Parecia-lhe que sempre que solucionava um problema logo aparecia outro.
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Da devastação
primeiro
negociaram o fim da agricultura
de subsistência; e os pequenos
agricultores como já não precisavam
do estrume
para adubar os campos (com as leiras
abandonadas ou em pousio)
venderam o gado
e o tojo que ano após ano era cortado
para a cama dos animais
começou a crescer abundantemente
nos matos e ao redor das casas;
A árvore dos lamentos
Numa pequena aldeia da Polónia vivia um rabino dotado de grande sabedoria. Os seus seguidores gostavam muito dele e vinham contar-lhe os seus desgostos com frequência. Passado algum tempo, o rabino cansou-se de ouvir as pessoas dizerem que os seus infortúnios eram maiores do que os dos seus vizinhos. Estavam sempre a fazer perguntas do género “Por que não sofre ele como eu sofro?”;“ Por que não tem ela um marido enervante como o meu?”; “Por que não tem ele uma mulher preguiçosa como a minha?”; “ Por que não tem ela dores de costas?”; “ Por que não vivem os filhos dele em casa sem contribuírem para as despesas como os meus fazem?”
Os queixumes continuaram de tal forma que o rabino teve uma ideia e anunciou a todos que iria ser celebrado um novo feriado. Continuar a ler
Interação
A maçã verde
Este é o meu segundo dia na minha nova escola, no meu novo país.
Hoje não vai haver aulas porque vamos para o exterior. Mas os outros dias não serão como este. Amanhã voltarei para a aula em que irei aprender a falar Inglês.
As mães conduzem-nos para um atrelado cheio de feno. Subimos e encostamo-nos aos fardos de feno. O carro é puxado por um trator e todos somos sacudidos de um lado para o outro.
Acho estranho haver rapazes e raparigas sentados, juntos. No meu país não era assim.
Os alunos conhecem-se uns aos outros, mas não me conhecem a mim e eu não os conheço a eles. Quando falam não consigo percebê-los, e eu não posso ainda falar com eles. Alguns são amigáveis. Mas outros olham friamente para mim e sorriem, desdenhosos. Continuar a ler
Deixa-me realizar o meu sonho contigo
Deixa-me realizar o meu sonho contigo.
Chama-se respeito, chama-se delicadeza,
ternura, companheirismo, fidelidade.
Chama-se Amor
Uma história para o dia de São Valentim
Larry e Jo Ann eram um casal normal. Viviam numa casa normal numa rua normal. Como qualquer outro casal normal, tentavam fazer face às despesas e dar o melhor aos filhos.
Mas também eram normais num outro aspeto: tinham as suas discussões. E muitas das questões prendiam-se com o que não estava bem no seu casamento e com quem tinha a culpa. Até que um dia aconteceu uma coisa extraordinária…
— Sabes, Jo Ann, tenho uma cómoda mágica. Sempre que abro uma das gavetas, ela está cheia de meias e roupa interior — disse Larry. — E tenho-me esquecido de te agradecer por contribuíres para isso ao longo de todos estes anos!
O Ann olhou para o marido, espantada. E ele continuou: Continuar a ler
Uma mudança para melhor
Desde pequena que me diziam para não cometer os erros da minha mãe. É certo que ela não tinha tido uma vida fácil: Engravidara aos 17 anos e culpava–me constantemente pelos fracassos da sua vida. Como era incapaz de tomar conta de mim, tiveram de ser os meus avós a ir buscar–me quando eu tinha seis semanas e a criar–me como se fosse filha deles. Continuar a ler
O limpador de placas
Conheci um homem que era limpador de placas de rua.
Todas as manhãs, às sete horas, ele ia para o trabalho.
Para chegar à Central de Limpeza de Placas de Rua, na Praça do Incenso, ele levava mais ou menos meia hora. Cumprimentava o porteiro, fazia algum comentário sobre o tempo e ia para o vestiário.
Lá vestia um macacão azul, botas azuis de borracha, e depois, sem muita pressa, ia para o almoxarifado, onde lhe entregavam uma escada azul, um balde azul, uma escova azul e uma flanela também azul.
Enquanto ia arrumando as coisas, ele conversava com os colegas, que também preparavam seus instrumentos de trabalho. Depois iam todos até ao depósito pegar as bicicletas azuis e saíam pelo portão.
A saída dos limpadores de placas de rua nas suas bicicletas era um espetáculo magnífico. Eles pareciam imensos pássaros azuis saindo do ninho ao mesmo tempo. Continuar a ler
Os Melhores Dias da tua Vida
Quando eu deambulava pelos corredores da escola secundária de Triton, havia uma frase afixada numa das paredes que me irritava imenso: “Estes são os melhores dias da tua vida.” Continuar a ler
Um lobo com pele de cordeiro
Duas semanas após o início do primeiro ano da faculdade, chegou um novo aluno para a nossa turma de biologia. Chamava-se Kyle. Após algumas semanas de aulas, Kyle pediu-me namoro. E eu, radiante, aceitei. Passaram-se alguns meses e tornámo-nos inseparáveis. Continuar a ler
A Viagem de Chase
Quando o meu pai e a minha madrasta souberam que não podiam ter um bebé, decidiram tornar-se uma família de acolhimento. A ideia de dar uma família a uma criança e, ao mesmo tempo, permitir que a nossa crescesse era precisamente aquilo que procurávamos. Passados muitos meses, Chase, um menino de dois anos, entrou nas nossas vidas. Continuar a ler
Tolerância
O sentido literal de tolerância é “suportar em silêncio”. A palavra possui, no entanto, outros sentidos, que passo a enumerar:
a) Enfrentar o contraditório. Testar os limites daquilo em que acredito ou penso acreditar. Ter consciência da minha própria sombra, que tantas vezes vejo refletida nas palavras e nos atos dos outros. Continuar a ler
Obrigada por não me empurrares
As minhas pernas andavam para a frente e para trás. Embora estivesse a usar toda a força que tinha para que o meu baloiço chegasse ao céu, estava muito longe de o conseguir.
— Mãe, podes empurrar-me outra vez?
— Não, filha. Eu sei que consegues chegar mais alto. Concentra-te e continua a usar as tuas pernas. Continuar a ler
O dia mais fantástico
Do lado de fora da minha janela há um cenário de beleza de cortar a respiração. Penhascos encimados por árvores erguem-se ao longo do rio, e, de cada vez que o sol se liberta das nuvens, polvilha as folhas de luz e ilumina o rio de reflexos de ouro.
Cá dentro, mais imagens alimentam os meus olhos. Um Buda sobre uma mesa de cerejeira, a sua eterna gargalhada magistralmente captada por um xilogravador filipino, e um cacho de cristais de quartzo a brilhar aos seus pés. Um conjunto de fotografias — família, amigos e locais longínquos — aumenta o encanto desta exposição.
Adoro a minha parede
Um sábado, depois da nossa excursão pela Pizza Hut, pelo centro comercial e pelo cinema, levei a minha afilhada Samantha, de dez anos, à nova residência da sua família. Quando saímos da auto-estrada para uma estrada de terra que ia ter à sua casa, fiquei desolado ao ver que ela e os pais estavam a viver num velho autocarro escolar no meio do campo.
Pia vê tudo cinzento
Está novamente a chover.
Como tantas vezes, Pia está sentada à janela com o olhar fixo na cidade molhada, lá em baixo. Nada mais do que casas e ruas! Pia só vê cinzento e também se sente assim: cinzenta, sombria e só. Não tem vontade de fazer nada. Há muito que já não consegue rir. Desde que o pai se mudou para casa da namorada. O que foi muito mau! A mãe limitava-se a ficar parada, a pensar e a chorar. Também Pia perguntava constantemente:
— Porque é que o papá fez isto?
— Temos de sair daqui — disse, certo dia, a mãe. — Para longe. Para esquecer! E tenho de voltar a trabalhar, assim fico sem tempo para pensar! Continuar a ler
O remedeio
Catarina torceu o pé na aula de ginástica. Agora tem de usar uma ligadura e coxeia. O facto não é só desagradável para ela. É desagradável para toda a turma porque Cati devia dançar na festa da escola, no parque. O brilhante número da turma do quarto ano está em perigo.
— Que azar! — disse Jacob. — Isto tudo só porque a Cati não quis deixar de ir à aula de ginástica! Nenhuma estrela de dança vai fazer ginástica antes da festa da escola. Devíamos tê-la proibido!
— A Susi pode dançar por ela — propõe Max.
— Eu? — exclama Susi. — Agora assim, de repente? Vocês queriam a Cati! Ela é que não devia ter torcido o pé! Continuar a ler
Tensões étnico-políticas – A Europa no Rescaldo da Segunda Guerra Mundial
Tensões étnico-políticas
A Europa no Rescaldo da Segunda Guerra Mundial
Nas suas memórias do final dos anos 40 e dos anos 50 do século XX, publicadas depois da sua morte na sequência do famoso «assassinato do chapéu-de-chuva», em Londres, no ano de 1978, o escritor dissidente búlgaro Georgi Markov contava uma história emblemática do período do pós‑guerra – não só do seu país mas da Europa como um todo. Envolvia uma conversa entre um dos seus amigos, que tinha sido preso por confrontar um funcionário comunista que tinha passado à frente na fila do pão e um oficial da milícia comunista búlgara:
«E agora diz-me quem são os teus inimigos?», perguntou o chefe da milícia.
K. pensou durante algum tempo e respondeu: «Não sei, acho que não tenho inimigos.»
«Não tens inimigos!» O chefe levantou a voz. «Estás a querer dizer que não odeias ninguém e que ninguém te odeia?»
«Tanto quanto sei, ninguém.»
«Estás a mentir!», gritou, de súbito, o tenente-coronel, levantando-se da sua cadeira. «Que tipo de homem és tu, se não tens inimigos? Claramente não pertences à nossa juventude, não podes ser um dos nossos cidadãos, se não tens inimigos!… E se, de facto, não sabes como odiar, ensinar-te-emos! Ensinar-te-emos muito depressa!»
Em certo sentido, o chefe da milícia desta história tem razão – era praticamente impossível emergir da Segunda Guerra Mundial sem Continuar a ler
A velhinha que dava nomes às coisas
Era uma vez uma velhinha que adorava dar nomes às coisas.
Chamava Betsy ao velho carro que conduzia.
Chamava Fred à velha cadeira onde se sentava.
Chamava Roxane à velha cama onde dormia.
Chamava Franklin à velha casa onde vivia.
E todas as manhãs saía da Roxane, bebia uma chávena de chocolate no Fred, fechava o Franklin, ia aos correios na Betsy. Estava sempre à espera de uma carta, mas só recebia contas para pagar.
Não recebia cartas porque todos os seus amigos já tinham falecido, o que a deixava preocupada. Não lhe agradava a ideia de ser uma velhinha solitária, sem amigos, sem alguém a quem pudesse recorrer.
Então, começou a dar nomes às coisas. Mas só às coisas que sabia que não iriam acabar. O seu carro Betsy tinha circulado mais do que outro qualquer. A sua cadeira Fred nunca empenou na vida. E nem um rangido, nem um gemido ouviu nunca da sua cama, Roxane. E a sua casa, Franklin, continuava de pedra e cal: com mais de cem anos parecia ter pouco mais de vinte.
A velhinha já não se preocupava em sobreviver a qualquer um deles… e vivia feliz. Continuar a ler
Não sou um super-herói!
Tenho seis anos.
Estou no meu quarto.
As paredes são cor de laranja, gosto mesmo dessa cor.
Foi o meu pai que colocou o papel de parede.
A minha mãe costuma gritar muito alto. O meu pai também.
Os gritos fazem-me sempre medo, muito medo.
Ouço outros barulhos, acho que começaram a bater um no outro.
Nunca ouvi a minha mãe gritar assim.
Queria ir lá ver, queria que parassem, mas fico muito quieto na cama.
A minha mãe entra aos gritos no meu quarto, o meu pai veio atrás dela.
Ela quer que eu a proteja.
Ele agarra-a pelos cabelos e começa a puxá-la para fora do quarto.
Ela cai e ele dá-lhe pontapés. Até na cara.
Começo também a gritar.
Quero muito que ele pare, tem de Continuar a ler
Mary Anning, investigadora de fósseis
Mary Anning, investigadora de fósseis
O maior investigador de fósseis conhecido foi uma mulher inglesa chamada Mary Anning, cujas descobertas constituem alguns dos achados geológicos mais importantes de sempre, essenciais para conhecermos a história da Terra.
Aos 12 anos de idade, Mary descobriu o primeiro fóssil de ictiossauro. O fóssil media cinco metros de comprimento e estava incrustado num penhasco íngreme, na costa de Dorset. As suas descobertas incluem outros répteis marinhos antigos, hoje em exposição no Museu de História Natural de Londres, como o plesiossauro e um dos primeiros fósseis de pterodáctilo.
Os rochedos e a praia de Lyme eram ricos em belemnites e amonites, assim como em répteis e peixes, ali deixados 200 milhões de anos antes, durante a Era Jurássica. Anning procurava fósseis na área dos penhascos de Blue Lies, sobretudo durante os meses de inverno, altura em que os deslizamentos de terra expunham novos espécimes, que tinham de ser extraídos rapidamente, antes que fossem levados pelo mar. Era um trabalho perigoso, no qual ela quase morreu em 1833, e que lhe custou a perda do seu cão Tray.
Nascida em 1799, Mary Anning teve de lutar com dificuldades financeiras durante grande parte da sua vida. A família era Continuar a ler
lman Ahmad Jamas, lutando pela paz no Iraque
IMAN AHMAD JAMAS, lutando pela paz no Iraque
“Serão precisos muitos anos para reconstruir o Iraque.
Será muito difícil.”
Jornalista, tradutora e escritora, Iman Ahmad Jamas criou e dirigiu, em junho de 2003, o Observatório da Ocupação no Iraque, uma iniciativa de organizações internacionais e iraquianas para informar sobre a ocupação dos Estados Unidos e seus efeitos políticos, económicos e sociais, dando conta dos abusos e violações contra a população civil levada a cabo pelas tropas estrangeiras.
Apesar do importante trabalho de documentação e denúncia, o Observatório viu-se obrigado a encerrar em junho de 2004 devido à falta de segurança reinante no país. Refugiada en Espanha, recolheu centenas de testemunhos de torturas e crimes durante a ocupação dos Estados Unidos no seu livro Crónicas do Iraque, publicado en 2006. Em abril de 2007 recebeu em Córdova o Prémio Internacional de Jornalismo, “Julio Anguita Parrado” em reconhecimento pelo seu trabalho.
Povoação a povoação, família a família, Iman Ahmad Jamas percorreu um Iraque em guerra para recolher os testemunhos das vítimas dos desmandos das tropas dos Estados Unidos, durante os primeiros anos da ocupação do país árabe. Mulheres Continuar a ler
A arte da lentidão
A arte da lentidão
José Tolentino Mendonça*
Talvez precisemos de voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.
À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam, impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias Continuar a ler
A fábula do velho cão
A fábula do velho cão
Uma velha senhora foi fazer um safari em África e levou consigo o seu velho cão. Um dia, enquanto caçava borboletas, o cão deu-se conta de que estava perdido. Enquanto vagueava em busca do caminho de regresso, reparou que um leopardo o vira e que caminhava na sua direção, com intenção, decerto, de o transformar em repasto.
O velho cão pensou “Estou metido em sarilhos!” Então, olhando em volta, viu que havia ossos espalhados pelo chão e pôs-se a roê-los, de costas voltadas para o predador. Quando o leopardo estava prestes a saltar sobre ele, o cão exclamou:
— Este leopardo estava delicioso! Haverá mais algum que se coma?
Ao ouvir isto, o leopardo desatou a fugir em direção às árvores, enquanto pensava Continuar a ler
A violência humana sobre as outras espécies
A violência humana sobre as outras espécies
ESPECISMO
A desconsideração ética do mundo natural e da vida animal não só obsta à evolução moral da humanidade como também a lesa, lesando o planeta, como é particularmente evidente nos efeitos do consumo de carne industrial e de lacticínios.
Vivemos uma profunda crise do paradigma que dominou a humanidade europeia-ocidental e se mundializou: nele o homem vê-se como centro e dono do mundo, reduzindo natureza e seres vivos a objectos desprovidos de valor intrínseco, meros meios destinados a servir fins e interesses humano. Se a tecnociência contemporânea confiou no progresso geral da humanidade mediante a exploração ilimitada dos recursos naturais e dos seres vivos, frustra-se hoje essa expectativa de um Paraíso terreno científico-tecnológico-económico: o sonho dos projectos neoliberais e socialistas converteu-se no pesadelo da guerra, fome e pobreza, da crise económico-financeira, da destruição da biodiversidade, do sofrimento humano e animal e da iminência de colapso ecológico.
Os relatórios científicos mostram o tremendo impacte que o actual modelo de crescimento económico tem sobre a biosfera planetária, acelerando a sexta extinção em massa do Holoceno, com uma redução drástica da biodiversidade, sobretudo nos últimos 50 anos, a um ritmo que chega a 140 000 espécies de Continuar a ler
Conversas maldosas
Conversas maldosas
Introdução
O relacionamento com os outros é uma necessidade universal, assim como o sentimento de pertença. No entanto, é importante compreender que se pode responder a estas exigências tanto de forma construtiva como destrutiva. Conversas maldosas é a história de uma rapariga chamada Bailey que o fez de um modo destrutivo. Infelizmente, Bailey não é uma exceção. Na nossa cultura aprendemos muitas vezes a relacionar-nos com os outros pela partilha de informação negativa (“Ouviste falar de _____?”) ou de informação que não nos compete a nós partilhar (“Imagina o que eu ouvi?”), ou dando opiniões ou conselhos não solicitados (“Não é para te desiludir, mas…”).
Alguns estudiosos descobriram que as mulheres são particularmente vulneráveis à armadilha das “conversas maldosas”. Isto faz todo o sentido, dado que as meninas aprendem a socializar desde muito cedo no seio de uma cultura que sugere relações mais íntimas com os outros pela partilha de segredos… Por vezes, os próprios segredos, muitas vezes, os dos outros.
Enquanto adultos, uma das nossas tarefas é a de ensinar rapazes e raparigas a desenvolver relações saudáveis e íntimas sem partilhar informação que não é deles e que não lhes compete divulgar. Partilhar os problemas dos outros permite estabelecer laços e torna-se entusiasmante. Mas pode também vir a ser um pau de dois bicos, que acaba por ferir…
A necessidade de adquirir poder e estatuto entre pares pode levar aos rumores, à criação de alianças, à exclusão, e a uma miríade de outros comportamentos destrutivos, sintomáticos de agressões relacionais. Infelizmente, o desfecho inclui quase sempre relacionamentos desfeitos e sentimentos de traição que podem bem prolongar-se até à idade adulta. Seria bem melhor que as crianças aprendessem cedo a criar e manter amizades, usando conversas construtivas e saudáveis, e partilhando esperanças, sonhos e objetivos, em vez de ferir-se umas às outras.
**
Conheço uma rapariga que tem realmente uma língua enorme… O nome dela é Bailey. Bailey Boca Grande. Nunca soube que lhe chamo isto porque eu nunca o disse em voz alta. Mas é o que penso.
Quando Bailey veio para a Escola básica de Hoover, a minha professora, a Srª. Rodriguez, escolheu-me para ser a “Amiga das Boas Vindas”.
No início, eu mostrava-me um pouco envergonhada: tinha medo de dizer algum disparate e que ela não gostasse de mim. Mas Bailey começou logo a tagarelar, a fazer montes de perguntas sobre a escola e sobre os miúdos que a frequentam. E eu gostava de lhe dizer tudo o que ela queria saber.
Sentávamo-nos juntas todos os dias ao almoço e falávamos de tudo. E Bailey nunca esgotava o repertório, contando sempre piadas muito engraçadas.
Tudo estava a correr lindamente — até à noite em que dormimos em casa de Keisha.
“Vamos jogar ao Verdade ou Consequência,” disse Bailey. “Eu sou a primeira. Keisha — verdade ou consequência?”
“Verdade!” respondeu ela com uma risadinha.
“Não é para te ofender, mas essa camisa que trazes é demasiado pequena. Foram as tuas roupas que encolheram ou estás a engordar?”
Keisha abriu a boca de espanto. Continuar a ler
A patinha e a doberman
Embora Jessie, a nossa Doberman preta de quase quarenta quilos, tivesse um ar ameaçador — rosnava sempre que via estranhos e atacava todas as criaturas que aparecessem no pátio das traseiras — era uma cadela extremamente leal e amorosa connosco. Apesar de querermos ter um outro cão, achávamos que a Jessie estava melhor sozinha, porque tínhamos medo de que a inveja a fizesse atacar um qualquer animal que trouxéssemos para casa.
Quando, um dia, o nosso filho Ricky trouxe um ovo da escola, pressentimos que ia haver sarilho. O ovo tinha a ver com um projeto que envolvia a incubação e o nascimento de patos. Como não o ovo não abrira na escola, o professor tinha deixado trazê-lo para casa. O meu marido e eu não pensávamos que o ovo abrisse fora da incubadora, mas deixámos que o Ricky ficasse com ele. O nosso filho colocou-o num pedaço de relva ao sol e ficou à espera.
Na manhã seguinte, acordámos com um guincho bizarro vindo do pátio das traseiras. Quando fomos ver o que se passava, a Jessie tinha o focinho colado ao bico de uma patinha cor de pêssego, acabada de nascer.
— A Jessie vai engoli-la viva! — gritei para o meu marido. — Agarra-a!
Mas o meu marido disse: Continuar a ler
O pão dos outros
Remi está a conversar com a avó. Gosta de a ouvir falar dos seus tempos de menina.
— Na minha aldeia, na Provença, pelo Ano Novo, no primeiro dia de Janeiro, toda a gente oferecia uma prenda a toda a gente. Vê lá se és capaz de adivinhar o que seria.
Remi lança palpites:
— Comprar prendas para a aldeia inteira… É preciso muito dinheiro. Quer dizer que as pessoas eram ricas?
A avó riu-se:
— Oh, não! Naquele tempo, tinha-se muito pouco dinheiro e ninguém na aldeia comprava prendas. Nem sequer havia lojas como há hoje.
— Então, faziam as prendas?
— Não propriamente!
— Mas como é que faziam?
— Era muito simples. Ora ouve…
Antigamente, cada família cozia o seu pão. Continuar a ler
Tarte para inimigos
Devia ter sido um Verão perfeito. O meu pai ajudara-me a construir uma cabana numa árvore do nosso jardim. A minha irmã tinha ido três semanas para um acampamento. E eu estava na melhor equipa de basebol da cidade. Devia ter sido um Verão perfeito. Mas não foi.
Estava a correr tudo bem até o Cláudio Garcia se ter mudado para o meu bairro, para a casa mesmo ao lado da do Filipe, o meu melhor amigo. Eu não gostava do Cláudio Garcia. Ria-se de mim quando eu perdia no basebol. Deu uma festa em sua casa para saltar na cama elástica, mas não me convidou. Mas ao Filipe, o meu melhor amigo, sim.
O Cláudio Garcia era o único que constava da minha lista de inimigos. Nunca tive sequer uma lista de inimigos até ele ter vindo para cá mas, mal chegou, precisei de uma. Preguei-a na minha cabana, onde ele não podia entrar.
O meu pai era um especialista em inimigos. Contou-me que, na minha idade, também tinha tido inimigos. Mas que conhecia uma forma de nos livrarmos deles. Pedi-lhe que me contasse o segredo.
— Contar-te? Vou mostrar-te — disse o meu pai.
Tirou da estante um livro de receitas muito, muito antigo. Continuar a ler
Que batom combina com as montanhas?
É no aconchego mútuo que as pessoas vivem.
Provérbio Irlandês
“Há apenas três coisas que me preocupam,” disse a minha mãe ao telefone.
Conseguia imaginá-la de pé, em frente à janela da cozinha, com o telefone preso entre a cara e o pescoço, enquanto cortava orégãos frescos para o jantar. “Ser atacada por ursos, precisar de ir à casa de banho… e ficar feia nas fotografias.”
Esforcei-me por fazer ouvir a minha voz mais confiante, suave e tranquilizadora…e disse-lhe: “Se tiver de ser, vou espantar os ursos para bem longe com um pau, mas provavelmente não veremos nenhum. Ter que fazer chichi de cócoras no meio do monte não é nada de especial; e prometo que não vamos publicar fotografias feias na revista. Se o fizermos, podemos sempre pôr uma daquelas tiras pretas por cima dos teus olhos….”
Estava combinado.
Iria levar a minha mãe de cinquenta e um anos, Priscilla, e a sua irmã gémea, Linda, numa viagem de três dias de mochila às costas — um trabalho para a revista Backpacker. Estava entusiasmada, mas também nervosa. A minha mãe e a tia Linda não são exatamente montanhistas… Para elas, passar um dia inteiro ao ar livre equivale a dezoito buracos de golfe e a um bife no churrasco. Mas cada uma delas tem três filhos que adoram o ar livre. E estavam ansiosas por ver o que aquilo era…
“Posso ao menos levar um batom?” suplicou a minha mãe já no trilho principal, enquanto eu verificava o conteúdo do seu saco. Continuar a ler
…e largou-o. A ele, à droga e à prostituição (Inês 43 anos)
Rebelde, com boa imagem e uma vontade imensa de experimentar coisas novas, deixou-se aliciar por um estado surreal que alguns traficantes lhe proporcionavam através da droga. Tinha 19 anos, na altura, e trabalhava num hipermercado.
Deixou-se levar, e em três tempos estava no Técnico a prostituir-se. Na primeira vez que se prostituiu, encontrou um homem que a tratou bem e a tentou desincentivar desse caminho, mas o vício e a necessidade de ter dinheiro eram superiores a qualquer tipo de consciência. “Adorava consumir. A droga é uma maravilha, o pior é conseguir sustentá-la.” E começou logo a ter muitos clientes, a prostituir-se de dia e de noite e a consumir cada vez mais, “ao ponto de adormecer assim que entrava num carro”. Ainda assim, sabia que tinha de parar. “Ou parava ou morria”. O acesso à droga era facílimo. Continuar a ler
A canção da avó – história do México
No coração do México, os falcões sobrevoam as altas montanhas, mergulhando em direção às encostas suaves, semeadas de milho. Debaixo do sol tropical, as iguanas descansam sobre rochedos brilhantes, e os tucanos conversam com os guaxinins empoleirados em árvores verde-esmeralda. Por entre as colinas, os pumas correm, as raposas cinzentas procuram galinhas, e os lobos uivam entre si, à noite.
Numa aldeia situada no sopé das montanhas, vivia uma avó com a neta. Plantavam milho, tomates e girassóis na Primavera e juntas viam os rebentos verdes despontar da terra. No Verão, colhiam lírios brancos como leite, punham-nos em cestos às costas, e levavam-nos para vender no mercado. Pelo Outono, decoravam caules esguios de milho para a festa das colheitas, a fim de agradecer os cereais de um ano inteiro. No Dia dos Mortos, costumavam erigir um altar e acender velas, relembrando os entes queridos. E no Natal, pegavam em cola e papel e faziam pinhatas, que enchiam com frutas e doces.
A avó era alta e imponente. Tinha as faces macias e as maçãs do rosto bem marcadas. Os olhos eram profundos, castanhos e doces. Embora tristes, eram bondosos. Tinha o peito largo e as ancas redondas. Pernas e pés robustos ligavam-na à terra, como se fosse uma árvore antiga. Os braços eram fortes e as mãos graciosas, com dedos longos e finos. Era uma mulher tão delicada como os rebentos de um jacarandá.
A neta gostava de explorar e de sonhar. Costumava brincar sozinha, nos campos e nas florestas, mas tinha medo das sombras escuras, dos barulhos dos animais, e de tudo o que fosse novo e diferente. Continuar a ler
O papagaio que dizia “amo-te”
O papagaio que dizia “amo-te”
Talvez por ser órfã de mãe e por o seu pai estar sempre fora de casa, Beatriz crescera triste e solitária. Na escola, chamavam-lhe “Beatriste”, porque se sentava sempre sozinha e não queria brincar com os colegas.
Em casa, depois de feitos os deveres, metia-se no quarto e lia até adormecer.
Beatriz tinha um pesadelo frequente: estava numa ilha deserta e não avistava nenhum barco. À noite, tinha frio e, de dia, fome e sede, pois o único alimento que havia na ilha era o coco. Ao acordar, Beatriz dizia para consigo: “Afinal, a minha vida é igual à do meu pesadelo”.
Não tinha amigos e os dias sucediam-se sem sentido, uns atrás dos outros, como cocos a cair de palmeiras.
Como dormia mal de noite, Beatriz acordava com sono e com poucas forças para falar com o pai. Este via o noticiário e saía logo a correr para o escritório, onde ficava a trabalhar até muito tarde. Quando voltava, já Beatriz estava a dormir, ou melhor, acordada, na sua ilha deserta cheia de coqueiros.
A menina interrogava-se se o pai gostaria mesmo dela ou se viera a este mundo por acaso, já que ele nunca a abraçava, beijava ou dirigia palavras de carinho. As conversas com ele eram sempre do género:
— Beatriz, não te esqueças, como ontem, do caderno dos deveres.
— Sim, papá.
— Já puseste o lanche na pasta?
— Sim, papá.
— Não atravesses a rua com o sinal vermelho ou amarelo!
— Sim, papá.
As trocas de palavras entre ambos não passavam disto, porque o pai, se calhar, era tão tímido como ela. Talvez ele também vivesse numa ilha, que barco algum jamais visitava…
******
Contudo, numa segunda-feira de manhã, aconteceu algo extraordinário que mudaria para sempre a vida de Beatriz.
Ainda não bem desperta, a menina teve a impressão de estar a ser observada. Todavia, ao abrir os olhos, viu que não havia ninguém no quarto. Nem se ouvia sequer o barulho da televisão, sinal de que o pai já tinha saído e lhe deixara o pequeno-almoço em cima da mesa.
Mas, quando olhou para a janela, Beatriz viu um papagaio grande e verde, pousado nas cordas do estendal. A ave olhava para ela de esguelha. Recuperada do susto, a menina perguntou-se de onde teria vindo aquele papagaio e o que faria ali, a espiá-la. Cheia de curiosidade, saltou da cama e abriu a janela para o ver melhor.
— Papagaio, pequenino, vem cá! — chamou-o em voz baixa, para não o assustar.
Tinha certamente escapado da casa de algum vizinho, pois logo respondeu ao convite de Beatriz, acercando-se dela.
— Perdeste-te? — perguntou a menina. — Vens de alguma ilha longínqua, cheia de palmeiras?
A ave pousou no braço de Beatriz, que a princípio se assustou. Porém, quando viu que o papagaio não a picava e que queria ser seu amigo, pô-lo no seu quarto, onde colocou um copo de água e um prato com migalhas de pão. Em seguida, saiu para a escola, muito feliz.
******
Ao meio-dia, telefonou ao pai para lhe contar o que se tinha passado e para lhe pedir que a deixasse ficar com o papagaio. Ia chamar-lhe Tequilha porque imaginava que ele tinha vindo de um país longínquo onde bebiam esse licor.
O pai falava pouco mas era muito atento. Por isso, quando Beatriz voltou da escola, já encontrou Tequilha instalado numa gaiola dourada, com o comedouro cheio de sementes de girassol.
— Olá! — cumprimentou-a, na sua voz estridente.
— Sabes falar! — exclamou a menina, admirada. — Ora vê se consegues dizer o meu nome: Beatriz, Beatriz, Beatriz…
Tequilha seguia atentamente a lição e movia o bico, mas não conseguia repetir o nome. Beatriz, que lera que os papagaios e os periquitos têm muita facilidade em pronunciar o “t”, disse- -lhe:
— Chama-me então Beatriste, como fazem na escola. Beatriste, Beatriste…
Nem precisou de o repetir pela terceira vez, porque o papagaio logo exclamou:
— Beatriste!
A dona, orgulhosa, pulou de alegria. Depois de um dia tão bonito e emocionante, e logo após a empregada lhe ter servido o jantar, Beatriz deitou-se e adormeceu, cansada. Quando a luz da manhã a acordou, Tequilha estava a descascar uma semente, que segurava com uma pata.
— Bom dia, Tequilha! Não cumprimentas a tua Beatriste?
O papagaio acabou de descascar a semente, comeu-a com prazer e bradou:
— Amo-te!
Quando ouviu isto, Beatriz não conteve um grito de emoção. Depois, pensou que não era normal que o papagaio tivesse dito uma expressão típica de um galã de telenovelas. Será que vira muitas ou teria pertencido a algum par de recém-casados?
Podia ser apenas uma casualidade. Os papagaios brincam com as palavras que vão ouvindo e, por vezes, dizem coisas com sentido.
“Deve ser isso”, pensou Beatriz.
Contudo, na manhã do dia seguinte, Tequilha acordou-a com uma saudação igual:
— Amo-te!
— Quem te ensinou isso? — disse Beatriz. — Só os adultos usam essa palavra.
Como os papagaios falam, mas não conversam, Tequilha continuou a olhar para a sua dona e amiga com grande interesse, sem, contudo, dizer mais nada. Depois descascou outra semente.
Quando na quinta-feira, logo de manhã, o papagaio voltou a exclamar “Amo-te”, Beatriz resolveu investigar. Era estranho que as declarações de amor do papagaio só ocorressem de manhã. Quer de tarde quer à noite, Tequilha só dizia “Olá!”, “Beatriste” ou “Caramba!”.
******
Sabendo que o pai ainda estava a tomar o pequeno-almoço, Beatriz correu a expor-lhe o mistério. Mas o pai, muito vermelho e quase a engasgar-se, nada respondeu. Levantou-se, apressado, despediu-se da filha com um beijo e saiu de casa com a pasta.
De repente, Beatriz compreendeu o que acontecera e teve vontade de chorar. Só que de felicidade, desta vez! É que Tequilha repetia, cada manhã, o que o pai de Beatriz lhe dizia à noite, quando ela já dormia.
Agora reflecte…
O Afecto
“O amor é a cura de todos os males”.
Leonard Cohen
Os sábios da Índia dizem que, quando olhamos para o mundo, o colorimos com as nossas próprias cores. Por isso, se olharmos os outros com ódio ou desconfiança, iremos receber ódio e desconfiança. Pelo contrário, se os virmos com amor, viveremos sempre rodeados de carinho.
E tu, como preferes viver?
Há quem tenha vergonha de expressar os seus sentimentos, mas isso não significa que não gostem de nós. Muitas vezes basta que lhes mostremos o nosso amor (com palavras amáveis, com um beijo, com um presente inesperado…) para nos abrirem o coração.
Se te custa dar carinho a alguém de quem gostas, imagina que o mundo vai acabar amanhã. O que farias hoje? Certamente correrias a abraçar os teus pais, irmãos e amigos. Dir-lhes-ias o quanto gostas deles, e falarias dos bons momentos que passaram juntos… Para fazeres isso, não é preciso esperar pelo fim do mundo! Podes começar hoje mesmo a dar-lhes afecto… mesmo que seja à tua maneira!
Mostra o teu carinho
Há muitas maneiras engraçadas e originais de demonstrar amor a quem te rodeia. Eis algumas:
a) Escrever um lindo poema no frigorífico com letras magnéticas.
b) Colocar um desenho muito alegre e bem colorido no seu quarto.
c) Compor uma canção para ele/a.
d) Oferecer-lhe um trabalho manual feito por ti.
Etc., etc.,…
Dr. Eduard Estivill; Montse Domènech
Cuentos para crecer: Historias mágicas para educar con valores
Barcelona: Editorial Planeta, 2006
(Tradução e adaptação)
Sugestões de leitura para adultos – edições brasileiras
A Garota Que Você Deixou Para Trás
Jojo Moyes
Intrínseca, 2014
Jojo Moyes apresenta a comovente história de duas jovens separadas por quase um século no tempo,mas juntas em sua determinação de lutar por aquilo que amam – custe o que custar.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o jovem pintor francês Édouard Lefèvre é obrigado a se separar de sua esposa, Sophie, para lutar no front. Vivendo com os irmãos e os sobrinhos em sua pequena cidade natal, agora ocupada pelos soldados alemães, Sophie apega-se às lembranças do marido admirando um retrato seu pintado por Édouard. Quando o quadro chama a atenção do novo comandante alemão, Sophie arrisca tudo – a família, a reputação e a vida – na esperança de rever Édouard, agora prisioneiro de guerra.
Quase um século depois, na Londres dos anos 2000, a jovem viúva Liv Halston mora sozinha numa moderna casa com paredes de vidro. Ocupando lugar de destaque, um retrato de uma bela jovem, presente do seu marido pouco antes de sua morte prematura, a mantém ligada ao passado. Quando Liv finalmente parece disposta a voltar à vida, um encontro inesperado vai revelar o verdadeiro valor daquela pintura e sua tumultuada trajetória. Ao mergulhar na história da garota do quadro, Liv vê, mais uma vez, sua própria vida virar de cabeça para baixo. Tecido com habilidade, A garota que você deixou para trás alterna momentos tristes e alegres, sem descuidar dos meandros das grandes histórias de amor e da delicadeza dos finais felizes.
A bibliotecária de Auschwitz
Antonio G. Iturbe
Nova Fronteira, 2013
Muitas histórias do horror e sofrimento testemunhados dentro dos campos de concentração nazistas são contadas e recontadas, já estão gravadas e arquivadas. É difícil, nesses relatos, encontrar atos de esperança e força diante de todo o mal registrado durante o Holocausto.
A Bibliotecária de Auschwitz é um livro diferente. É uma história verdadeira e cheia de detalhes a respeito de um professor judeu, Fredy Hirsh, que criou uma escola secreta dentro do bloco 31, no campo de concentração de Auschwitz, dedicando-se a lecionar para cerca de 500 crianças. Criou também uma biblioteca de poucos volumes com a ajuda de Dita Dorachova, uma menina judia de 14 anos que se arriscava para manter viva a esperança trazida pelo conhecimento e escondia os livros embaixo do vestido. É um registro de uma época sofrida da história, mas que também mostra a coragem de pessoas que não se renderam ao terror e se mantiveram firmes usando os livros como “arma”.
Os últimos dias de nossos pais
Joël Dicker
Intrínseca, 2015
Após a frustração de ter tido o Exército britânico encurralado em Dunquerque, Winston Churchill tem uma ideia capaz de mudar o curso da guerra: a criação de uma nova seção do serviço secreto britânico, a SOE (Executiva de Operações Especiais), responsável por conduzir ações de sabotagem e se infiltrar nas linhas inimigas. Algo jamais feito na história. Na esperança de se juntar à Resistência, o jovem Paul-Émile deixa Paris e vai para Londres. Logo recrutado pela SOE, ele se integra a um grupo de franceses que se tornam seus companheiros de coração e de armas. Passando por formações e treinamentos intensos nos quatro cantos da Inglaterra, os selecionados voltarão para a França ocupada para contribuir na resistência. Mas a espionagem alemã está alerta… A existência da SOE por muito tempo foi mantida em segredo. Várias décadas após o fim das atrocidades da Segunda Guerra, Os últimos dias de nossos pais é um dos primeiros romances a abordar sua criação e a relembrar as verdadeiras relações entre a Resistência e a Inglaterra de Churchill. Dicker constrói um livro sobre amor, amizade e medo, com uma profunda reflexão sobre o ser humano e suas fraquezas.
Uma prova do céu
Dr. Eben Alexander
A jornada de um neurocirurgião à vida após a morte
Sextante, 2013
“Minha experiência mostrou que a morte não é o fim da consciência e que a existência humana continua no além-túmulo. E, mais importante ainda, ela se perpetua sob o olhar de um Deus que nos ama e que se importa com cada um de nós.
Cético, defensor da lógica científica e neurocirurgião há mais de 25 anos, o Dr. Eben Alexander viu sua vida virar do avesso quando passou por uma experiência que ele mesmo considerava impossível. Vítima de uma meningite bacteriana grave, ficou em coma por sete dias. Enquanto os médicos tentavam controlar a doença, algo extraordinário aconteceu.
Eben embarcou numa jornada por um mundo completamente estranho. Sem consciência da própria identidade, foi mergulhando cada vez mais fundo nessa realidade difusa, onde conheceu seres celestiais e fez descobertas transformadoras sobre a existência da vida após a morte e a profunda relação que todos nós temos com Deus.
Quando os médicos já pensavam em suspender seu tratamento, o inesperado aconteceu: seus olhos se abriram. Ele estava de volta. Mas nunca mais seria o mesmo. Aquela experiência o levou a questionar tudo em que acreditava até então. Afinal, como neurocirurgião, ele sabia que o que vivenciou não poderia ter sido uma mera fantasia produzida por seu cérebro, que estava praticamente destruído.
Analisando as evidências à luz dos conhecimentos científicos, o Dr. Eben decidiu compartilhar essa incrível história para mostrar que ciência e espiritualidade podem e devem andar juntas.
Narrado com o fascínio de um paciente que visitou o outro lado e com a objetividade de um médico que tenta comprovar a veracidade de sua experiência, este é um livro emocionante sobre a cura física e espiritual e a vida que se esconde nas diversas dimensões do Universo.”
Hereges
Leonardo Padura
Boitempo, 2015
O ponto de partida é um episódio real: a chegada ao porto de Havana do navio S.S. Saint Louis, em 1939, onde se escondiam 900 refugiados vindos da Alemanha. A embarcação passou vários dias à espera de uma autorização para o desembarque. No romance, o garoto Daniel Kaminsky e seu tio, aguardavam nas docas, trazendo um pequeno quadro de Rembrandt que pertencia à família desde o século XVII e que esperavam utilizar como moeda de troca para garantir o desembarque da família que estava no navio. No entanto, o plano fracassa, a autorização não é concedida, e o navio retorna à Alemanha, levando também a esperança do reencontro. Quase setenta anos depois, em 2007, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família.
O Homem que Amava os Cachorros
Leonardo Padura
Boitempo, 2013
A história é narrada, no ano de 2004, pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava com seus cães, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski, seu assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo.
Esse ser obscuro, que Iván passa a denominar “o homem que amava os cachorros”, confia a ele histórias sobre Mercader, um amigo bastante próximo, de quem conhece detalhes íntimos. Diante das descobertas, o narrador reconstrói a trajetória de Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS, e a de Ramón Mercader, o homem que empunhou a picareta que o matou, um personagem sem voz na história e que recebeu, como militante comunista, uma única tarefa: eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.
As duas trajetórias ganham sentido pleno quando Iván projeta sobre elas sua própria experiência na Cuba moderna, seu desenvolvimento intelectual e seu relacionamento com “o homem que amava os cachorros”.
O pintassilgo
Donna Tartt
Companhia das Letras, 2014
Theo Decker, um nova-iorquino de treze anos, sobrevive milagrosamente a um acidente que mata sua mãe. Abandonado pelo pai, Theo é levado pela família de um amigo rico. Desnorteado em seu novo e estranho apartamento na Park Avenue, perseguido por colegas de escola com quem não consegue se comunicar e, acima de tudo, atormentado pela ausência da mãe, Theo se apega a uma importante lembrança dela: uma pequena, misteriosa e cativante pintura que acabará por arrastá-lo ao submundo da arte.
Já adulto, Theo circula com desenvoltura entre os salões nobres e o empoeirado labirinto da loja de antiguidades onde trabalha. Apaixonado e em transe, ele será lançado ao centro de uma perigosa conspiração.
O Pintassilgo é uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência, um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara sensibilidade as cruéis maquinações do destino.
A odisseia de Homero
Gwen Cooper
Editora Sextante, 2010
Todo mundo que tem gatos sabe que eles são dotados de uma sensibilidade incrível e possuem uma forma peculiar de encarar a vida. Mas Homero tinha muito mais a ensinar.
Abandonado, cego e rejeitado, ele tinha tudo para ser amuado e medroso. Ninguém imaginaria que um gato sem os olhos – que precisaram ser retirados cirurgicamente para garantir sua sobrevivência – seria capaz de levar uma vida normal, com a alegria e a esperteza características dos felinos.
Contrariando todas as expectativas, Homero vivia como se seus olhos não lhe fizessem falta. Era bagunceiro, implicante, temperamental, divertido e dengoso como qualquer outro gato. Gwen Cooper fazia questão de afirmar que ele não era diferente. Mas ele era.
Diferente não por causa da falta de visão, mas por sua capacidade de fazer aflorar nas pessoas o que elas tinham de melhor. Parecia haver em seu espírito uma sabedoria oculta e uma energia latente que inspiravam todos à sua volta.
Homero se tornou o centro do mundo de sua dona. Foi se esforçando para garantir a segurança do seu gato que ela aprendeu a estabelecer a sua própria. Foi preocupando-se com a felicidade dele que Gwen percebeu quanto estava sozinha. E foi lhe oferecendo um amor incondicional que ela permitiu que esse sentimento entrasse em sua vida.
Mais do que um livro divertido e comovente sobre as aventuras de um gatinho, A odisseia de Homero é uma história de superação, de autoconhecimento, de transformação e de crescimento pessoal. Ela vai fazer você rir, se emocionar e compreender que, para conseguir o que queremos da vida, muitas vezes precisamos dar um salto no escuro, da mesma forma que Homero: confiando em nossos instintos e acreditando que sempre cairemos de pé.
O Jardim Secreto de Eliza
Kate Morton
Editora Rocco, 2009
O Jardim Secreto de Eliza – Em 1913, um navio chega à Austrália direto de Londres, trazendo com ele uma menina de quatro anos, absolutamente sozinha, sem um acompanhante adulto sequer. Com ela, apenas uma pequena mala com um livro de contos de fadas. O mistério de quem era a bela garota, que dizia não lembrar seu nome, e de como chegou ao porto, jamais foi desvendado. Em suas memórias ela trazia apenas a imagem de uma mulher que ela chamava de a dama ou a Autora e que dizia que viria buscá-la. Muitos anos depois, em 2005, na cidade australiana de Brisbane, a doce e reservada Cassandra herda de sua avó Nell uma casa na Inglaterra. Surpresa, ela descobre que a casa esconde as origens de sua avó, que foi uma vez a bela menina sem nome perdida no porto.
Enquanto acompanha a viagem de Cassandra para a Inglaterra em busca de suas origens, a autora revela uma trama paralela que se desenrola muitos anos antes do nascimento da menina, quando Nell vê seu mundo cair depois que seu pai revela, às vésperas de seu noivado, que ela não é sua filha verdadeira. A notícia a transforma numa mulher estranha, colecionadora de artigos antigos e raros e que vive numa casa em uma região afastada da Austrália. Seu exílio auto imposto, no entanto, é quebrado quando sua filha deixa a pequena Cassandra a seus cuidados. Revoltada com a filha por ter abandonado a menina, assim como aconteceu com ela quando criança, Nell acaba estreitando laços com a neta.
Um dia, porém, nos idos dos anos 1970, Nell, resolve finalmente reconstituir o caminho de volta a terra de onde veio: Londres. Lá, descobre muitas coisas sobre seu passado, incluindo as lembranças da moça que chamava de A Autora: Eliza Makepeace, uma travessa menina contadora de histórias que tinha sua própria cota de tragédias para viver na Inglaterra da virada do século XIX para o XX. Seria Eliza mãe de Nell? E por que ela a abandonou? Agora, é a vez de Cassandra revirar a pequena mala de segredos da avó e saber o que Nell conseguiu descobrir, se é que ela obteve sucesso em sua busca
Na terra da nuvem branca
Sarah Lark
Europa Editora , 2013
Governanta e professora de uma rica família em Londres, Helen Davenport anseia por um casamento, mas, sem pretendentes e já perto de completar 30 anos, sabe que suas possibilidades não são boas. Quando vê, na sua igreja, um anúncio de um fazendeiro na Nova Zelândia que procura uma mulher solteira e honrada para se casar, não pensa duas vezes. Após uma breve troca de correspondências com o pretendente, decide aceitar a proposta e emigrar.
Não muito longe, no País de Gales, Gwyneira Silkham, filha de um nobre e rico criador de ovelhas, está entediada com sua vida. Durante uma negociação de matrizes com um rico fazendeiro da Nova Zelândia, seu pai aceita o desafio para um jogo de cartas aparentemente inofensivo. Acaba apostando — e perdendo — a mão de sua filha em favor do filho do fazendeiro. Surpreendentemente, em vez de se revoltar, Gwyn vê na distante colônia a chance de uma vida vibrante e plena de aventuras.
Ambientado no século 19, durante o início da colonização inglesa na Nova Zelândia, o romance Na Terra da Nuvem Branca conta a história dessas duas corajosas mulheres que mudam radicalmente suas vidas e partem rumo ao desconhecido. Elas se encontram no navio, durante a longa e perigosa viagem, e começam a construir laços de uma duradoura amizade, que será decisiva na luta para a conquista de seus ideais.
Mesmo sendo uma história ficcional, a autora Sara Lark lança um olhar feminino sobre o momento histórico da colonização e a cultura dos nativos maoris. Destaca ainda a personalidade das mulheres e as dificuldades que enfrentam face às oportunidades que uma terra em formação oferece. E constrói uma saga envolvente e apaixonante.
A cidade do sol
Khaled Hosseini
Editora Nova Fronteira, 2013
Mariam tem 33 anos. Sua mãe morreu quando ela tinha 15 anos e Jalil, o homem que deveria ser seu pai, a deu em casamento a Rashid, um sapateiro de 45 anos. Ela sempre soube que seu destino era servir seu marido e dar-lhe muitos filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos.
Laila tem 14 anos. É filha de um professor que sempre lhe diz: “Você pode ser tudo o que quiser.” Ela vai à escola todos os dias, é considerada uma das melhores alunas do colégio e sempre soube que seu destino era muito maior do que casar e ter filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos. Confrontadas pela história, o que parecia impossível acontece: Mariam e Laila se encontram, absolutamente sós. E a partir desse momento, embora a história continue a decidir os destinos, uma outra história começa a ser contada, aquela que ensina que todos nós fazemos parte do “todo humano”, somos iguais na diferença, com nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.
Holocausto brasileiro
Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil
Daniela Arbex
Geração, 2014
Neste livro-reportagem fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.
Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças.
A resposta
Kathryn Stockett
Bertrand Brasil, 2011
A Resposta – Uma história de otimismo ambientada no Mississippi em 1962, durante a gestação do movimento dos direitos civis nos EUA.
Eugenia Skeeter Phelan acabou de se graduar na faculdade e está ansiosa para tornar-se escritora, mas encontra a resistência da mãe, que quer vê-la casada. Porém, o único emprego que consegue é como colunista de dicas domésticas do jornal local. É assim que ela se aproxima de Aibellen, a empregada de uma de suas amigas. Em contanto com ela, Skeeter começa a se lembrar da negra que a criou e, aconselhada a escrever sobre o que a incomoda, tem uma ideia perigosa: escrever um livro em que empregadas domésticas negras relatam o seu relacionamento com patroas brancas.
Mesmo com receio de prováveis retaliações, ela consegue a ajuda de Aibileen, empregada que já ajudou a criar 17 crianças brancas, mas chora a perda do próprio filho, e Minny, cozinheira de mão cheia que, por não levar desaforo para casa, já esteve por diversas vezes desempregada após bater boca com suas patroas. Uma história emocionante e estarrecedora onde a cor da pele das pessoas determina toda a sua vida. Um livro que, devido ao seu tema, chegou a ser recusado por quase sessenta editoras antes de ser publicado.
Meninos de todas as cores – Luísa Ducla Soares
Conceição Dinis; Fátima Lima (org.)
Aventura das Letras
Porto, Porto Editora, 2003
Era uma vez um menino branco chamado Miguel, que vivia numa terra de meninos brancos e dizia:
É bom ser branco
porque é branco o açúcar, tão doce,
porque é branco o leite, tão saboroso,
porque é branca a neve, tão linda.
Mas certo dia o menino partiu numa grande viagem e chegou a uma terra onde todos os meninos eram amarelos. Arranjou uma amiga chamada Flor de Lótus, que, como todos os meninos amarelos, dizia:
É bom ser amarelo
porque é amarelo o Sol
e amarelo o girassol
mais a areia da praia.
O menino branco meteu-se num barco para continuar a sua viagem e parou numa terra onde todos os meninos são pretos. Fez-se amigo de um pequeno caçador chamado Lumumba que, como os outros meninos pretos, dizia:
É bom ser preto
como a noite
preto como as azeitonas
preto como as estradas que nos levam para
toda a parte.
O menino branco entrou depois num avião, que só parou numa terra onde todos os meninos são vermelhos.
Escolheu para brincar aos índios um menino chamado Pena de Águia. E o menino vermelho dizia:
É bom ser vermelho
da cor das fogueiras
da cor das cerejas
e da cor do sangue bem encarnado.
O menino branco foi correndo mundo até uma terra onde todos os meninos são castanhos. Aí fazia corridas de camelo com um menino chamado Ali-Babá, que dizia:
É bom ser castanho
como a terra do chão
os troncos das árvores
é tão bom ser castanho como um chocolate.
Quando o menino voltou à sua terra de meninos brancos, dizia:
É bom ser branco como o açúcar
amarelo como o Sol
preto como as estradas
vermelho como as fogueiras
castanho da cor do chocolate.
Enquanto, na escola, os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas com meninos sorridentes de todas as cores.
Luísa Ducla Soares
Pequena Árvore – Forrest Carter
Pequena Árvore
Pequena Árvore era metade branco, metade índio Cherokee. Quando tinha cinco anos, os seus pais morreram e ele foi viver com os avós Cherokee nas montanhas do Tennessee. Isto é o relato de um dia da sua vida, durante o primeiro ano que passou com os avós.
O Caminho
Enquanto os bocados de pinheiro ardiam na lareira, a avó passou as noites de uma semana inteira a fazer os mocassins, sentada na cadeira de baloiço que rangia com o seu peso leve, à medida que trabalhava e trauteava. Tinha cortado a pele do veado com uma faca e feito as tiras, que coseu em torno da sola. Quando terminou, mergulhou-os em água e eu calcei-os molhados. Andei com eles, para trás e para a frente, até ficarem secos, macios e à minha medida, leves como uma pena.
Esta manhã, calcei-os em último lugar, depois de ter vestido o macacão e apertado o casaco. Estava escuro e frio. Era até demasiado cedo para que a brisa do vento matinal agitasse as árvores.
O avô tinha dito que eu podia ir com ele percorrer o trilho mais alto, se me levantasse a tempo. Ele não me acordaria.
― Um homem levanta-se de manhã cedo, se realmente tiver vontade ― dissera-me ele sem sorrir. Mas o avô tinha feito muito barulho a acordar, batendo na parede do meu quarto e falando alto com a avó, o que não era habitual. Por isso, eu ouvira-o e saíra primeiro, ficando à espera na escuridão, com os cães de caça.
― Com que então, já a pé?
O avô parecia surpreendido.
― Sim, avô ― disse, mantendo o orgulho longe da minha voz.
O avô apontou para os cães que saltavam e cabriolavam à nossa volta.
― Vocês ficam ― ordenou. Eles encolheram as caudas, ganiram, imploraram, e a velha Maud desatou a uivar. Mas não vieram atrás de nós. Ficaram juntos, com um olhar perdido, a verem-nos afastar.
Já tinha estado no trilho mais baixo, que serpenteava ao longo do vale até chegar ao prado onde o avô tinha o celeiro e guardava a mula e a vaca. Mas este era o trilho mais alto, que se dirigia para a montanha, sempre a subir a encosta do vale. Eu caminhava apressadamente atrás do avô, e podia sentir o declive do carreiro.
Também sentia algo mais, tal como a avó dissera. Mon-o-lah, a Mãe-Terra, vinha até mim através dos meus mocassins. Sentia-a ora a empurrar e a dilatar, ora a vacilar e a entregar-se. Sentia as raízes, que eram as veias do seu corpo, e a vida da água, que era o sangue que a percorria. Era quente, cheia de água borbulhante, e embalava-me no seu seio, tal como a avó dissera que faria.
O ar frio transformava a minha respiração em nuvens e o barulho da cascata fazia-se ouvir bastante abaixo do ponto em que nos encontrávamos. Nos ramos desnudos das árvores, pingava água dos bicos de gelo rendilhados e, à medida que subíamos, via-se geada no carreiro. Uma luz cinzenta aliviava a escuridão.
O avô parou e apontou para o lado.
― Lá está o rasto de um peru, vês?
Pus-me de joelhos e de mãos no chão, e vi o rasto de pequenas impressões concêntricas.
― Agora ― disse o avô ― vamos montar a armadilha.
Tentou encontrar um solo fácil de escavar. Limpámo-lo: primeiro tirámos as folhas e depois escavámos para tirar a sujidade, que espalhámos pelas folhas. Quando o buraco ficou profundo a ponto de eu não conseguir ver para fora, o avô tirou-me de lá e colocámos ramos de árvores a cobri-lo. Em cima daqueles, pusemos montanhas de folhas. Foi então que, com a faca grande, o avô cavou um caminho que ia do buraco às pegadas do peru. Pegou nas sementes de milho–índio vermelho que trazia no bolso e espalhou-as pelo trilho, deitando uma mão-cheia no buraco.
― Agora podemos ir ― disse. Partimos de novo rumo ao trilho mais alto. O gelo, que brotava da terra, estalava debaixo dos nossos pés. A montanha do outro lado aproximava-se, à medida que o buraco lá em baixo se tornava uma fenda estreita, fazendo a nascente parecer o gume de uma faca de aço que tivesse sido mergulhada no fundo…
Sentámo-nos nas folhas, fora do carreiro, enquanto os primeiros raios de sol tocavam o cume da montanha do outro lado do estreito. O avô tirou do bolso uma bolacha ressequida e um pouco de carne de veado para mim, e observámos a montanha enquanto comíamos.
O Sol atingiu o cume como uma explosão, num chuveiro de faíscas e centelhas. O brilho do gelo nas árvores feria-nos os olhos e descia a montanha como uma onda, enquanto o Sol afastava cada vez mais a sombra da noite. Um corvo, qual mensageiro, emitiu três avisos para anunciar a nossa presença.
A montanha estalava e suspirava agora, expelindo baforadas de vapor para o ar. Silvava e murmurava à medida que o Sol libertava as árvores da sua mortífera armadura de gelo.
O avô observava, tal como eu, e escutava os sons que cresciam com o vento da manhã, que fazia as árvores assobiarem baixinho.
― Está a nascer ― disse, baixinho e suavemente, sem tirar os olhos da montanha.
― Sim, avô ― disse eu ― está a nascer.
E soube logo ali que o avô e eu tínhamos uma cumplicidade que a maioria das pessoas não conhecia.
A sombra da noite foi-se afastando para o outro lado de um prado cheio de erva que resplandecia, banhado pelo Sol. O avô fez-me reparar numa codorniz que esvoaçava e saltitava na erva, alimentando-se das sementes. Depois, apontou para o céu azul gelado.
Não havia nuvens mas, de início, não me apercebi da mancha que surgiu na borda da montanha. Tornou-se maior. De frente para o Sol, para que a sombra não o precedesse, o pássaro apressou-se a descer a montanha, qual esquiador a roçar o topo das árvores. Vinha com as asas meio fechadas… como uma bala castanha… cada vez mais depressa em direcção à codorniz.
O avô sorriu entre dentes.
― É o velho Tal-con, o falcão.
A codorniz apressou-se a correr para as árvores ― mas foi lenta demais. O falcão atingiu-a. Primeiro, voaram penas, depois, as aves caíram por terra. A cabeça do falcão subia e descia ao ritmo das suas bicadas mortíferas. De repente, surgiu com a codorniz morta nas garras, partindo em direcção à montanha.
Não chorei, mas sei que devia estar triste, porque o avô disse:
― Não fiques triste, Pequena Árvore. É o Caminho. Tal-con apanhou a mais lenta e, por isso, a mais lenta não terá filhos que sejam também lentos. Tal-con vive segundo o Caminho. Está a ajudar a codorniz.
O avô desenterrou com a faca uma raiz-doce do solo e descascou-a, para que o seu sumo pleno de vida escorresse. Cortou-a a meio e deu-me a parte maior.
― É o Caminho ― disse suavemente. ― Tira apenas aquilo de que precisares. Quando matares o veado, não mates os melhores. Leva apenas os mais pequenos e mais lentos e, assim, os veados crescerão mais fortes e dar-te-ão sempre carne. Pa-koh, a pantera, sabe isto e tu também deves saber.
E riu-se.
― Só Ti-bi, a abelha, armazena mais do que precisa… e, por isso, o urso rouba-a, e o Cherokee também. É o que acontece aos que armazenam mais do que lhes é devido. Ser-lhes-á tirado. E haverá guerras por causa disso… e terão longas conversações, tentando ficar com mais do que lhes cabe. Dirão que têm o direito de o fazer… e morrerão homens por causa das palavras e das bandeiras … mas não conseguirão mudar as leis do Caminho.
Voltámos pelo carreiro. O Sol ia alto quando chegámos à armadilha dos perus. Podíamos ouvi-los antes de lá chegar. Lá estavam, comendo avidamente e emitindo sinais de alarme.
― A porta não tem fechadura, avô. Porque é que não baixam as cabeças e saem dali?
O avô esticou o braço para o buraco e tirou de lá um peru grande a grasnar, amarrou-lhe as pernas com uma tira de couro e sorriu abertamente:
― O velho Tel-qui é como algumas pessoas. Como acha que sabe tudo, nunca se dá ao trabalho de olhar para baixo para ver o que está à volta dele. Tem a cabeça demasiado empinada para aprender seja o que for…
O avô deitou-os no chão, com as pernas amarradas. Eram seis, e o avô apontou para eles.
― Têm quase todos a mesma idade… vê-se pela espessura da crista. Só precisamos de três, por isso agora escolhe tu, Pequena Árvore.
Andei à volta dos perus, que saltitavam no chão. Pus-me de cócoras, estudei-os e voltei a andar em roda deles. Tinha de ser cuidadoso. Pus-me de mãos e joelhos no chão e rastejei entre eles até retirar os três mais pequenos que consegui encontrar.
O avô nada disse. Arrancou as tiras das pernas dos outros, que fugiram a toda a velocidade pela montanha abaixo. Atirou com dois dos perus para cima do ombro.
― Podes levar o outro? ― perguntou.
― Sim, avô ― disse, sem saber se tinha procedido bem.
O avô esboçou um largo sorriso.
― Se não te chamasses Pequena Árvore… chamar-te-ia Pequeno Falcão.
Segui o avô pelo carreiro. O peru era pesado, mas sentia-me bem com ele ao ombro. O Sol tinha-se inclinado para a montanha mais longínqua e desaparecia nos ramos das árvores ao longo do caminho, deixando marcas de um amarelo-torrado. O vento esmorecera neste cair de tarde de Inverno, e eu ouvia o avô, à minha frente, a trautear uma canção. Teria gostado de viver naquele instante para sempre… porque sabia que agradara ao meu avô. Aprendera o Caminho.
Forrest Carter
De: VERTICALIZAR
Didi dá que fazer – António Torrado
Quem me contou esta história foi o Rogério, um rapazinho meu amigo, que morava no 2º direito do prédio onde eu moro. Deixou de ser meu vizinho há coisa de um ano, pouco mais ou menos. O pai dele foi colocado em Estrasburgo, que fica em França, perto da Alemanha, e, como é bom de ver, a família mudou-se também.
Quando se foi embora, o Rogério passou por minha casa para se despedir. Prometeu que me escreveria muitas vezes, mas já se sabe: fora um postal com vistas da cidade e um cartão de Boas-Festas, não voltei a ter notícias dele.
E senti-lhe a falta! Sim, tive, sinceramente, saudades do Rogério e da Didi.
“Quem será esta Didi que aqui aparece de surpresa?”, perguntam vocês. Didi é nome de gato, ou melhor, de gata, da gatinha do Rogério, uma simpática e atrevida bichana que, quase todos os dias, eu tinha de ir levar ao 2º direito. Entrava-me pela janela e saía ao colo, a princesa de olhos azuis e rabinho alçado.
Moro no último andar de uma casa amansardada com vista para o telhado e para o rio. Os telhados, como sabes, são território exclusivo dos gatos. Por contrato antigo, os bichanos tomaram conta dos telhados das cidades e ali reinam e ditam leis. Que ninguém se atreva a contestar-lhes o direito, porque, se não, pode haver guerra entre gatos e homens, o que seria uma verdadeira desgraça, principalmente para os homens.
Pois a Didi subia ao telhado pela escada de ferro, em caracol, a escada das traseiras, mas, para descer, passava sempre por minha casa. Devia ter tonturas com a escada de caracol, nas curvas da descida, ou então simpatizava muito comigo. Nunca cheguei a saber.
Fosse porque fosse, de Verão ou de Inverno, tinha sempre a janela do meu quarto aberta, não se desse o caso de sua excelência querer entrar… Que frio eu apanhei em certos dias!
Todas as vezes que, com ela ao colo, tocava à campainha do 2º direito, Dona Didi agradecia-me com um ronrom muito expressivo.
— Aqui lhe trago a sua gatinha — dizia eu para a mãe do Rogério, que era quem abria a porta.
— Para que se esteve a incomodar… Deixasse-a no patamar da escada e ela que viesse pelo seu pé.
— Não, mãezinha, que ela podia fugir para a rua — dizia, lá de dentro, o Rogério. — Com a escada de salvação não há perigo, porque está trancada em baixo, mas, pela escada da frente, punha-se na rua num instante. E os carros?
Eu, pelo meu lado, aprovava as cautelas do Rogério. A mãe, embora não dissesse, também aprovava.
Ora, no outro dia, o Rogério voltou. Está de férias, em casa de uns tios, e demora-se um mês por cá, para matar saudades e rever amigos. Perguntei-lhe pela Didi, e neste ponto é que entra a aventura que ele me contou.
O prédio para onde foram viver, em Estrasburgo, pouco diferia do nosso: vários andares, vários inquilinos, escada principal, escada de serviço, etc. Quem, a princípio, estranhou mais foi a Didi, mas depressa achou meio de subir para o telhado, e aí estava ela onde e como queria…
Admito que tivesse sentido uma certa falta do vizinho do último andar… Lá se remediou à sua maneira. Talvez nem sequer já se lembrasse de mim, a ingrata!
Os hábitos dos gatos respeitam-se e não se discutem. No entanto, em certas ocasiões, é preciso pensar por eles, como vão ver.
Na cidade para onde o Rogério tinha ido, nevava e neva sempre, durante o Inverno. Para o meu amigo, o espectáculo da neve a cair, em flocos que parecem penas brancas, era uma maravilhosa novidade. Para a Didi não seria menos. Mas havia o problema do telhado, que ficava escorregadio e perigoso sempre que nevava. Por isso, a Didi foi proibida de saltar para o telhado, o que ela não conseguiu compreender.
Um dia, escapou-se. Quando o Rogério voltou da escola, deram-lhe a notícia. A Didi tinha fugido para o telhado e não conseguia descer.
— Chamamos os bombeiros — decidiu o pai.
E se a Didi se assustava? À vista de estranhos, podia desequilibrar-se e…
A tarde correu depressa, sem que se achasse uma solução.
A pobrezinha, no telhado, miava. Devia estar cheia de frio. O que fazer?
O meu amigo Rogério, sem dizer nada a ninguém, o que foi uma imprudência, subiu as escadas, abriu a muito custo uma clarabóia e pôs os pés no telhado, tentando não se desequilibrar. Deu um passo, dois passos… Estava escuro, muito escuro, e não havia meio de conseguir ver a Didi, que tinha o pêlo da cor da noite. O Rogério chamou, primeiro baixinho, depois mais alto:
— Didi, sou eu. Vem cá, Didi.
Nem um ronrom, nem um miado, e o céu cada vez mais escuro. Ele a dar mais um passo resvaladiço, e um peso inesperado a saltar-lhe para os ombros. Era a Didi, tiritante, que lhe dava marradinhas no pescoço e se queixava do frio, quase sem voz para um terno ronrom.
— Tivemos de a aquecer junto da lareira e de a cobrir com cobertores, porque a Didi não parava de espirrar — contou o Rogério.
E aqui acaba a aventura verdadeira, trazida pelo meu amigo, dos confins da Europa comunitária. A Didi, cidadã europeia, um dia que regresse a Portugal, já tem muito que contar aos outros gatos do nosso telhado…
António Torrado
Retirado de: http://www.historiadodia.pt
A nossa terra é sagrada – Chefe Índio Seattle
A nossa terra é sagrada
Carta do Chefe Índio Seattle ao Grande Chefe de Washington, Franklin Pierce, em 1854, em resposta à proposta do Governo norte-americano de comprar grande parte das terras da sua tribo Duwamish, em troca da concessão de uma reserva.
Como podereis comprar ou vender o céu? Como podereis comprar ou vender o calor da terra? A ideia parece-nos estranha. Se a frescura do ar e o murmúrio da água não nos pertencem, como poderemos vendê-los?
Para o meu povo, não há um pedaço desta terra que não seja sagrado. Cada agulha de pinheiro cintilante, cada rio arenoso, cada bruma ligeira no meio dos nossos bosques sombrios são sagrados para os olhos e memória do meu povo.
A seiva que corre na árvore transporta nela a memória dos Peles-Vermelhas, cada clareira e cada insecto que zumbe é sagrado para a memória e para a consciência do meu povo. Fazemos parte da terra e ela faz parte de nós. Esta água cintilante que desce dos ribeiros e dos rios não é apenas água; é o sangue dos nossos antepassados.
Os mortos do homem branco esquecem a sua terra quando começam a viagem através das estrelas. Os nossos mortos, pelo contrário, nunca se afastam da Terra que é Mãe. Fazemos parte dela. E a flor perfumada, o veado, o cavalo e a águia majestosa são nossos irmãos.
As encostas escarpadas, os prados húmidos, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencem à mesma família. Se vendermos esta terra, não ireis, decerto, ensinar aos vossos filhos que ela é sagrada. Como poderei dizer-vos que o murmúrio da água é a voz do pai do meu pai…
Também os rios são nossos irmãos porque nos libertam da sede, arrastam as nossas canoas, trazem até nós os peixes… E, além do mais, cada reflexo nas claras águas dos nossos lagos relata histórias e memórias da vida das nossas gentes. Sim, Grande Chefe de Washington, os nossos rios são nossos irmãos e saciam a nossa sede, levam as nossas canoas e alimentam os nossos filhos.
Se vos vendêssemos a nossa terra, teríeis de recordar e de ensinar aos vossos filhos que os rios são nossos irmãos e também seus. E é por isso que eles devem tratá-los com a mesma doçura com que se trata um irmão. Sabemos que o homem branco não percebe a nossa maneira de ser. Para ele um pedaço de terra é igual a um outro pedaço de terra, pois não a vê como irmã mas como inimiga. Depois de ela ser sua, despreza-a e segue o seu caminho.
Deixa para trás a campa dos seus pais sem se importar. Sequestra a vida dos seus filhos e também não se importa. Não lhe interessa a campa dos seus antepassados nem o património dos seus filhos esquecidos. Trata a sua Mãe-Terra e o seu Irmão-Firmamento como objectos que se compram, se exploram e se vendem tal como ovelhas ou contas coloridas. O seu apetite devora a terra, deixando atrás de si um completo deserto.
Não consigo entender. As vossas cidades ferem os olhos do homem pele-vermelha. Talvez seja porque somos selvagens e não podemos compreender. Não há um único lugar tranquilo nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desenrolar das folhas ou o rumor das asas de um insecto na Primavera.
O barulho da cidade é um insulto para o ouvido. E eu pergunto-me: que tipo de vida tem o homem que não é capaz de escutar o grito solitário de uma garça ou o diálogo nocturno das rãs em redor de uma lagoa? Sou um pele-vermelha e não consigo entender. Nós preferimos o suave murmúrio do vento sobre a superfície de um lago, e o odor deste mesmo vento purificado pela chuva do meio-dia ou perfumado com o aroma dos pinheiros.
Quando o último pele-vermelha tiver desaparecido desta terra, quando a sua sombra não for mais do que uma lembrança, como a de uma nuvem que passa pela pradaria, mesmo então estes ribeiros e estes bosques estarão povoados pelo espírito do meu povo. Porque nós amamos esta terra como uma criança ama o bater do coração da sua mãe.
Se decidisse aceitar a vossa oferta, teria de vos sujeitar a uma condição: que o homem branco considere os animais desta terra como irmãos.
Sou selvagem e não compreendo outra forma de vida. Tenho visto milhares de búfalos a apodrecer, abandonados nas pradarias, mortos a tiro pelo homem branco que dispara de um comboio que passa. Sou selvagem e não compreendo como uma máquina fumegante pode ser mais importante que o búfalo, que apenas matamos para sobreviver.
Tudo o que acontece aos animais acontecerá também ao homem. Todas as coisas estão ligadas. Se tudo desaparecer, o homem pode morrer numa grande solidão espiritual. Todas as coi sas se interligam. Ensinai aos vossos filhos o que nós ensinamos aos nossos sobre a terra: que a Terra é nossa Mãe e que tudo o que lhe acontece a nós acontece aos filhos da terra.
Se o homem cuspir na terra, cospe em si mesmo. Sabemos que a terra não pertence ao homem, mas que é o homem que pertence à terra. Os desígnios terrenos são misteriosos para nós. Não compreendemos porque os bisontes são todos massacrados, porque são domesticados os cavalos selvagens, nem por que os lugares mais secretos dos bosques estão impregnados do cheiro dos homens, nem porque a vista das belas colinas está guardada pelos “filhos que falam”.
Talvez um dia sejamos irmãos. Logo veremos. Mas estamos certos de uma coisa que talvez o homem branco descubra um dia: o nosso Deus é um mesmo Deus. Agora podeis pensar que Ele vos pertence, da mesma forma que acreditais que as nossas terras vos pertencem. Mas não é assim. Ele é o Deus de todos os homens e a sua compaixão alcança por igual o pele-vermelha e o homem branco.
Esta terra tem um valor inestimável para Ele e maltratá-la pode provocar a ira do Criador. O que é feito dos bosques profundos? Desapareceram. O que é feito da grande águia? Desapareceu também. Mas o homem não teceu a trama da vida: isto sabemos. Ele é apenas um fio dessa trama. E o que lhe faz, fá-lo a si mesmo.
Também os brancos se extinguirão, talvez antes das outras tribos. O homem não teceu a rede da vida. É apenas um fio e está a desafiar a desgraça se ousar destruir essa rede. Tudo está relacionado entre si como o sangue de uma família. E, se sujardes o vosso leito, uma noite morrereis sufocados pelos vossos excrementos. Assim se acaba a vida e só nos restará a possibilidade de tentar sobreviver.
De VERTICALIZAR
A menina da chuva
A menina da chuva
Eu estava de férias com o papá e a mamã numa ilha na Normandia, numa casa alugada, pequenina e pitoresca. Só que eu aborrecia-me. Sentia-me só. Por isso, todos os dias ia sentar-me num grande rochedo no meio da praia, a olhar para a dança de milhares de pequenas ondas no mar.
No céu, as nuvens carregadas de água corriam a toda a velocidade como se não quisessem fazer sombra à luz branca do sol. Ao longe, as gaivotas confundiam-se com as velas dos barcos. A praia estava quase deserta, de certeza por causa da água demasiado fria. Soprava um vento leve. Quando ele se metia no cabelo dos dois rapazinhos loiros que brincavam com um papagaio de papel, não muito longe de mim, fazia-os esvoaçar com muita graciosidade e leveza. Era bonito de se ver. Eu gostaria de ter cabelos assim tão lisos, em vez dos meus, encaracolados.
Os dois rapazes eram gémeos, muito bonitos e de pele clara. Viviam com os pais numa casa alugada ao lado da nossa. Sempre que os encontrava na praia, o papá insistia comigo para ir brincar com eles. Eu não me atrevia. Nos olhos deles havia qualquer coisa que me desagradava, um brilho maldoso. Mas eu queria muito brincar com o papagaio de papel deles, segurá-lo entre os meus dedos, fechar os olhos e voar com ele até lá longe, bem no alto, onde as gaivotas faziam piruetas.
De repente, o papagaio fez um voo picado e caiu aos meus pés. Que sorte! Era a oportunidade, tão sonhada, de travar conhecimento com os meus dois vizinhos. Levantei-me, apanhei o objecto e entreguei-o aos rapazes que, entretanto, se tinham aproximado de mim. Sorri-lhes e disse-lhes que o papagaio era muito bonito. Fixavam-me, em silêncio, com um ar nada simpático. De repente, um deles tirou-me das mãos o papagaio de papel e pô-lo no chão, no sítio onde tinha caído.
— Não toques no nosso papagaio!
— Porquê? — perguntei, admirada.
— Porque não és francesa!
— Sou francesa, sou!
— Não — disse outro.
Baixei os olhos para olhar para mim. Vi-me branca, apenas um pouco bronzeada pelo sol de Verão. Fiquei triste e nervosa ao mesmo tempo. Não compreendia. Era a primeira vez que alguém me dizia uma maldade daquelas. Quis perguntar ao papá a razão daquilo, mas ele tinha adormecido. Então voltei a sentar-me no meu rochedo e pus-me a olhar para a dança do mar. Queria chorar. Não parava de olhar para a minha pele, tocava nos meus cabelos encaracolados. E se eu não fosse francesa?
Eis que, sem prevenir, a atmosfera ficou carregada. O céu enevoou-se. O papagaio de papel dos meninos maus soltou-se e desapareceu. Gritaram, surpreendidos. Senti que alguma coisa estava a acontecer. Um raio poderoso abriu caminho entre o céu e a terra, como um corredor transparente. Uma figura deslizou pelo seu interior, e saiu, vindo colocar-se à minha frente, cheia de poder. Olhou-me nos olhos e disse:
— Sou a filha da chuva.
Tinha a graciosidade de uma fada, e trazia um vestido de nuvens com reflexos azuis-acinzentados, leve como uma carícia. Os seus longos cabelos eram ondas de cor turquesa que lhe deslizavam até aos pés, o rosto parecia delicadamente esculpido pelo vento, nos olhos luziam-lhe duas contas de ouro nas quais vi o papagaio de papel. Das orelhas pendiam-lhe dois brincos, duas gotas de chuva que formavam uma fonte mágica.
Eu não era capaz de dizer palavra, de tão pasmada. Ela continuava a sorrir. Disse-me que tinha ouvido tudo lá de cima e por isso fizera desaparecer o papagaio. E entregou-mo, dizendo:
— Toma, vai tu mesma entregá-lo… — e em seguida disse: — Tu és bela, Faema — antes de desaparecer no corredor de luz.
Depois, tudo voltou ao normal. Nas minhas mãos tinha um papagaio de papel incrustado de minúsculas estrelas multicores. Levei-o aos dois rapazes maus. Nos seus olhos via-se agora o deslumbramento. Pensavam que eu era mágica e deixei-os que acreditassem nisso. Limitei-me a dizer:
— A menina da chuva, que veio do céu, trouxe-mo para vo-lo entregar.
E foi assim que me tornei francesa.
Azoug Begag
In : almanach
La Charte Corps Puce Jeunesse
A filha da árvore
A FILHA DA ÁRVORE
No alto de uma colina erguia-se um castanheiro.
Faziam-lhe companhia os animaizinhos da floresta e, em baixo, a cidade enviava para o céu nuvens de fumo azulado.
Porém, nas noites de Verão, quando a mãe arganaz embalava na cauda um dos seus filhotes, a árvore era invadida por uma grande tristeza.
“Só eu é que não tenho meninos para acarinhar”, pensava ela.
E pensou nisso com tanta força que, uma bela manhã, um dos seus ouriços desprendeu-se bruscamente.
Caiu, rolou e abriu-se.
Era uma menina.
Bem, estava um bocadinho pálida.
“Mas o sol há-de dar-lhe uma linda cor!”, disse a árvore, que até brilhava de contente. Passou a chamar-se Florina.
A árvore fez-lhe um bercinho minúsculo de ervas e sentiu-se muito feliz.
Mas nem sempre era fácil.
Florina queria ser campeã de piruetas.
— Tem cuidado, meu rebentinho querido! – dizia, preocupada.
Florina brincava ao bichinho da fruta.
— Come tudo como deve ser!
E também fazia o pino.
— Tu pões-me a cabeça à roda! Cansa, ser pai!
Mas afinal até se davam bem. Às primeiras neves, todos os bichinhos prepararam um ninho fofinho para passarem o Inverno. Cada um escavou um buraco à sua medida no meio do feno e a árvore bocejou:
— Boa noite, Florina. Bons sonhos!
Em breve, tudo ficou em silêncio.
Florina virou-se para um lado.
Depois para o outro.
— Papá, não consigo dormir!
Mas ninguém respondeu, estava tudo branco e adormecido. Florina deixou-se escorregar para a neve e estremeceu.
Ao longe, a cidade acendia as luzes e brilhava calmamente. Florina encheu-se de coragem e desceu a colina.
Era um lugar estranho.
Tudo estava em movimento, à volta de Florina.
Empurravam-na.
— Sai daí! — disse alguém.
— Não fiques no meio da rua! — disse outra pessoa.
Florina começou a tremer.
De repente sentiu que alguém a levantava de cabeça para baixo.
— Larga-me! — gritou ela.
— Desculpa! — respondeu o macaco. — Julguei que eras uma castanha. Às vezes dão-me castanhas.
— Não tenhas medo! — disse uma senhora velhinha a sorrir. — O Gil é um macaco muito simpático.
Depois, cobriu Florina com um xaile.
— É noite – disse ela suavemente. — Temos de voltar para casa.
Levou Florina para o quarto das águas furtadas, deitou-a numa cama fofinha, aconchegou-lhe a roupa, deu-lhe um beijo e não disse mais nada porque a menina já tinha adormecido.
De manhã, Gil abanou Florina:
— Eh, castanha! Não vais passar o Inverno a dormir!
— Penso que não… — suspirou Florina.
— Veste roupa quente — aconselhou a velha senhora. — Está muito frio no parque.
— Olha bem para mim! — gritou Gil.
E subiu a toda a velocidade pela árvore mais próxima.
— Admirável, não?
— Qualquer pessoa pode fazer isso! — replicou Florina.
— E isto é que tu nunca fizeste! — Gil arremessou-se, saltando de árvore em árvore.
Mas, de repente, um ramo coberto de gelo partiu-se e Gil caiu de uma altura de vários metros.
Florina foi logo a correr.
O macaco já não se mexia.
Muito tristes, levaram-no para casa.
A velha senhora embrulhou-o num xaile, mas Gil tinha uma pata partida e continuava desmaiado.
— Deve haver alguma coisa que se possa fazer por ele! — soluçou Florina. — O meu pai deve saber…
Na colina, o castanheiro dormia profundamente.
— Papá — murmurou Florina — estou com um pequeno problema, ajuda-me! Um amigo meu está doente…
Então uma coisa extraordinária aconteceu. A árvore fez crescer uma folha, em pleno Inverno, uma folha pequenina, na ponta de um ramo.
E murmurou mesmo a dormir:
— Um chá! Um chá de uma das minhas folhas faz sempre bem quando se está mal disposto!
Florina colheu a folha. E levou também algumas avelãs para comer pelo caminho. A árvore continuava a ressonar.
Mal bebeu a primeira colher de chá, Gil sentiu-se logo muito melhor.
— Felizmente que há árvores! — disse Florina.
Dia após dia, o macaco recuperava a sua boa disposição e Florina esperava pela chegada da Primavera.
Finalmente, o vento trouxe um rebento verdinho e perfumado.
— A minha árvore acordou — anunciou Florina.
– Nós vamos acompanhar-te – propôs Gil.
A árvore assobiava baixinho, muito atarefada a fabricar folhas e gomos.
— Onde é que passaste a manhã? — perguntou a árvore muito admirada.
— Depois conto-te — disse Florina. — Dormiste bem?
— Como um cepo.
— Bom dia! — disse o macaco.
— É curioso, tenho a impressão de que já o conheço — admirou-se a árvore.
Florina ria-se, tapando a cara com as mãos.
— Mais tarde explico-te tudo… — disse ela. — Agora podemos ir jogar às escondidas?
Magali Bonniol
La fille de l’arbre
Paris, L’école des loisirs, 2002
tradução e adaptação
A cor dos olhos
A cor dos olhos
Naquele tempo, que não era como o tempo de hoje, os leões já tinham quatro patas mas, tal como os elefantes, não podiam meter-se por dois caminhos ao mesmo tempo!
Naquele tempo
naquela aldeia
havia Fati e Issa.
Fati dormia deitada numa esteira, sempre de barriga para baixo. Durante esse tempo, Issa sonhava deitado de costas, na cabana da mãe.
Uma manhã, Issa convidou Fati para ir com ele à pesca, no grande riacho.
― Fati, vens ou não pescar?
― Vou, mas… e se o peixe não morde?
― Ficamos à espera.
Partiram com ele à frente, como sempre.
Fati, que era cega, seguia-lhe os passos.
A mãe dela, como todas as mães da aldeia, sabia fazer um bom molho com sementes e também uma mistura saborosa de inhame. O pai conhecia os remédios contra as serpentes e os génios malfazejos, e contra os anões ruins do mato que só fazem mal!
Mas nem o pai nem a mãe sabiam transformar os olhos que não vêem em olhos que vêem!
Fati e Issa caminhavam num estreito carreiro vermelho.
Issa viu pássaros tecelões dar reviravoltas perto das folhas de um embondeiro.
Fati ouviu-os chilrear.
Tinha posto na cabeça um lenço para se proteger um pouco. Tal como Issa, sentia o sol a queimar-lhe os ombros como se fosse uma fogueira no mato.
Não sabia nada da forma zombeteira das sombras, sempre um pouco maiores, mas conseguia adivinhar a grande boca do sol que sugava o céu com gulodice.
Chegaram ao riacho.
― A água está bem desperta ― gritou Issa.
Fati mergulhou o dedo e exclamou:
― Esta água está toda molhada!
Issa preparou uma linha para Fati e outra para ele.
Deitaram-nas à água. Passou algum tempo.
Issa inclinou-se para Fati e murmurou-lhe, quase a morder-lhe a orelha:
― Não te mexas, vou andar alguns passos.
― Porquê?
― O sol está muito forte. Talvez encontre uma jujubeira que nos dê sombra.
Afastou-se, apressado, para fazer algo que ninguém poderia ter feito por ele!
Nada acontece sem se fazer anunciar…
Fati, com a linha entre os dedos, estava tão imóvel como uma velha termiteira, quando sentiu um abanão na mão. Quando sentiu o segundo abanão, foi como se estivesse à espera dele, precisamente naquele momento. Puxou com um gesto seco e, quando ouviu a água a salpicar, não teve dúvidas: era mesmo um peixe que tinha mordido o isco e que ela estava a pescar. Com cuidado, para não assustar nada nem ninguém, levantou-se, puxando sempre a linha com a mão.
Agarrou o pequeno peixe que dançava agarrado ao isco.
Disse em voz alta, para si própria: “É de certeza uma carpa, uma carpa pequena e linda.”
― Uma carpa que preferiria voltar para a água em vez de assar ao sol — respondeu-lhe uma voz.
― És tu, Issa?
― Não é o Issa, sou eu ― respondeu-lhe a carpa.
― Mas quem está a falar? ― perguntou Fati.
Não obteve resposta. Pensou que tinha sonhado.
Com cuidado, tirou o peixe do isco.
― Ufa, obrigado. Assim está melhor ― ouviu.
― Mas de quem é esta voz que não conheço?
― É minha. Sou a carpa que acabas de pescar, não vês?
― Não. Tenho olhos mas não vejo.
A carpa, que era menos medrosa do que uma tartaruga e mais faladora do que um quimbanda lisonjeador, continuou a falar.
― Será que me podes dizer o teu nome, tu que me pescaste?
― Fati.
― Fati, se voltares a pôr-me na água do riacho, posso dar-te o mais belo dos presentes.
― O que é o mais belo dos presentes?
― É o que quiseres… exactamente o que quiseres.
― Não existe o mais belo dos presentes.
― Existe, sim!
Fati pôs-se a rir e disse à carpa:
― Pequeno peixe, podes ofender o génio da água com as tuas mentiras.
― Não estou a mentir.
― Então faz-me ver o mundo com os meus dois olhos.
― O mundo inteiro?
― O mundo inteiro.
Sem pensar duas vezes, o pequeno peixe disse a Fati:
― Pega em duas das minhas escamas, e põe uma em cada olho.
― Depois…
― Depois, nada. É tudo. Verás o que quiseres ver.
Fati pegou em duas escamas e fez o que a carpa lhe tinha dito. Então, começou a ver de verdade, e os seus dois olhos tocaram o mundo.
― Agora, podes ver quase tudo ― disse-lhe a carpa.
― Porquê “quase”?
― Podes ver tudo, excepto os teus olhos. Com os próprios olhos, ninguém pode ver os seus próprios olhos.
Fati pôs o pequeno peixe no riacho e ele continuou a viver como um peixe na água.
Issa chegou. Tinha-se aliviado em algum lado.
Fati, que nunca o tinha visto, viu-o aproximar-se.
― Issa, estou a reconhecer-te.
― É lógico, porque me conheces.
― Reconheço-te com os meus olhos, não apenas com os ouvidos!
Issa tinha parado a dois passos de Fati. Olhava-a bem de perto, e assim podia ver-lhe os olhos. Exclamou:
― Mas o que é que se passa? Lavaste os olhos no céu?
― E por que dizes isso?
― Fati, os teus olhos estão azuis como o céu. Continuas negra mas tens os olhos cor do céu!
Fati contou-lhe tudo.
Quando chegaram à aldeia, Fati ficou espantada por ver um só mundo com os dois olhos.
No dia seguinte, de manhã, ouviram a aldeia a murmurar.
Issa, que continuava a dar-lhe a mão, escutou as vozes ao mesmo tempo que ela.
Viram chegar as três co-esposas do pai de Fati, e outras mulheres, e alguns homens. Tinham a boca cheia de maldades e gritavam. A seguir, chegaram os da aldeia. Eram piores do que animais loucos do mato. Gritavam:
― Bruxa!
― Fati, vai-te embora!
― Não passas de uma bastarda do céu!
― Bruxa azul! Deixa-nos, vai-te embora para sempre, tu e os teus olhos azuis!
― Excremento de abutre!
Puseram-se a atirar-lhe pedras e Fati não encontrou outra solução senão fugir. Issa, que tentara defendê-la, teve de fazer o mesmo.
Depois de uma longa corrida, chegaram ao fundo, ao fim do fim, um pouco mais longe do que o horizonte.
― Fati, eu gosto de ti.
― Não tens medo dos meus olhos?
― Fati, eu gosto de ti.
Tinham-se sentado frente a frente, à sombra de uma jujubeira.
Fati perguntou:
― Será que fechando os olhos, acabamos com a maldade?
― Não… não se acaba com nada. Se fechares os olhos, nem sequer acabas com as cóleras do mato.
Calaram-se. Issa tomou as mãos de Fati nas suas. Fati tinha dois olhos para ver e chorar. Murmurou-lhe:
― Eles têm medo. Estão cativos do medo que têm, e o medo faz esquecer o coração…
Nesse dia, nesse tempo, que se parecia muito com o tempo de hoje, Fati e Issa tinham o coração ferido como uma velha cabaça.
Levantaram-se e afastaram-se ainda mais da aldeia, talvez para encontrar a fonte dos quatro ventos do céu, aqueles que fazem as mesmas cócegas em todas as cores do mundo.
Muitas estações das chuvas deram lugar a muitas estações secas.
E ontem, na aldeia, um grande pássaro negro pousou na bela árvore vermelha florida. Era um calau.
Um calau negro de olhos azuis. Sim, negro de olhos azuis! Todos o acharam belo.
Este calau era um sinal. Logo que parou na grande árvore da aldeia, Fati e Issa chegaram.
Fati sorria tal como Issa. Foi ela quem disse:
― Bom dia, estávamos tão longe há tanto tempo… eis-nos aqui, os dois.
― Bom dia!
― Bom dia…
Foram muitos os que lhes ofereceram a água das boas-vindas.
No dia seguinte, Issa começou a construir a cabana deles.
Tal como acontecera com os pais deles, foi na sua aldeia que tiveram os filhos.
E foi assim.
Foi o quimbanda quem mo disse.
Yves Pinguilly, Florence Koenig
La couleur des yeux
Autrement Jeunesse, 2001
Tradução e adaptação
Texto cedido pelo blogue Verticalizar
O que aconteceu às crianças? – Kay S. Hymowitz
Nova Cidadania II, Número 5, Julho/Setembro 2000
S. João do Estoril, Ed. Principia, Pub. Universitárias e Científicas
Excertos
O que aconteceu às crianças?
Kay S. Hymowitz
Há nove meses, dois rapazes aparentemente banais, oriundos de famílias normais da classe média, entraram no liceu que frequentavam numa zona próspera perto de Denver, dispararam e mataram 12 dos seus colegas assim como a professora, antes de virarem as pistolas contra si próprios. Foi uma fractura na vida contemporânea americana, uma perda definitiva da inocência que levou os pais e os professores a encararem as suas crianças com um sentimento desconhecido, feito de ansiedade e de dúvida. Claro que já tinha havido outros tiroteios em escolas. No entanto, Columbine – cujo nome se instalou rapidamente no léxico – despertou com toda a força um medo latente: apesar de estarmos numa fase de expansão económica sem precedentes, algo de errado poderia estar a acontecer com as crianças da nação.
O que perturbou os americanos nos acontecimentos de Columbine foi a combinação da viciosidade extraordinariamente consciente do massacre com a pertença à classe média típica dos seus perpetradores e com o sítio da exacção. Pode-se explicar a violência em escolas dentro das cidades. A pobreza e a delinquência urbana conjugam-se desde os tempos da Londres de Dickens. Aliás, apesar de ninguém o querer admitir publicamente, muitos americanos poderiam praticamente fechar os olhos aos tiroteios de Jonesboro (no Arkansas), ou de West Paducah (no Kentucky). O próprio Mark Twain não ensinou à nação que aquela gente das colinas e das baladas poderia, às vezes, tornar-se um pouco irracional?
Mas Columbine foi diferente. Columbine forçou-nos a perguntar se não estaríamos a negar a existência de uma doença no coração da cultura da classe média a que pertence a maioria das crianças americanas. “Onde estavam os pais?”, perguntaram alguns, intrigados; “Como será que dois adolescentes conseguiram reunir um tal arsenal nos seus próprios quartos sem que o pai ou a mãe reparassem nisso?”; “Que género de escola instituímos?” interrogaram-se outros, quando foi dito que os dois protagonistas faziam vídeos e redacções sobre os seus ignóbeis fantasmas no âmbito dos respectivos trabalhos de casa, sem que ninguém ficasse particularmente alarmado com isso.
Neste Outono, artigos provenientes de duas fontes invulgares (porque implacavelmente convencionais), o Frontline da PBS e a revista Time, começaram a dar-nos respostas a estas perguntas. Os artigos oferecem – através de uma análise profunda da vida quotidiana das crianças da classe média nas suas interacções com a família e com a escola – uma visão realista das raízes da alienação e da futilidade dos adolescentes que culminaram em Columbine. Completam um retrato devastador dos adultos, que não se mostram negligentes nem opressores no sentido convencional das palavras, mas que, além das casas ostentadoras e de diversões em profusão, não têm nada de substancial a transmitir aos seus filhos. Embora os autores e os realizadores não compreendam inteiramente aquilo que descobriram, o retrato que pintam corrobora a suspeita de que Columbine possa ser o espelho do vazio emocional e espiritual da própria cultura da classe média americana contemporânea, que os adolescentes em crise enchem com os seus fantasmas mais grotescos, geralmente repletos de raiva.
Os adultos que aparecem no primeiro e mais importante destes retratos, “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale”, difundido na série Frontline da PBS em Outubro, parecem ter tudo o que se pode oferecer às crianças. Situada a 50 km a leste de Atlanta, Rockdale é, sociologicamente falando, a irmã gémea de Littleton, um subúrbio florescente e próspero – a “colónia com o desenvolvimento mais rápido das história da humanidade”, segundo alguns habitantes entrevistados no programa. Tal como em Littleton, muitos residentes de Rockdale chegaram recentemente à região, e conseguiram uma vida confortável. É um festival de imagens de ruas amplas com transversais perfeitas e mansões a aparecer por todo o lado, com tectos dignos de catedrais e cozinhas espaçosas com bancadas de granito. E, de facto, as mães e os pais que vivem nestas casas perfeitas fazem muito daquilo que nos dizem que os pais modernos deveriam fazer: treinam equipas da Little League, vão de férias com a família, preparam o jantar para as crianças. No entanto, ficam completamente perdidos quando se trata de transformar as suas mansões em lares onde as crianças possam aprender a ter vidas que façam sentido. Desprovidos de crenças fortes, provavelmente privados de experiências significativas que possam transmitir aos filhos, têm no centro das suas vidas um vazio indeterminável que contrabalança exactamente a opulência das suas casas. O título daquele programa Frontline podia perfeitamente ter sido “Os Adultos Perdidos do Condado de Rockdale”.
O programa foi motivado pela erupção de casos de sífilis que acabou por levar funcionários dos serviços de saúde a tratar 200 adolescentes. O facto mais notável não era que 200 adolescentes de um grande subúrbio tivessem relações sexuais com parceiros sucessivos. Era a maneira que escolheram para terem tais relações. (…) O sexo em grupo era banal, tal como eram os seus protagonistas de 13 anos de idade. Os miúdos vêem o canal Playboy na TV Cabo e brincam imitando tudo o que vêem. Experimentaram quase todas as combinações de actividade sexual possíveis e imagináveis – vaginal, oral, anal, rapariga com rapariga, vários rapazes com uma só rapariga, ou várias raparigas com um só rapaz (o único tabu sendo a homossexualidade entre rapazes). Durante certas bebedeiras, uma rapariga podia ser “passada à volta” num jogo. Um número significativo de crianças tinha mais de 50 parceiros. Certas crianças praticavam aquilo a que chamavam uma sandwich – enquanto uma rapariga tem sexo oral com um rapaz, é penetrada pela vagina por outro rapaz e pelo ânus ainda por outro.
De acordo com os realizadores, foi a profunda solidão daquelas crianças que as levou a procurar uma família de “substituição” na companhia dos seus pares. Ninguém pode negar que aquelas crianças estavam sozinhas. Algumas eram órfãs virtuais de lares desfeitos e que não funcionavam. Outras eram simplesmente filhos de pais a tempo parcial, que estavam ausentes de casa durante grande parte do tempo para poderem proporcionar aos filhos casas luxuosas, carros, telemóveis e roupas das últimas colecções para adolescentes. A maioria das orgias de sexo eram organizadas depois da escola, entre as três e as cinco da tarde, em casas abandonadas pelos adultos, que estavam a trabalhar. Outras vezes, as crianças saíam discretamente de casa depois da meia-noite, sem acordar os pais exaustos.
No entanto, torna-se cada vez mais claro que o vazio na vida daquelas crianças não se limita às horas de trabalho dos pais. A solidão que experimentam ultrapassa o simples facto de serem deixadas sozinhas. Os seus pais, mesmo em casa, parecem desligados. Segundo o produtor, um dos problemas reside no facto de que aquelas famílias passam a maioria do tempo coladas ao televisor. (…)
A câmara segue um rapaz chamado Kevin nas suas deslocações da cozinha (que tem televisor, como é óbvio) para o seu quarto na casa com piscina da família, onde tem, inexplicavelmente, dois televisores, ambos enormes, e ambos a mudar constantemente de canal durante as entrevistas. De facto, neste programa, os televisores estão quase sempre a funcionar em casa enquanto decorrem as entrevistas, um detalhe que não é típico só desta região. Um estudo da Fundação Kaiser publicado pouco depois da difusão do programa “As Crianças Perdidas do Condado de Rockdale” revela que dois terços das crianças têm um televisor no seu quarto e que 58 por cento dos pais aceitam ter o televisor ligado durante o jantar.
No entanto, uma dieta à base de Simpsons e de Dawson Creeks é mais um sintoma do que uma causa das doenças da classe média. A verdade é que – ainda que os realizadores não tenham conseguido apontar o problema – aqueles adultos fugidios livraram-se da tarefa universal que incumbe aos pais: a de encaminhar e de forjar os jovens. E assim fizeram, não por falta de tempo, devido ao trabalho, nem por verem televisão, mas porque não têm as ferramentas culturais necessárias para cumprir tal missão. Sabem que têm de gostar dos filhos; sabem que têm de suprir as suas necessidades e fazem as duas coisas com abundância. Os realizadores são claramente – e com razão – críticos da maneira como esses adultos consideram que os bens materiais representam a soma e a substância da obrigação parental. Mas quando se trata de recursos culturais, daqueles que despertam a consciência moral e as aspirações louváveis das crianças, que as ajudam a desenvolver um forte sentimento sobre si próprias, esses pais mostram-se profundamente empobrecidos. E aqui, os realizadores só podem especular em vão.
No entanto, a incapacidade dos realizadores para definirem essa escassez constitui uma parte da história de Rockdale tão importante como as festas de sexo e a epidemia de sífilis, porque reflecte um estado de confusão mais geral quanto ao empobrecimento cultural que vitima os jovens actuais. Um retrato específico, de um pai e da sua filha, demonstra pateticamente que quer os pais, quer a comunicação social andam desorientados. Amy, uma adolescente pálida de voz suave, que sorri timidamente enquanto conta a sua história, teve claramente todos os benefícios de uma infância privilegiada. Vemos excertos de vídeos familiares e álbuns de fotografias feitas por pais maravilhados perante aquela menina de tranças a bater numa bola durante um jogo da Little League, a armar um sorriso com o seu cesto da Páscoa nas mãos e com o seu amoroso vestido domingueiro, aconchegada sobre os joelhos do pai com um sorriso igualmente radioso. De facto, o pai da Amy fez tudo aquilo que os livros dizem que é p reciso fazer. (A mãe da Amy recusou ser entrevistada.) Treinou a sua equipa de beisebol; a família passava as férias junta; parece ter toda a razão quando declara: “éramos íntimos”. Mas – acaba por admitir, num momento que parece ser de grande revelação – viam demasiada televisão. “Temos televisores em todas as divisões da casa”, diz ele. “Vejo os meus programas. A minha mulher vê os dela … a maior parte do tempo que passávamos juntos não estávamos juntos.” Instado, diz, destroçado: “Acho que devíamos ter falado mais.”
Será que isto pode explicar que aquela menina activa e amada se tenha tornado numa adolescente tão desesperadamente só que, encorajada por dois rapazes, iniciou uma relação sexual brutal em frente do seu horrorizado sobrinho de três anos, e que se deixou utilizar por “amigos” que ela percebia que apenas gostavam de si “porque tinha carro”? Parece ser aquilo em que temos de acreditar. Noutra cena, uma especialista em saúde conta, com uma frustra ção muito sentida que, obviamente, se espera que compartilhemos, qual foi a reacção das famílias de Rockdale quando falou da epidemia de sífilis numa reunião pública. Um padre virou-se para ela e exclamou, referindo-se aos pais: “Eles não vêem? Eles não vêem que são eles? Não falam com os filhos!” Esta perspectiva corrobora sem dúvida a sabedoria dominante dos especialistas. Por exemplo, a Fundação Kaiser, juntamente com a Children Now, iniciou uma campanha cujo lema é “Falar com as Crianças sobre Assuntos Sérios”, o que assume que o problema que os adultos enfrentam actualmente é o de não conseguirem “partilhar os seus próprios valores e, sobretudo, criar uma atmosfera de comunicação aberta com os filhos sobre todos os assuntos”. (…) Não interessa, desde que estejam a falar e a expressar os seus “valores”. Falar e partilhar valores mostra que os adultos “tomam conta”.
Infelizmente, mais uma vez os realizadores de Frontline levam-nos a concluir que os adultos não falam com os filhos pela mesma razão pela qual os próprios especialistas apenas conseguem transmitir sensaborias. Não acreditam que há valores fortes para partilhar. Estes pais certamente reprovam o sexo em grupo, as doenças transmitidas sexualmente ou, neste caso, matar colegas. Mas beberam na cultura envolvente uma ética de não-ajuizamento, que esvaziou de sentimentos e de convicções as suas crenças nestas matérias. Esta perda de convicção ajuda a explicar o ar triste e insípido de muitas das entrevistas. “Têm de decidir, se vão tomar drogas, se vão ter relações sexuais” diz atonicamente a mãe do Kevin, aquele que vive na casa da piscina. “Posso dar a minha opinião, dizer o que eu sinto. Mas eles têm de decidir por si próprios.” É difícil de imaginar como é que a partilha dos seus valores vai alguma vez fazer o que quer que seja pelo seu filho. No fundo, estes valores não têm seriedade nem verdade. São apenas a sua opinião.
As crianças de Rockdale sabem perfeitamente que os seus pais não têm nada para lhes dizer. “Na minha família, faz-se o que se quer. Ninguém pára ninguém”, diz abertamente o Kevin, sem manifestar qualquer rebelião ou arrogância. É verdade, a mãe do Kevin tentou, numa experiência que nunca renovou, ser uma mãe a sério para a irmã mais velha do Kevin. Abdicou disso porque achou que “era mais simples deixá-la fazer o que lhe apetecesse. Damo-nos melhor.” Convencidos de que não existem valores pelos quais valha a pena lutar, os adultos perdidos de Rockdale abandonaram a distinção clássica entre pais e filhos e passaram a ser amigos dos filhos e companheiros de casa. “Somos as melhores amigas do mundo, ou algo parecido”, diz uma rapariga, falando dos pais. “Quer dizer, posso facilmente dizer como vejo as coisas, o que quero fazer, e deixam-me fazer o que quiser.” “Não a vejo realmente como uma mãe”, acrescenta outra rapariga, referindo-se à sua própria mãe. “Toma conta de mim, e tudo, mas considero-a mais como uma amiga.”
Quando os adultos se convertem em amigos, a infância fica condenada a desaparecer. A infância não pode existir sem o enquadramento de adultos. As crianças de Rockdale, ainda pequenitas e incansavelmente dinâmicas, perderam o poder de se maravilharem, a espontaneidade e o idealismo tradicionalmente associados à infância. (…)
Porque o niilismo – como Columbine parece ter-nos ensinado – é a resposta provável que irão encontrar as crianças cada vez mais numerosas que, actualmente, crescem privadas de qualquer sapiência transmitida sobre as aspirações e os limites da natureza humana. Deixados sós a reflectir sobre a vida, eles tropeçam inevitavelmente em experiências contra as quais não têm qual quer tipo de defesa e que acabarão por deixá-los confusos. Basta pensar no caso da Heather que, quando tinha 12 anos, foi deixada uma semana sozinha pela mãe celibatária que partiu em via gem de negócios. A criança meteu-se no álcool e nas drogas. Um dia acordou e descobriu que tinha sido violada enquanto estava nos copos. “A primeira vez que se tem uma relação sexual, pensa-se que é porque se quer dizer algo importan te”, afirma ela, aos 14 anos. “Mas, no fim de contas, a gente repara que não é nada assim. E acaba por não ligar nenhuma.”
Nos colegas, até a realidade de uma doença grave não provoca efervescência nenhuma. Quando uma mãe levou a filha à consulta de saúde organizada no condado para detectar sífilis, estava à espera de um resultado negativo. Era positivo. As crianças riram-se e congratularam-se. “Achámos que era engraçado”, explicou uma rapariga. “Ah, apanhaste sífilis?, sabe… era como uma brincadeira de crianças…” A sensibilidade aniquilada daquelas crianças torna-as impermeáveis a qualquer sentimento de horror, a qualquer sentimento de prazer nas suas aventuras sexuais. “No fundo, fazer sexo é uma seca”, declara outra. “Acho que o sexo foi feito para os rapazes porque nós só nos deitamos, e é do tipo: sai daí de cima, o que estás a fazer?”
Um mês antes de Columbine, o condado de Rockdale foi alvo de tiroteios noutra escola. Um estudante do segundo ano disparou e feriu seis pessoas na Heritage High School, um liceu frequentado por algumas das crianças que foram entrevistadas no programa Frontline. Disse-se que T. J. Solomon, o autor do crime, era depressivo. Depois de ver “As Crianças Perdidas de Rockdale”, começamos a perceber porquê.
Claro que seria simplificar excessivamente a questão limitarmo-nos a afirmar que os pais são os únicos culpados pelas doenças dos filhos nos casos do tipo de Rockdale. Os pais não constituem uma espécie de subcultura com um sistema próprio de crenças e de hábitos; são cidadãos de uma cultura mais vasta, e quando educam os filhos, fazem-no conformando-se às exigências dessa cultura. Na edição de Outubro da revista Time, o artigo de destaque intitulava-se “Uma semana na vida de um liceu: como são realmente as coisas depois de Columbine”. O artigo ilustra a cultura que funciona dentro das nossas instituições de ensino. A revista Time decidiu basear o seu diário no liceu Webster Groves High School, em Webster Groves, no estado do Missouri. Trata-se de uma cidade com aproximadamente 23000 habitantes, situada 15 Km a sudeste de St. Louis, que a Time escolheu por ser uma cidade extremamente típica. (Na verdade, a CBS também tinha escolhido Webster Groves pela mesma razão, num documentário de 1996). De facto, como em Littletown e em Rockdale, é o carácter normal de Webster Groves que torna o artigo tão desconcertante.
Tal como no caso dos adultos do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves (…) consideram que a herança cultural que podia transformar os jovens em adultos com consciência moral, estética e intelectualmente motivados é opcional, apenas uma questão de opinião e não de convicções profundamente ancoradas. De facto, os raros estudantes ponderados e ambiciosos de Webster Groves podem optar por ler verdadeira literatura e estudar matemática séria. Mas, por outro lado, os que não estão interessados nisso – ou seja, a grande maioria deles – podem optar por permanecerem tranquilamente incultos. A consequência é que a escola se torna uma creche para adolescentes, um serviço de amas-secas que mantém as crianças fora das ruas. (…)
No dia da visita do jornalista da revista Time, a turma estava a analisar uma historieta chamada “A Torta de Batata Doce”. A professora descreve a prova da torta de batata doce, de fiambre da perna, de couve. “O que é que estas coisas têm em comum?” pergunta a professora, desafiando o seu grupo de estudantes de 15 anos. “Não querem saber se aprendemos”, responde astutamente um rapazinho. “O importante é passar.”
Poder-se-ia argumentar que, contrariamente aos pais do condado de Rockdale, os educadores de Webster Groves têm uma boa desculpa para a sua demissão. Os res ponsáveis estaduais pela educação afirmaram considerar que ensinar os alunos era uma tarefa secundária do educador. A sua tarefa principal consistia em erradicar o abandono escolar que converte a criança numa ameaça social. O Estado do Missouri atribui gratificações às escolas que conseguiram reduzir a taxa de abandono. No caso de Webster Groves, isto representava 150 000 dólares, um montante irresistível quando comparado ao défice do liceu: 1,2 milhões de dólares. No entanto, este dinheiro também dá aos alunos a oportunidade de fazerem uma chantagem com os professores. O bónus de frequência, além de condenar os professores a baixarem o nível do currículo – “se prometer não exigir que leiamos obras acima do nono ano, prometemos ficar na escola” é o negócio subjacente – também os incapacita de exigirem disciplina, além de infracções mais perigosas. Os estudantes podem insultar os professores e chegar atrasados sem sofrer consequências; os professores já sabem que a direcção não os pode apoiar muito.
A maior parte do corpo docente também já deixou de pedir mais do que 15 minutos de trabalhos de casa por dia. Uma professora calcula que apenas 15 por cento dos alunos fazem os trabalhos de casa. As crianças dizem que estudam entre 10 e 30 minutos, no máximo. (“Aqui estão em segurança e podem aprender durante as aulas, mesmo que não façam os trabalhos de casa”, explica um assistente do director). Os professores também dão poucos trabalhos de casa para que as crianças tenham muito tempo para se dedicarem àquilo que querem fazer prioritariamente: ganhar dinheiro. É comum para um estudante trabalhar 30 ou até 40 horas por semana num snack-bar ou numa loja de vídeos. A finalidade não é pôr dinheiro de lado para a universidade; o dinheiro serve para comprar casacos de cabedal de 400 dólares, e carros cool. Nada na educação deles põe em causa um tal com portamento.
Em Webster Groves, como em Rockdale, os adultos – que abdicaram de qualquer assomo de autoridade que, normalmente, investe os que são mais experientes e perspicazes – tentam disfarçar a sua negligência alegando que são amigos e colegas dos seus subordinados. O artigo da revista Time começa com a chegada muito matinal da directora para um treino físico. A sua T-shirt com o Pateta e a sua roupa em geral dão uma boa ideia daquilo que iremos descobrir. Dois professores fazem frequentemente partidas, como aspergir os alunos com pistolas de água do telhado do liceu, uma brincadeira que levou a vizinhança, aterrorizada porque só via as sombras, a chamar a polícia. Na semana em que a revista Time visitou a escola, os dois treparam novamente ao telhado da escola, mas desta vez foi para fazerem baloiçar a cabeça de um manequim-mulher que baptizaram de Headrietta, ao nível da janela duma turma, de tal forma que arrancaram gritos histéricos às estudantes. A revista Time comenta, acerca de um dos dois brincalhões: “É complicado determinar se Yates, professor de Astronomia e de Física, que também preside ao departamento de Ciências, faz realmente parte do corpo docente ou se ainda é uma criança.” Os tremendos esforços de Yates para manter um relacionamento amigável nem sempre funcionam. Os seus alunos continuam a aborrecê-lo e a chamá-lo ” asshole “, um comportamento que, segundo a análise autoconfiante de Yates, prova que os alunos estão “à vontade” com ele.
Ainda que extrema, a evasão de Yates reflecte a maneira como os adultos actuais se convencem de que estão bem com as crianças. Desde que as crianças permaneçam na escola, desde que a sua auto-estima não fique ameaçada, desde que a relação de amizade adulto-criança pareça relativamente serena, então podem-se convencer de que têm um “bom relacionamento com as crianças.” De facto, os autores de “Uma Semana na Vida” descrevem os educadores de Webster Groves como adultos atentos que concedem tempo extra para os jogos de futebol da escola, que participam em jogos de softball para alunos-professores, que também se disponibilizam para apoiar um adolescente que acaba de perder a mãe, ou outro cujos pais se estão a divorciar.
No entanto, nada daquilo consegue preencher o vazio deixado pelos seus erros e, sem dúvida, também pelos erros da maioria dos pais dos seus alunos, nada é feito para que tenham uma visão de uma ordem moral e intelectual coerente. Uma das principais tarefas dos educadores de Webster Groves consiste em gerir a decadência engendrada pela sua própria abdicação. Apesar de a escola não estar equipada com guardas e detectores de metal, a directora, as suas assistentes e ainda um detective privado deambulam pelos corredores da escola com walkie-talkies. Os funcionários mandaram instalar um dispendioso equipamento de detecção no sistema telefónico da escola depois de um alerta à bomba no ano transacto. O corpo docente frequenta seminários de gestão de crises para encontrar respostas para emergências hipotéticas. A escola está atnta às numerosas crianças medicadas e os professores estão atentos àqueles que perderam subitament o interesse ou cujas notas baixaram.
Erik Erikson definiu a idade adulta como um período de criatividade, no qual a maturidade alimenta os jovens vulneráveis e os prepara para uma vida independente. As reportagens de Frontline e da revista Time levam a pensar que, em muitas partes dos Estados Unidos, uma tal idade adulta desapareceu. Os adultos não têm estímulos culturais significativos que possam alimentar a imaginação vazia dos filhos, não têm nada que os possa ajudar a ordenar as suas vidas caóticas, informes. Para as crianças da classe média, uma geração mais rica do que qualquer outra na história da humanidade, a situação é lúgubre. Estão à procura do sentido da humanidade, e encontram adultos a olhar fixamente para o chão. O que basta para enlouquecer algumas crianças.
Quem semeia ventos colhe… incêndios
Quem semeia vantos, colhe… incêndios
Numa aldeia russa, vivia um camponês chamado Ivan. Estava bem na vida. Era o melhor trabalhador da aldeia e tinha três filhos saudáveis, que também eram bons trabalhadores. O seu velho pai era o único na família que não podia trabalhar, mas cuidavam dele muito bem. Tinham tudo o que precisavam para comer e vestir, e teriam sido felizes se não fosse o vizinho de Ivan, Gavrilo, o coxo. Ivan e Gavrilo detestavam-se.
Tinham sido bons amigos até ao dia em que algo acontecera – algo de tão ridículo e insignificante! Uma galinha que pertencia à filha de Ivan pôs um ovo no pátio de Gavrilo. Todos os dias, a galinha punha um ovo no galinheiro. Quando a filha a ouvia cacarejar, ia buscar o ovo. Mas, daquela vez, os rapazes tinham assustado a galinha e esta tinha saltado a vedação. A filha de Ivan estava ocupada nesse dia e só foi buscar o ovo à noite. Não conseguiu encontrá-lo e os rapazes disseram-lhe onde o procurar. Foi então a casa do vizinho e encontrou a mãe de Gavrilo.
― O que queres, rapariga?
― Avó, a minha galinha esteve hoje no seu pátio. Não pôs lá nenhum ovo?
A velha pensou que a filha de Ivan estava a acusá-la de ter pegado no ovo e respondeu-lhe torto.
― Não lhe pus a vista em cima. Nós temos as nossas galinhas e já há muito tempo que elas andam a pôr. Apanhamos os nossos ovos e não precisamos dos ovos dos outros. Ó rapariga, não precisamos de ir para os pátios dos outros apanhar ovos!
A filha de Ivan não gostou nada do que ouviu. Respondeu desabridamente, e a mãe de Gavrilo foi ainda mais desabrida. A mulher de Ivan passou por ali (tinha ido buscar água) e, nesse momento, a mulher de Gavrilo saiu de casa. Começaram todas a falar ao mesmo tempo, a ralhar e a insultar-se. Depois vieram os maridos, que tomaram o partido das respectivas mulheres e começaram à pancada. E Ivan, que era mais forte, feriu Gavrilo, o coxo.
Gavrilo levou o caso ao tribunal da aldeia, declarando que queria que Ivan fosse castigado. Quando o pai de Ivan ouviu isto, falou com firmeza.
― Rapazes, vocês estão a fazer uma asneira. Pensem bem! Tudo começou por causa de um ovo. Um ovo não vale muito. Há que chegue para todos. Foram ditas muitas palavras incorrectas; agora mostrem como se dizem palavras simpáticas. Façam as pazes e acabem com tudo isto. Se persistirem no erro, será cada vez pior.
Mas Ivan e a família não o escutaram. Pensavam que o velho estava a dizer disparates. Em vez de fazerem as pazes, Ivan foi a tribunal e tentou que Gavrilo fosse punido por lhe ter rasgado a camisa enquanto discutiam por causa do ovo.
Depois disso, os vizinhos discutiam todos os dias e sempre por motivos mesquinhos. Foram a tribunal tantas vezes que o juiz já estava cansado de os ver. E assim continuaram durante seis anos.
Por fim, a filha de Ivan acusou publicamente Gavrilo de roubar cavalos, e Gavrilo bateu-lhe de tal forma que a deixou de cama durante uma semana. Desta vez, o caso era mais sério e, quando Ivan levou o caso a tribunal, o juiz deu ordem para que Gavrilo fosse chicoteado. Era uma forma muito dolorosa de punir as pessoas culpadas. Quando Gavrilo ouviu o que iria acontecer-lhe, ficou tão branco e protestou tão veementemente que até o juiz teve medo e pediu a Ivan que lhe perdoasse e desistisse do caso. Mas Ivan não cedeu e foi para casa dizer ao pai que Gavrilo iria finalmente ser castigado.
― Ivan ― disse o velho ― não estás a proceder correctamente. Vês a maldade dele mas esqueces-te da tua. Jesus ensinou-nos algo de diferente. Se te insultam, mantém-te calado. Se te baterem, oferece a outra face. Faz as pazes com ele. Não é tarde demais para evitares que ele seja castigado, e o convidares para jantar, a ele e à família.
Como Ivan não se mexesse, o pai continuou:
― Não te demores, Ivan. A tua raiva é como o fogo. Apaga-a no início porque, se ela começar a alastrar, não poderás controlá-la.
Ivan começava a entender o que o pai queria dizer. Preparava-se para ir fazer as pazes quando as mulheres chegaram e disseram que Gavrilo estava tão zangado que ameaçara pegar fogo à casa. Então, Ivan ficou outra vez furioso, como se ele próprio estivesse a arder, e não desistiu do castigo de Gavrilo.
Nessa noite, Ivan lembrou-se do que Gavrilo dissera a propósito de atear um incêndio. Ficou tão perturbado que saiu para inspeccionar o pátio. Caminhou lentamente ao longo da vedação. Tinha acabado de virar a esquina quando lhe pareceu que algo se mexera na outra ponta, algo que se teria erguido e voltado a baixar. Ivan ficou quieto. Escutou e olhou: estava tudo sossegado; apenas o vento agitava as folhas do salgueiro e a palha. Estava escuro como breu mas os seus olhos habituaram-se à escuridão. Continuou a olhar, mas não viu ninguém.
― Devo ter-me enganado ― disse Ivan ― mas vou ver.
Avançou tão devagar que nem os próprios passos ouvia. Chegou à esquina e parou. Conseguia ver claramente alguém, com um boné na cabeça e agachado de costas para ele, a pegar fogo a um feixe de palha que tinha nas mãos. Ficou imóvel.
“Agora”, pensou, “não vai escapar-me. Vou apanhá-lo com a boca na botija.”
De repente, tudo se iluminou. A chama lambeu a palha no barracão e saltou para o telhado. Já não era um pequeno fogo. Ivan conseguiu ver Gavrilo e correu para ele. Mas Gavrilo fugiu e, apesar de coxo, correu como uma lebre. No entanto, Ivan ainda conseguiu apanhá-lo pela aba do casaco. Só que a aba rasgou-se, Ivan caiu e magoou-se na cabeça. Quando se levantou, Gavrilo tinha fugido. O incêndio era tão forte que parecia dia em vez de noite. Ivan conseguia ouvir os bramidos e a crepitação no seu pátio. Foi então que viu a palha a arder em direcção à casa.
Ivan tentou apagar o incêndio. “Se ao menos conseguisse tirar a palha para fora do barracão e apagar o fogo!”, pensou. A princípio, os seus pés não se mexiam. Depois, tropeçaram um no outro. As pessoas vinham a correr, mas já nada podia ser feito. Os vizinhos retiravam as coisas de suas casas e mandavam sair o gado. Depois da casa de Ivan foi a vez da de Gavrilo se incendiar. Levantou-se um vento que levou o fogo para o outro lado da rua. Metade da aldeia ficou reduzida a cinzas.
Tudo o que se salvou da casa de Ivan foi o velho pai, que fugira para uma parte distante da aldeia. Quando Ivan foi vê-lo, o velho comentou:
― Que te disse eu, Ivan? Quem incendiou a aldeia?
― Foi ele, pai. Apanhei-o. Se ao menos tivesse apanhado o pedaço de palha e o tivesse tirado para fora, nada disto teria acontecido.
― Ivan ― perguntou de novo o pai ― de quem é realmente a culpa?
Ivan fitou-o. Depois, lembrou-se de como tinha magoado Gavrilo em primeiro lugar, e de como não tinha ido fazer as pazes com ele enquanto ainda era tempo.
― A culpa foi minha, pai ― disse. E calou-se.
Em seguida, o velho disse-lhe:
― Ivan.
― Sim, pai.
― O que deves fazer agora?
― Não sei, pai. Como posso continuar? Tudo o que tinha ficou queimado.
― Vais conseguir. Com a ajuda de Deus, vais conseguir. Mas lembra-te, Ivan, não deves dizer a ninguém que foi Gavrilo quem começou o fogo. Se não disseres, Deus perdoar-vos-á a ambos.
Ivan assim fez e ninguém descobriu como o fogo começara.
Depois, Ivan começou a ter pena de Gavrilo. E Gavrilo, por sua vez, ficou surpreendido por Ivan não ter dito nada. A princípio, tinha medo de Ivan, mas depois começou a sentir-se mais à vontade. Os homens deixaram de discutir, e as famílias também. Enquanto reconstruíam as casas, viviam todos juntos, e quando a aldeia foi finalmente reconstruída, Ivan e Gavrilo permaneceram vizinhos. E foram sempre amigos.
Ivan nunca se esqueceu do que o pai lhe dissera sobre apagar um fogo logo que ele começa. Se alguém lhe falava duramente, ele respondia com gentileza. A pessoa ficava envergonhada e não havia discussão. Assim, Ivan foi mais feliz do que nunca, e ninguém na aldeia teve tantos amigos como ele.
L. Tolstoi
Lightning candles in the dark
Philadelphia , FGC, 2001
Tradução e adaptação
Retirado de VERTICALIZAR
Gandhi
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em Porbandar, na Índia, a 2 de Outubro de 1869. O pai era primeiro-ministro na corte do príncipe local. A mãe, mulher devota, deu aos filhos uma educação religiosa. A religião da família era uma combinação de Hinduísmo e de Jainismo.
Gandhi cresceu a acreditar na doutrina do karma, segundo a qual devemos rezar, ser disciplinados, honestos e parcimoniosos, a fim de conservarmos a alma pura.
Quando tinha treze anos, casou-se, segundo a tradição hindu, com Kasturbai Makanji, uma linda rapariga da mesma idade, dotada de grandes qualidades, como a paciência, a força e a coragem.
Quanto a Gandhi, era de baixa estatura, tímido, e tinha medo de várias coisas, entre as quais as serpentes, os fantasmas e a escuridão. Kasturbai ria-se com ternura do marido, por este ter de dormir com a luz acesa.
Gandhi sentia-se diferente das outras pessoas. Aluno fraco: terminou o liceu com dificuldade e teve más notas na faculdade. Em 1888, instado pelo tio, deixou a mulher na Índia e foi para Londres estudar Direito. Durante muito tempo, sentiu-se completamente só, um estrangeiro em terra alheia. A fim de se sentir mais confiante, decidiu transformar-se num autêntico cavalheiro inglês. Vivia num apartamento selecto e vestia roupas elegantes. Aprendeu a falar um inglês perfeito, teve aulas de violino e aprendeu até a dançar o fox-trot.
Mas não era feliz. Sentia que um fosso enorme separava o seu ser interior da sua aparência exterior. Tentou então recuperar a sua herança jainista: abandonou o apartamento selecto, passou a cozinhar as suas próprias refeições, a andar a pé em vez de tomar transportes, e aderiu à Sociedade Vegetariana de Londres. A sua nova independência fê-lo sentir-se mais feliz, embora continuasse desajeitado e tímido.
Tirou finalmente o curso e regressou à Índia, três anos depois de ter chegado a Londres.
De regresso a casa, soube que a mãe tinha morrido.
Gandhi abriu um escritório de advocacia em Bombaim, decidido a triunfar na vida profissional. Mas a sua timidez desajeitada impedia-o de falar em público e foi humilhado com frequência.
Como o irmão de Gandhi conhecia uma firma de advogados na África do Sul que precisava de um sócio, Gandhi, acompanhado pela mulher, deixou a Índia em 1893. De novo estrangeiro em terra alheia, experimentou o racismo na própria pele. A sua cor fazia dele um alvo de desprezo e de maus-tratos físicos por parte dos brancos sul-africanos. O trabalho no escritório era duro mas, em vez de desistir e de abandonar aquele país hostil, Gandhi decidiu mudar-se a SI MESMO, a fim de enfrentar os desafios que lhe eram colocados.
Através da auto-disciplina e da concentração, conseguiu atingir os seus objectivos e compreendeu que o verdadeiro exercício do Direito consiste em procurar o lado melhor da natureza humana e penetrar nos corações dos homens. Começou a encarar todas as dificuldades como formas de melhor servir os outros, atitude que viria a tornar-se o segredo do seu sucesso durante o resto da vida.
Numa noite de Inverno, Gandhi viajava de comboio, em negócios, numa carruagem de primeira classe. Um passageiro branco insistiu que Gandhi viajasse em terceira classe. Gandhi recusou, e o revisor atirou-o para fora do comboio. No meio de parte alguma, rodeado de escuridão e cheio de frio, Gandhi reflectiu sobre a profunda e dolorosa doença do preconceito.
Pouco depois da sua experiência no comboio, criou a teoria da satyagraha, que quer dizer “a força do amor”. Escreveu: A força do amor exercida através da paz triunfa sempre sobre a violência. Empenhou-se em extirpar a doença do preconceito, sem nunca ceder à violência e sem nunca exercer violência sobre os outros, e prometeu trazer a paz do Céu para a Terra.
No início do século XX, a África do Sul estava dividida em quatro colónias britânicas distintas: a Colónia do Cabo, o Natal, o Estado Livre de Orange e o Transval. A 22 de Agosto de 1906, o governo do Transval promulgou a Lei dos Negros, que privava os negros e os indianos dos seus direitos cívicos. Em resposta a esta lei, Gandhi formou o primeiro movimento não-violento de resistência de massas. Mais de quinhentas pessoas participaram neste movimento de desobediência civil.
Gandhi e os seus apoiantes lutaram pelos direitos de negros e indianos, bem como pelos direitos das mulheres. Prestou apoio jurídico gratuito e ajudou pessoas que viviam em condições desesperadas. Tratou de pessoas doentes, que tinham sido abandonadas durante uma epidemia, fez curativos a leprosos e reconfortou os moribundos. Costumava dizer:
— Estas pessoas são meus irmãos e irmãs. O seu sofrimento é o meu sofrimento. A minha família é o mundo inteiro.
Gandhi acreditava profundamente nos ensinamentos de um dos livros sagrados hindus, o Baghavad-Gita. Meditava várias vezes ao dia e tentava enfraquecer os seus desejos egoístas através do amor aos outros e do amor ao “Senhor do Amor”. Tentava não sentir raiva, para que esta não tolhesse o seu discernimento. Ao acreditar no poder do amor e ao tratar todas as pessoas como se fossem membros da sua própria família, Gandhi descobriu que deixara de sentir timidez e que não tinha medo de coisa alguma.
Tanto ele como os seus seguidores agiam no sentido de aceitar de igual maneira as coisas boas e más da vida, de receber os desafios com humildade e mansidão, e de trazer a harmonia ao mundo.
Gandhi regressou à Índia em 1915, acompanhado pela mulher e pelos quatro filhos. Começou a lutar para libertar a Índia do sistema preconceituoso de castas que dividia a sociedade em quatro classes. Os sacerdotes ocupavam o topo da pirâmide social, seguidos pelos príncipes e pelos militares que, por sua vez, se encontravam no patamar acima dos trabalhadores. Os pobres ─ os “intocáveis” ─ ocupavam o nível mais baixo da pirâmide. Gandhi chamava-lhes “filhos de Deus” e estava decidido a libertá-los do seu estigma.
Também se empenhou em libertar a Índia do domínio britânico. Durante trezentos anos, vários milhares de Britânicos tinham governado mais de trezentos milhões de Indianos. Gandhi dirigia-se às multidões e pedia-lhes que pusessem a satyagraha em prática, ou seja, o amor altruísta pelos outros. Os Indianos deixaram de colaborar com os Britânicos e muitos foram presos. Muitos outros começaram a confeccionar as suas próprias roupas, para não terem de comprar tecidos britânicos. A túnica branca de fiação caseira chamada khadi começou a ser usada por milhões de pessoas, tornando-se o símbolo da independência indiana.
O governo britânico ficou furioso com a não-cooperação da Índia e, em 1919, durante o massacre de Amritsar, soldados britânicos mataram 379 inocentes, tendo ferido mais de um milhar.
Gandhi liderou então um hartal, ou greve nacional, que paralisou a Índia inteira. A campanha não-violenta baseada na teoria da satyagraha continuou, encorajada pelas palavras do próprio Gandhi:
A não-violência actua de forma contínua, silenciosa e incessante, até transformar o mal em bem.
Em 1922, os Britânicos prenderam Gandhi por pregar a não-violência, por desafiar a autoridade britânica e por escrever panfletos anti-governo. Esteve preso durante dois anos, mas o movimento da não-violência manteve-se forte.
O imperialismo britânico na Índia estava sob ameaça e Gandhi sentia-se feliz. Não achava que o facto de estar preso fosse uma tribulação; pelo contrário, via-o como um motivo de orgulho. Considerava que sofrer corajosamente por um ideal era a força motriz que transformaria cada homem e cada mulher da Índia em seres livres.
Em países quentes e tropicais como a Índia, o sal é uma parte essencial da alimentação das pessoas. A lei britânica proibia os Indianos de fazerem o seu próprio sal e obrigava-os a pagar um pesado imposto sobre este produto.
Em 1930, Gandhi liderou os seus compatriotas na chamada Marcha do Sal. Acompanhado por setenta e oito pessoas, empreendeu a caminhada de Sabarmati até Dandi, uma cidade costeira que ficava a mais de 200 quilómetros. Quando Gandhi chegou a Dandi e pegou num punhado de sal, num gesto simbólico de desafio do domínio britânico, as pessoas que o acompanhavam excediam já as centenas de milhar. O governo britânico foi forçado a reconhecer que estava a perder o controlo da Índia.
Depois de liderar a Marcha do Sal e outras iniciativas igualmente desafiadoras, Gandhi sentiu que o jugo imperialista sobre os seus compatriotas estava a diminuir de intensidade, o que, para ele, constituía um motivo de grande júbilo. Os seus seguidores deram-lhe o cognome de “Mahatma”, que significa “alma grande”.
Mas o governo britânico não desistia facilmente da Índia e Gandhi foi preso depois da Marcha do Sal. Decidiu então jejuar, a fim de pressionar as autoridades. Foi uma forma poderosa e não-violenta de ameaçar o governo. Como este não queria ser responsável pela morte de Gandhi, após seis dias de greve de fome, acordou em proteger os direitos cívicos dos “intocáveis”. Conseguir mudanças sociais através de meios pacíficos foi o grande contributo de Gandhi para a humanidade.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os indianos de religião hindu e os indianos de religião muçulmana travaram uma guerra civil motivada pelas suas diferenças religiosas e culturais. Massacres e actos de destruição devastaram o país inteiro.
Durante todo este período de grande anarquia e sofrimento, Gandhi percorreu, descalço, aldeias remotas que tinham sido destruídas e continuou a pregar a sua mensagem de não-violência.
A 12 de Agosto de 1947, a Índia conseguiu, finalmente, libertar-se do domínio britânico. Mas o país estava separado em duas partes: a sul ficava a Índia, de maioria hindu, liderada pelo Primeiro-Ministro Jawaharlal Nehru e, a norte, o Paquistão muçulmano, liderado pelo Governador-Geral do Paquistão e Presidente da Liga Muçulmana, Muhammad Ali Jinnah.
Gandhi não comemorou a independência da Índia. Encetou um período de jejum para lembrar a Hindus e Muçulmanos a importância da paciência, da compreensão e do perdão, face à intransigência. Ansiava que o seu povo vencesse o ódio através do amor.
Como o movimento da satyagraha conseguira vencer o domínio britânico, Gandhi confiava que ele pudesse também unificar as facções que agora dividiam a Índia. Mas tal unificação nunca viria a consumar-se.
Embora extremamente debilitado devido ao jejum, Gandhi, agora com 78 anos, continuou a dirigir-se aos seus seguidores. Como ensinava e professava a irmandade de todas as pessoas e religiões, era odiado pelos Hindus e Muçulmanos, que acreditavam que a sua própria religião era a única verdadeira
No dia 30 de Janeiro de 1948, ao cair da tarde, quando Gandhi se dirigia para um encontro de oração, no qual era aguardado por milhares de pessoas, um Hindu, de nome Nathuram Godse, disparou sobre ele, atingindo-o mortalmente no coração. Gandhi caiu. As suas últimas palavras foram palavras de compaixão e amor:
Rama, rama, rama .
(Perdoo-te, amo-te, abençoo-te.)
Foi cremado em Nova Deli. Milhões de pessoas, vindas de toda a Índia e de todos os cantos do mundo, choraram a perda deste extraordinário mensageiro da paz.
Quando morreu, Gandhi tinha poucos bens: duas colheres, duas panelas, três macacos, três livros, um relógio de bolso, um par de óculos, uma tigela de alumínio (recordação da prisão), um conjunto de secretária, dois pares de sandálias, e a sua khadi.
As suas cinzas foram misturadas com pétalas de rosa e espalhadas pela família na confluência dos três grandes rios indianos: o Ganges, o Jumna e o Sarasvati.
O Bhagavad-Gītā diz que sermos unos com o Senhor do Amor é o estado supremo de ventura. Se conseguirmos atingir esse estado, passaremos da morte à imortalidade. O amor ilimitado de Mahatma Gandhi pela humanidade guiou a sua vida, mudou a vida de milhões de pessoas, e tornou-o imortal.
Demi
Gandhi
New York , Margaret K. McElderry Books, 2001
tradução e adaptação
A casa que o amor construiu
Esta história é verdadeira. Passou-se em França depois da Primeira Guerra Mundial, durante a qual uma aldeia inteira foi destruída pelos combates.
Marie acordou sobressaltada na escuridão cerrada e sentiu o cheiro familiar da sujidade. O seu pequeno corpo estremeceu com o frio húmido. Enquanto se levantava para arranjar a cama feita de trapos e de serapilheira no chão sujo, o pesadelo que lhe tinha abalado o sono pairava sobre ela como uma nuvem negra. Era todas as noites o mesmo pesadelo. Continuar a ler
Táxi – António Torrado
Deram ao cachorrinho o nome de “Táxi”. Com tantos nomes disponíveis, logo foram escolher este! Mas ele não se importava.
— Táxi! — chamavam.
E ele vinha, a dar ao rabo, sempre contente.
Mas eram os donos de má qualidade. Gostavam de brincar com o cachorrinho, pois gostavam, mas quando o viram crescer e transformar-se num grande cão disseram:
— O Táxi só está a estorvar. Não podemos mantê-lo cá em casa.
Abandonaram-no. Há gente assim, sem coração.
O Táxi viu-se no meio de uma rua, com grande movimento, e desorientou-se.
Cheirou o ar e não deu com o caminho de casa. Nem valia a pena.
Supomos que o Táxi suspeitava que já o não queriam. Tinha de conformar-se. Ia ser um cão vadio, um cão de rua, um Táxi sem dono nem passageiro.
— Táxi — chamaram, perto.
Ele acorreu ao chamamento.
— Sai daqui, cão — enxotou-o uma senhora, que ia a apanhar um táxi.
— Táxi — chamaram, mais adiante.
O cão não se fez esperar, mas um senhor cheio de embrulhos, que ia a entrar num táxi, deu-lhe um pontapé.
Ele não percebia. Chamavam-no e logo o rejeitavam. Gente esquisita.
De desilusão em desilusão, foi ter a uma praça de táxis. Mero acaso. Um motorista, que estava à espera de freguês, partilhou com ele uma bucha com queijo.
— Como te chamas? — perguntou-lhe o motorista por perguntar.
Se ele pudesse responder… Fosse como fosse, talvez por afinidade, foi-se deixando ficar. Os motoristas acharam graça à alegre pressa com que ele se levantava dos quartos traseiros quando alguém pedia um táxi.
— É cá dos nossos — diziam.
E adoptaram-no. Continuava a ser um táxi livre, sem dono, mas protegido por uma quantidade de amigos.
Afinal, o nome Táxi sempre lhe valera para alguma coisa.
António Torrado
(adaptado)
A gaivota que não queria ser – António Torrado
Era uma vez uma gaivota que gostava de ser pomba.
Dizia ela que as gaivotas não servem para nada, ao passo que as pombas sempre servem para alguma coisa.
— Levam cartas, mensagens, avisos de um lado para o outro — explicava ela às outras gaivotas. — São as pombas ou os pombos-correios.
— Também há quem as cozinhe com ervilhas — interrompeu-a uma gaivota trocista.
— Essa serventia a nós não nos interessa — arrepiaram-se as outras gaivotas, que voaram, alarmadas.
Ficou sozinha a gaivota que queria ser pomba. Servir de cozinhado também não estava nas suas ambições, mas à falta de outro préstimo… E pensou: “Gaivota estufada”, “Gaivota de cabidela”, “Gaivota guisada com batatas”…
Realmente, não lhe soava bem. E menos bem devia saber, porque nunca lhe constara que os humanos, de boca aberta para todos os gostos, tivessem incluído tais receitas nos seus livros de cozinha.
A gaivota que queria ser pomba ficou a olhar o mar. Ia abrir as suas asas para as lançar sobre as ondas, à cata de peixinho para o almoço, quando um estranho torpor lhe tomou o corpo. Deteve-se. Encolheu-se. Tapou a cabeça com uma asa. Aquilo havia de passar.
As outras gaivotas, que há pouco tinham debandado, regressavam à praia, apanhadas pelo mesmo entorpecimento que atingira a gaivota desta história.
Formaram um bando tiritante, rente ao mar. Umas, levantadas numa só pata, outras escondidas numa cova da areia, olhavam as águas esverdinhadas, espumosas, como turistas descontentes com a paisagem.
— Estão as gaivotas em terra — disse uma voz humana, abrindo uma janela, junto à praia. — Vai haver tempestade. Sendo assim, já não me arrisco a ir para o ar.
De facto, quando as gaivotas ficam em terra, os pescadores sabem que o tempo vai mudar. Elas é que dão o sinal. Elas é que sabem. Elas é que pressentem quando a tempestade se aproxima.
“Afinal, sempre tenho alguma utilidade”, pensou a gaivota que queria ser pomba, toda enrolada numa bola de penas, e, daí em diante, preferiu continuar a ser gaivota.
António Torrado
adaptado