Susanna Tamaro
Cada palavra é uma semente
Lisboa, Editorial Presença
Acreditando que a escrita deve propagar a semente da inquietação, Susanna Tamaro aborda neste livro, sempre numa atitude de espanto e de humildade, o grande mistério da vida humana. Uma viagem espiritual, embaladora, que nos confronta e nos inspira através do realismo e da sensibilidade da prosa envolvente a que Susanna Tamaro já nos habituou.
Cada palavra é uma semente
Excerto
O meu pai era uma pessoa bastante especial. Vivia num pequeno quarto com uma varanda que dava para a gravilha de uma linha férrea. Já estava reformado há alguns anos e sentia-se feliz. Não sei o que fazia o dia todo, não tinha amigos, não convivia com ninguém. Sentia-se vaidoso por poder comprar o passe social a preço reduzido. «Sabes — dizia-me ele —, por esta quantia, por esta modesta quantia, posso viajar dia e noite, nos meios de transporte que quiser.»
Acho que passava a maior parte do seu tempo a andar nos autocarros e nos comboios citadinos.
Por mais do que uma vez, fui encontrá-lo em lugares impensáveis, muito afastados da casa onde vivia. O passo era sempre o mesmo, mãos atrás das costas, ar absorto. E quando eu lhe perguntava: «O que é que andas a fazer por estes lados?», respondia invariavelmente: «Vim dar uma volta.»
Por vezes, eram os amigos que me diziam onde ele estava. «Vi-o perto do entroncamento… no túmulo de Nero… no fundo da Aurelia… no átrio da Stazione Tiburtina… «Estava sozinho?» «Claro.» «O que é que estava a fazer?» «A passear.»
À noite, voltava para casa e desligava o telefone, ou talvez, mais simplesmente, evitava atender. Penso que já só havia duas ou três pessoas que soubessem o seu número, mas isso não tinha importância. Não queria ser incomodado, não queria que ninguém fosse lá a casa, ser convidado, para lhe dar cabo do seu tempo.
Na varanda, tinha uma bicicleta já velha; não era um desportista, mas tinha problemas de coração. Por isso, à noite, pedalava. Pedalava e via passar os comboios. De vez em quando, telefonava para me dizer: «Sabes, já começam a aparecer os primeiros pirilampos, vejo-os reluzir entre dois comboios…» Ou então: «Há uma gata que teve gatinhos, dois ruivos e um cinzento. Quando volta da caça, vão a correr ao encontro dela, todos contentes, de cauda levantada.»
O meu pai chegava sempre a horas aos nossos encontros, mas não tinha o sentido do tempo. Olhava para os outros — aqueles a quem o Principezinho chama «os adultos» — com um espanto mal disfarçado. Para onde iam eles a correr? Porque têm tanta pressa? Não conseguia entender.
Já numa idade mais do que adulta, começou a estudar chinês. Descobrira no taoísmo a repercussão perfeita do seu ser. «Pratica o não agir. Tenta não fazer nada. Saboreia o que não tem sabor. Considera o pequeno como grande, o pouco como muito.»
O meu pai não tinha o sentido do tempo, mas, apesar disso, foi ele, juntamente com a minha mãe, quem me deu o meu tempo. Deu-me o tempo, o meu tempo, e deu-me o seu não-tempo, a indiferença total pelo desenrolar das coisas.
Também chego sempre a horas aos encontros, mas abro as cartas uns meses depois de as receber e respondo, se me lembrar, passados uns anos. Quando o telefone toca, nem o ouço. Se digo a alguém «telefono-te amanhã», é certo e sabido que telefonarei passado um mês, não por maldade, desleixo ou arrogância, mas porque também vivo numa espécie de presente eterno. No meu tempo interior, um mês, uma semana, um dia, valem o mesmo.
Quanto tempo demorei a reparar no tempo? Não muito. Devia ter uns sete anos. Lembro-me de uma tarde cinzenta e ventosa, o vento sul entrava por baixo da janela e esfriava o quarto. Eu estava a meter os livros na pasta, para o dia seguinte. De repente, pensei: este dia já passou e nunca mais voltará. Tudo o que vi, senti, sofri e ouvi desapareceu para sempre. Cada pôr do Sol é um pequeno passo para a morte.
Foi a partir de então que comecei a ver de uma forma diferente cada pessoa que encontrava. Havia a pessoa e, a seu lado, um pequeno poço. Esse poço ficava perto da cama e cada entardecer engolia o dia que tinha passado. Havia poços quase vazios, como o meu e o dos meus irmãos, e poços já cheios, como os dos avós. Os poços quase cheios faziam-me chorar.
A partir daí, a ansiedade foi a minha fiel companheira. Sentia-me como um ramo que a chuva atirara para a água de um rio lamacento que ia correndo lentamente para um sítio qualquer, a paisagem não era muito diferente da que vi muitas vezes do comboio, entre Trieste e Veneza. Neblina, casas, campos de milho, canais, choupos e campanários. Neblina, casas e campos de milho. De vez em quando, uma figura escura, de bicicleta.
Nunca tinha pedido para descer aquele rio e não tinha qualquer possibilidade de sair dele, navegava como navegavam os outros todos, mas também com um sentimento de grande impotência.
O que era a vida? Levantar de manhã, ir à casa de banho, ir para a escola, comer, fazer os trabalhos de casa e ir para a cama, para recomeçar, no dia seguinte, a mesma série de sequências ridículas. Haveria de crescer e, em vez de ir para a escola, iria para o trabalho e essa seria a única diferença substancial. Depois, o trabalho também acabaria e os meus cabelos ficariam brancos, as pernas começariam a fraquejar e eu ficaria muito tempo parada diante das passadeiras para peões, antes de atravessar a rua. Depois, as pernas deixariam de aguentar com o meu peso e deitar-me-iam no caixão como, durante tantos anos, me tinha deitado na minha cama. Fim do tédio, fim da repetição, fim de tudo o resto.
Era para isso que as pessoas vinham ao mundo? E o que era a vida senão um monótono desperdício de tempo e de energia?
Nessa altura, como é natural, não sabia nada do Big Bang e do espaço, dos cem milhões de galáxias que giram connosco no cosmos, nem das relações que ligam o espaço ao tempo, a massa à energia Todavia, tinha percebido uma coisa absolutamente fundamental, isto é, que o tempo é como uma seta, sai do arco e vai parar no alvo e nunca pode fazer o percurso inverso. Pelo menos, não para nós, seres humanos e animais e plantas. Para nós que, de uma forma ou de outra, respiramos.
Para os eléctrodos e as partículas fundamentais, tudo muda, não têm relógios, nem encontros marcados, não se apaixonam, nem serão avós, e também não imaginam que a morte existe. Para eles, o passado e o futuro são a mesma coisa.
Para nós, não. Para as criaturas — para todas as criaturas — só há um caminho e uma única direcção. É daí que nasce o espanto, o horror vacui que senti na infância e hoje sente qualquer pessoa que pare, ao menos por um instante, para reflectir.
A pergunta acerca do tempo é, acima de tudo, uma pergunta acerca do sentido. Porquê? Para quem? Para quê?
Tenho um temperamento marcadamente terrestre. Entre olhar para as alturas e olhar para o chão, sempre preferi olhar para o chão. Compreendo mais coisas ao ver uma formiga a transportar uma semente do que ao estudar as fórmulas matemáticas que definem o trajecto das estrelas.
Na memória de todas as culturas, antes do mundo, havia o caos. A certa altura — que talvez ainda não fosse altura nenhuma porque o tempo não existia — houve uma coisa muito pequena que explodiu, gerando uma coisa grande.
Na língua chinesa, o que exprime o caos primogénito — um caos que, naturalmente, não é caos, mas apenas uma ordem diferente da que conhecemos — é o ideograma hun tun..
O meu pai tinha estudado chinês e, durante um certo tempo, eu estudei a caligrafia chinesa. Tinha uma professora minuciosa e silenciosa, mas que, diante das folhas brancas, se transformava e brandia o pincel com energia e graça, como uma dança. Gostava de repetir: «Céu, pai, terra mãe, nós muito pequenos, muito, muito pequenos.»
Os ideogramas não são gatafunhos incompreensíveis, são representações de microcosmos e do macrocosmo.
O Hun Tun, o caos que antecede a criação, é formado por dois ideogramas. O ideograma Hun que representa um homem e, por baixo dele, o Sol, um Sol abaixo do horizonte, ainda prisioneiro das trevas. Pelo contrário, o ideograma Tun representa uma pequena planta que tenta criar raízes. Em ambos os ideogramas, está presente o signo da água. A água é, portanto, a fonte da vida, foi aí que todo o mundo que conhecemos começou a criar raízes. E é também aí, na água do ventre materno, que a vida de cada criatura inicia o seu percurso de crescimento.
Existir no tempo é, acima de tudo, criar raízes.
Um dos livros que leio com maior paixão é o livro da evolução, a vida que houve antes de nós. A grande seta que permitiu o disparo da seta mais pequena, a da nossa existência individual. Uma seta lançada por uma criança e uma seta disparada por um gigante, ambas apontadas para o mesmo alvo.
Eu não posso transformar-me em lémure, tal como um carvalho não pode transformar-se em alga unicelular. No entanto, num determinado momento, a alga começou a imaginar dentro de si o carvalho.
Aconteceu há cerca de quatrocentos milhões de anos, no devónico [Quarto período do Paleozóico, em que apareceram os primeiros vertebrados terrestres e as primeiras plantas vasculares. (NT)] Até essa altura, as plantas tinham vivido e tinham-se propagado apenas horizontalmente.
Todavia, o sonho gera a inquietação e, de repente, tudo o que era cómodo e natural começa a ficar acanhado. Porque não explorar também outros espaços? Porque não tentar atingir a grande estrela que enche de luz o espaço circundante?
Para isso, não se pode estar parado, a flutuar. Necessita-se de um sistema diferente de transporte dos alimentos. É assim que se formam novas células, células muito compridas, capazes de transportar a água para o topo, e outras capazes de voltar a trazer a linfa elaborada para baixo. Assim se desenvolve uma espécie de tecido celular com uma estrutura semelhante à medula, no centro. No meio, há ar, e ar significa respiração. Células com clorofila rodeiam o tecido vascular e a planta cobre-se de pequenos botões, os estornas. Botões que se abrem e fecham para conterem ou libertarem vapor. O vapor sobe até ao céu e o céu restitui-o sob a forma de chuva.
E é nessa altura que a terra dá início ao grande processo da respiração.
Para falar verdade, até há poucos anos, não prestava grande atenção à vida das plantas. Privilegiava o estudo dos animais porque os animais têm um olhar. Só com o tempo, aprofundando alguns pensamentos, é que fui reparando na grande afinidade que existe entre o nosso destino e o destino do mundo vegetal.
Entre nós e uma planta, a diferença não é muito grande. Tanto nós como elas somos feitos de tecido vascular, temos uma medula que nos mantém direitos e nos faz ter, crescendo, uma posição erecta. Tanto nós como elas, para podermos continuar a viver, precisamos da dose de alimento adequada.
Criar raízes, alimentar-se, crescer.
Enquanto os animais crescem na horizontal, nós e as plantas somos seres verticais. Elas aguentam o peso da ramagem, nós, o embaraçoso peso da cabeça.
As plantas demoraram alguns milhares de anos a mudar de estado. Desenvolvendo-se em altura, tinham resolvido vários problemas, mas ainda havia muitos por resolver. O da propagação, por exemplo. Antes do nascimento das sementes, o ovo fecundado não tinha qualquer tipo de protecção, bastava uma mínima mudança de clima para gastar o seu potencial de crescimento.
Por conseguinte, as sementes foram a outra grande revolução silenciosa.
A semente tem tudo no seu interior, pode ficar protegida no ovário, ou transformar-se em fruto e ir parar à barriga de uma pessoa, pode cair ao chão e ficar adormecida durante meses, ou mesmo anos, à espera das condições propícias para crescer, ou pode agarrar-se ao pêlo de um animal e andar a vaguear pelo mundo.
Há sementes que explodem, como a da impatiens, ou voam ligeiras, como o dente-de-leão, e outras que ficam paradas no ar como máquinas de Leonardo.
As sementes são potencialidade, uma potencialidade em prudente espera. Primeiro, não agem, e, quando agem, têm um projecto. A margarida converte-se em margarida, a genciana converte-se em genciana.
As plantas crescem para a luz e nós também crescemos para a Luz, embora muitas vezes façamos tudo para o ignorar.
Olhando à minha volta, tenho muitas vezes a impressão de que, para muitas pessoas, o tempo da vida se parece com um grande armário cheio de gavetas que elas têm de encher o mais depressa possível.
O tempo, com a sua vacuidade, gera ansiedades dificilmente controláveis.
«Não, hoje, não, amanhã, também não. Talvez na semana que vem, mas não sei. É difícil conseguir arranjar tempo.»
Quantas vezes ouvimos conversas deste género?
Estamos no tempo, mas não temos tempo.
Temos de correr, andar, fazer coisas, ver pessoas, adquirir talentos cada vez mais novos para calar o rumor dos dias, dos meses, dos anos que vão passando e que não podemos deter de forma alguma.
Depois, um instante antes de morrermos, talvez vejamos num lampejo a nossa vida e, ao vê-la, aperceber-nos-emos de que os únicos instantes verdadeiramente nossos, verdadeiramente cheios, foram aqueles em que pudemos ter «perdido tempo» para contemplar uma flor, a forma de uma árvore, ou acariciar a cabeça de uma criança que ia a passar ao nosso lado.
Na língua chinesa, a ausência da acção é definida pelo ideograma Xu. Neste ideograma, não há um homem deitado numa rede, há sopros que se movem entre eles, sem gerarem conflitos, numa harmonia perfeita.
A ausência de acção é o movimento perfeito, o movimento do homem que acolheu dentro de si não a arrogância do saber, mas a humildade da sabedoria.
Não agir é estar-se sempre pronto. Pronto para a morte e para a vida. Pronto para a chamada.
«Aqui estou eu, envia-me a mim!», diz o profeta Isaías.
Não diz: «Irei amanhã» ou «Podias ter-me chamado ontem.»
Não, diz: «Aqui estou eu!»
Viver esta dimensão significa, antes de mais, perceber que o nosso tempo é como uma fatia de gelado. O seu destino é ser consumido, ou derreter-se.
Ao passo que o verdadeiro tempo, ou seja, o gelado inteiro, permanece no congelador.
Existia antes e continua a existir, depois de a nossa porção ter terminado.
Para se perceber o tempo, para se perceber o significado mais profundo, em vez de o interpretarmos, teríamos de nos despojar.
Despojarmo-nos do eu, mais do que de qualquer outra coisa.
Eu quero, eu faço, eu compreendo, eu sou.
Despojarmo-nos e esperar.
Esperar e ouvir.
Assim, a pouco e pouco, iremos reparando que este tempo, este tempo que nos torna ansiosos, este tempo em que vamos acumulando coisas a fazer e a dizer, é, na realidade, um tempo que não difere muito da corrida de uma formiga, um tempo ligeiro, breve, curto. O verdadeiro tempo não é esse.
É o tempo do mistério e da transcendência.
É o tempo em que a cada semente será revelado o seu projecto. Um tempo que nos envolve e nos ultrapassa. Um tempo sem tempo, sem madrugadas, nem crepúsculos, sem aniversários, nem funerais.
É um tempo que nos antecede e nos segue, mas é também um tempo que nos acompanha ao longo dos dias, ou melhor, que irrompe nos dias, salvando-nos da deriva.
É o tempo da humildade, da descida às raízes.
O tempo da escuta, da escuta que se transforma em diálogo.
É o tempo do acolhimento e do reconhecimento.
É o tempo da semente que se transforma em rebento e do rebento que se transforma em planta.
É o tempo da planta que transforma a energia do crescimento na beleza inútil da flor e que, um momento antes de murchar e deixar cair as sementes, repara com espanto que aquilo a que, até esse momento, chamara Luz, era, de facto, Amor.
Quando ando pelas ruas de Roma, de noite e de dia, tenho muitas vezes a impressão de que estou a ver o meu pai.
Não era ele, aquela figura de perfil, no autocarro meio vazio? Aquele casaco que acabava de dobrar a esquina não era o seu?
De tempos a tempos, paro e ouço-o suspirar. Suspirava muito. Suspirava como se sentisse sempre um peso no coração.
As suas longas e intermináveis caminhadas talvez fossem uma tentativa para se libertar desse peso.
Caminhando sem parar, talvez andasse à procura de uma coisa qualquer que, de repente, lhe tornasse tudo claro.
Caminhava para fugir, para fugir de si mesmo, do seu passado, da sua solidão.
E talvez caminhasse também com a esperança desesperada de que lhe aparecesse, de repente, o rosto do Outro.
Porque uma semente pode estar parada na terra durante meses, durante anos, mas, nessa obscura permanência, nunca deixa de desejar a água, de esperar por ela.
Espera pela água e pela força que lhe permita romper o tegumento e começar a subir para as alturas, para o universo da luz e da respiração. Para descobrir finalmente a forma que, desde o início, tinha sido chamada a assumir no mundo.
Pouco antes de morrer, o meu pai tentou escrever-me um bilhete. Não conseguiu.
Na folha, só ficou um ponto.
O que terá querido dizer?
Perdão? Medo?
Ou seria paz?
Nunca saberei, pelo menos neste tempo.
No mistério deste tempo-seta, lançado para as trevas do cosmos justamente pela explosão de um ponto.