Pão e poesia

Na minha escola havia uma matéria chamada “Biblioteca”, adorada por todos os alunos.

O motivo de tanta adoração não é esse que a nossa esperança literária acalenta, o amor pela leitura. Era de outra ordem: o amor pelo ócio. Ou melhor, pela liberdade, para não soarmos tão vagabundos. Durante uma hora, não precisávamos copiar textos do quadro, nem fazer exercícios, nem decorar regras e sistemas, nem nada. Estávamos livres. Era assim, ao menos, que a maioria compreendia a matéria. Íamos para a biblioteca, e folheávamos revistas, e batíamos papo, e cantávamos baixinho, e dormíamos.

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A criança no sótão

 

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Vou chamar-lhe Walter, embora esse não seja o seu verdadeiro nome.

Walter era uma criança esperta que não se empenhava muito nos estudos.

Um dia, a sua vida mudou radicalmente. O pai abandonou-o e aos irmãos, deixando a mãe com três rapazes para cuidar. Como o Estado não fornecia qualquer tipo de apoio a mães trabalhadoras, a mãe de Walter trabalhava em vários lados a fim de assegurar o sustento dos filhos. À medida que as férias grandes se aproximavam, começou a preocupar-se com os perigos a que os filhos estariam sujeitos ao vaguear pelas ruas enquanto ela trabalhava. Continuar a ler

Saïd, o rapaz do lampião

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Toni estava saturado de andar às voltas no templo de Karnak, no meio do grupo de turistas.

As sandálias, cheias de areias e de pequenas pedras, feriam-lhe os pés, e a mãe tinha-o obrigado a vestir calções e a calçar peúgas. Para cúmulo, tinha ainda de usar um chapéu de palha de aba larga, para se proteger do sol. Tanto ele como a mãe eram os únicos na família que tinham aquela cor delicada, muito branca, herdada de um antepassado caucasiano longínquo. Toni sentia-se ridículo vestido daquela forma.

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Uma mudança para melhor

Desde pequena que me diziam para não cometer os erros da minha mãe. É certo que ela não tinha tido uma vida fácil: Engravidara aos 17 anos e culpavame constantemente pelos fracassos da sua vida. Como era incapaz de tomar conta de mim, tiveram de ser os meus avós a ir buscarme quando eu tinha seis semanas e a criarme como se fosse filha deles. Continuar a ler

O limpador de placas

Conheci um homem que era limpador de placas de rua.
Todas as manhãs, às sete horas, ele ia para o trabalho.
Para chegar à Central de Limpeza de Placas de Rua, na Praça do Incenso, ele levava mais ou menos meia hora. Cumprimentava o porteiro, fazia algum comentário sobre o tempo e ia para o vestiário.
Lá vestia um macacão azul, botas azuis de borracha, e depois, sem muita pressa, ia para o almoxarifado, onde lhe entregavam uma escada azul, um balde azul, uma escova azul e uma flanela também azul.
Enquanto ia arrumando as coisas, ele conversava com os colegas, que também preparavam seus instrumentos de trabalho. Depois iam todos até ao depósito pegar as bicicletas azuis e saíam pelo portão.
A saída dos limpadores de placas de rua nas suas bicicletas era um espetáculo magnífico. Eles pareciam imensos pássaros azuis saindo do ninho ao mesmo tempo. Continuar a ler

O dia mais fantástico

Do lado de fora da minha janela há um cenário de beleza de cortar a respiração. Penhascos encimados por árvores erguem-se ao longo do rio, e, de cada vez que o sol se liberta das nuvens, polvilha as folhas de luz e ilumina o rio de reflexos de ouro.

Cá dentro, mais imagens alimentam os meus olhos. Um Buda sobre uma mesa de cerejeira, a sua eterna gargalhada magistralmente captada por um xilogravador filipino, e um cacho de cristais de quartzo a brilhar aos seus pés. Um conjunto de fotografias — família, amigos e locais longínquos — aumenta o encanto desta exposição.

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A televisão e o coração do homem

Aqui é de televisão que se fala.

É de televisão que venho falando há mais de trinta anos. Porquê? Digamos que por amor. Não encontro melhor explicação, dado que só ele justifica a entrega de corpo e alma. A televisão é um dos grandes milagres do nosso tempo. Só para conhecê-la já valeu a pena ter vivido. Infelizmente, nem sempre tem sido usada da melhor forma, e isso me motivou para o combate.

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Professores e alunos

Professores e alunos

Há uns anos fiz uma investigação em várias escolas secundárias de Lisboa. Depois de ter analisado os problemas dos jovens que tinham feito tentativas de suicídio, quis saber o que pensavam sobre o tema alunos que nunca tivessem ido a uma consulta de Psiquiatria. Numa das escolas conheci uma professora do Conselho Executivo com quem travei um inesquecível diálogo.

Depois de lhe explicar o objetivo do estudo, pretendi falar com os estudantes. Respondeu-me que não valia a pena, poderia falar com muitos alunos na minha consulta hospitalar. Disse-lhe que queria falar com jovens… normais. Então encostou-se na cadeira, segurou os óculos de lentes grossas e disse-me: «NORMAIS?! Normais aqui nesta escola? Não existem!»  Continuar a ler

Tensões étnico-políticas – A Europa no Rescaldo da Segunda Guerra Mundial

Tensões étnico-políticas
A Europa no Rescaldo da Segunda Guerra Mundial

Nas suas memórias do final dos anos 40 e dos anos 50 do século XX, publicadas depois da sua morte na sequência do famoso «assassinato do chapéu-de-chuva», em Londres, no ano de 1978, o escritor dissidente búlgaro Georgi Markov contava uma história emblemática do período do pós‑guerra – não só do seu país mas da Europa como um todo. Envolvia uma conversa entre um dos seus amigos, que tinha sido preso por confrontar um funcionário comunista que tinha passado à frente na fila do pão e um oficial da milícia comunista búlgara:

«E agora diz-me quem são os teus inimigos?», perguntou o chefe da milícia.

K. pensou durante algum tempo e respondeu: «Não sei, acho que não tenho inimigos.»

«Não tens inimigos!» O chefe levantou a voz. «Estás a querer dizer que não odeias ninguém e que ninguém te odeia?»

«Tanto quanto sei, ninguém.»

«Estás a mentir!», gritou, de súbito, o tenente-coronel, levantando-se da sua cadeira. «Que tipo de homem és tu, se não tens inimigos? Claramente não pertences à nossa juventude, não podes ser um dos nossos cidadãos, se não tens inimigos!… E se, de facto, não sabes como odiar, ensinar-te-emos! Ensinar-te-emos muito depressa!»

Em certo sentido, o chefe da milícia desta história tem razão – era praticamente impossível emergir da Segunda Guerra Mundial sem Continuar a ler

O concurso real

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Nota das Autoras

“O Concurso Real” inspirou-se na história verdadeira do nosso avô, Hong Seung Han, que viveu na Coreia no final do século dezanove. Iletrado e demasiado pobre para aceder ao ensino, Hong costumava escutar à porta da escola destinada apenas a meninos ricos, para tentar aprender algo. Um dia, porém, permitiram-lhe integrar a turma. Depois de ganhar uma competição académica nacional, o governador da província convidou-o a residir no palácio, onde Hong ensinava o jovem filho do governador enquanto prosseguia a sua própria educação.
Anos mais tarde, o nosso avô frequentou um seminário em Pyongyang, no qual estudou sob a orientação de um missionário americano, e tornou-se um pastor célebre. Em 1905, casou com a nossa avó, Pang Seung Hwa, e trabalharam juntos como missionários na China.

***

No tempo em que os reis governavam a Coreia, apenas as crianças privilegiadas iam à escola. Vestiam roupas delicadas, possuíam livros e podiam candidatar-se ao Concurso Real, que se realizava no palácio do governador. Um dia, todas elas seriam pessoas eruditas e nobres. Song-ho não se contava entre esses privilegiados e vestia-se de forma andrajosa. Contudo, o som distante do sino da escola fazia-o sonhar com o dia em que poderia ler livros e escrever poesia.

Song-ho observava a mãe a lavar o rosto cansado numa bacia de água, mal a luz fraca do dia iluminava a pequena cabana onde moravam. A mãe pedia-lhe que fosse um bom rapaz e Song-ho prometia que realizaria todas as tarefas de que ela o incumbira. Depois, a mãe saía para os campos de milho para trabalhar. O pai de Song-ho fora pescador, mas tinha morrido no mar há alguns anos. A mãe trabalhava na colheita dos cereais em cada estação para poder pôr comida na mesa. Se o dia lhe corresse bem, traria para casa uma braçada de frutos e legumes murchos. Quanto ao filho, varria a cabana, demolhava os grãos de soja para o jantar e lavava os trapos no ribeiro da montanha.

Um dia, enquanto Song-ho torcia o último farrapo no ribeiro, Continuar a ler

Conversas maldosas

Conversas maldosas

Introdução

O relacionamento com os outros é uma necessidade universal, assim como o sentimento de pertença. No entanto, é importante compreender que se pode responder a estas exigências tanto de forma construtiva como destrutiva. Conversas maldosas é a história de uma rapariga chamada Bailey que o fez de um modo destrutivo. Infelizmente, Bailey não é uma exceção. Na nossa cultura aprendemos muitas vezes a relacionar-nos com os outros pela partilha de informação negativa (“Ouviste falar de _____?”) ou de informação que não nos compete a nós partilhar (“Imagina o que eu ouvi?”), ou dando opiniões ou conselhos não solicitados (“Não é para te desiludir, mas…”).
Alguns estudiosos descobriram que as mulheres são particularmente vulneráveis à armadilha das “conversas maldosas”. Isto faz todo o sentido, dado que as meninas aprendem a socializar desde muito cedo no seio de uma cultura que sugere relações mais íntimas com os outros pela partilha de segredos… Por vezes, os próprios segredos, muitas vezes, os dos outros.
Enquanto adultos, uma das nossas tarefas é a de ensinar rapazes e raparigas a desenvolver relações saudáveis e íntimas sem partilhar informação que não é deles e que não lhes compete divulgar. Partilhar os problemas dos outros permite estabelecer laços e torna-se entusiasmante. Mas pode também vir a ser um pau de dois bicos, que acaba por ferir…
A necessidade de adquirir poder e estatuto entre pares pode levar aos rumores, à criação de alianças, à exclusão, e a uma miríade de outros comportamentos destrutivos, sintomáticos de agressões relacionais. Infelizmente, o desfecho inclui quase sempre relacionamentos desfeitos e sentimentos de traição que podem bem prolongar-se até à idade adulta. Seria bem melhor que as crianças aprendessem cedo a criar e manter amizades, usando conversas construtivas e saudáveis, e partilhando esperanças, sonhos e objetivos, em vez de ferir-se umas às outras.

**

Conheço uma rapariga que tem realmente uma língua enorme… O nome dela é Bailey. Bailey Boca Grande. Nunca soube que lhe chamo isto porque eu nunca o disse em voz alta. Mas é o que penso.
Quando Bailey veio para a Escola básica de Hoover, a minha professora, a Srª. Rodriguez, escolheu-me para ser a “Amiga das Boas Vindas”.
No início, eu mostrava-me um pouco envergonhada: tinha medo de dizer algum disparate e que ela não gostasse de mim. Mas Bailey começou logo a tagarelar, a fazer montes de perguntas sobre a escola e sobre os miúdos que a frequentam. E eu gostava de lhe dizer tudo o que ela queria saber.
Sentávamo-nos juntas todos os dias ao almoço e falávamos de tudo. E Bailey nunca esgotava o repertório, contando sempre piadas muito engraçadas.

Tudo estava a correr lindamente — até à noite em que dormimos em casa de Keisha.
“Vamos jogar ao Verdade ou Consequência,” disse Bailey. “Eu sou a primeira. Keisha — verdade ou consequência?”
“Verdade!” respondeu ela com uma risadinha.
“Não é para te ofender, mas essa camisa que trazes é demasiado pequena. Foram as tuas roupas que encolheram ou estás a engordar?”
Keisha abriu a boca de espanto. Continuar a ler

Sobre Harry Potter

Sobre Harry Potter

Agora que chegou ao fim a saga de Harry Potter, talvez valha a pena reflectir sobre alguns dos aspectos da obra.

Quando a saga começa, com o livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, encontramos o protagonista a viver em casa dos tios, que o criaram desde criança, e que têm um filho de idade semelhante à dele. Nesta casa, que deveria ser para ele um lar, Harry é obrigado a dormir num armário debaixo das escadas e enfrenta a hostilidade constante dos familiares. A hostilidade explica-se pelo facto de Harry ter nascido feiticeiro, e de ser filho de um casal de feiticeiros (a mãe dele era irmã da tia). Ficamos a saber, mais tarde, que o casal foi morto pelo maior feiticeiro de sempre, Lord Voldemort, enquanto tentavam salvar o filho, ainda bebé. Harry sobreviveu ao ataque, que lhe deixou uma cicatriz na testa, e que quase matou Voldemort, e isso transforma-o numa lenda viva do mundo da feitiçaria.

Contudo, Harry ignora tudo isto até fazer 11 anos, data em que é chamado a inscrever-se na Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts, que fica situada num castelo, num mundo paralelo ao mundo dos humanos. Toda a obra parte do princípio de que ser feiticeiro é sempre melhor do que ser humano. Aliás, os humanos, apelidados de Muggles (um termo pejorativo que poderia ser traduzido por Trouxas), invejam sistematicamente os feiticeiros e são-lhes, obviamente, inferiores. Todos aqueles anos de degredo para Harry parecem, assim, ter sido recompensados.

Em Hogwarts, o leitor cedo descobre que a competitividade é o valor supremo, e que tudo o que os alunos fazem, de bom e/ou de mau, é registado em termos de pontuação. No final do ano lectivo, a Casa vencedora é a que tiver obtido a maior pontuação. Escusado será dizer que a Casa de Harry Potter (Gryffingdor), que valoriza a bravura e a ousadia, sai sempre vencedora em relação à sua principal rival, Slythering, cujos atributos são a ambição e a astúcia. As outras duas Casas, Ravenclaw e Hufflepuff, apenas existem como pano de fundo. E, contudo, os atributos que elas enaltecem seriam muito mais adequados a uma escola. Ravenclaw valoriza a inteligência e o conhecimento, enquanto Hufflepuff louva o trabalho árduo, a paciência, a lealdade e o jogo limpo.

Num mundo em que o ideal do Guerreiro é sempre visto como superior ao ideal do Cuidador, faz sentido conceber Gryffingdor e Slythering como superiores. Veja-se o estado em que o mundo está…

Assim, em Hogwarts, a inteligência, a bondade e a conquista da excelência à custa do próprio esforço de pouco ou nada valem. A própria vontade de estudar é ridicularizada (veja-se a chacota de que é alvo Hermione Granger, que leva a sério os TPCs que os professores marcam), e as aventuras e os feitos espectaculares é que têm valor. O que importa é derrotar o adversário, num mundo em que todos são adversários, ou apenas aliados contra adversários.

No mundo de Harry Potter, ninguém pensa construir a vida com base nos seus próprios méritos, porque todos são predestinados. Sejam predestinados “bons” ou predestinados “maus”, já nasceram assim e nada do que possam fazer alterará a sua condição. Os predestinados podem até dar-se ao luxo de quebrar regras, o que Harry e o seu melhor amigo, Ron Weasley, fazem constantemente, para desespero dos professores e para gáudio dos próprios, já que as regras não se aplicam a eles, e muito menos a Potter, o mais jovem jogador de Quidditch da Escola desde há um século.

Este jogo bruto e violento, em que pernas e braços partidos são as consequências mais brandas dos encontros, é a única “cadeira” em que Harry se destaca, já que em tudo o resto é um aluno medíocre. Harry não estuda, nem quer saber de estudar: a sua cicatriz dá-lhe o passaporte para o protagonismo de que necessita e dispensa-o da humildade de achar que tem coisas a aprender. Os únicos conhecimentos que lhe interessam são os de Defesa contra as Artes Ocultas, porque Potter precisa de derrotar Voldemort, como vingança pela morte dos pais. Aliás, a vingança torna-se, desde muito cedo, a razão de ser da sua vida.

Os temas da vingança e da morte são uma constante dos livros. E a morte, omnipresente até à exaustão numa obra que se quer para jovens, é tratada com leviandade. No contexto da obra, é considerado normal que haja adolescentes que têm de morrer. Uma cadeira chamada Arte de Adivinhação do Futuro faz, entre outras coisas, isso mesmo: prevê mortes de alunos. Nos livros, tudo se passa como se fosse normal viver a vida rodeado de morte. Quando, em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, aparecem na escola umas personagens chamadas Dementores, que são seres que sugam a alma das pessoas, somos supostos achar que estes riscos fazem parte do quotidiano invejável dos alunos de um estabelecimento de ensino de elite.

Tal como faz parte de Hogwarts a presença de um professor que se revela ser um lobisomem e que, por pouco, não mata alunos; o aparecimento de Devoradores da Morte, emissários de Voldemort, que assassina barbaramente um aluno no final do quarto volume (Harry Potter e o Cálice de Fogo); ou a visita de Neville Longbottom ao manicómio onde estão internados os seus pais, vítimas também eles dos sicários de Lord Voldemort (ver Harry Potter e a Ordem da Fénix). Nestas visitas, Longbottom é sempre acompanhado pela avó, que faz questão que o neto saiba que os pais são uns heróis, porque foram submetidos a tortura e não revelaram os nomes dos inimigos de Voldemort. Assim, o requinte macabro de uns é igualado pela indiferença macabra de outros, já que a avó de Neville prefere ignorar o sofrimento do neto a abdicar do orgulho familiar.

E isto sem falar da forma como Voldemort vai ganhando “vida” ao longo da obra: depois de a sua tentativa de assassinato de Potter ter falhado, e de ter ficado reduzido a um estado virtual, o Senhor do Mal vai parasitando mentes e corpos alheios, incluindo a absorção do sangue de Harry, até ganhar uma forma que lhe permita aguentar o confronto final.

Estas realidades sombrias, apesar de camufladas pela brincadeira e pelo humor (rebuçados de ranho, fantasmas sem cabeça a vaguear pelo castelo, jornalistas metediças, rivalidade entre animais de estimação, paixonetas desencontradas entre alunos) não se tornam menos sombrias. Brinca-se com a integridade física e psíquica, porque se parte do princípio de que o corpo e a mente têm pouco valor e de pouco nos servem num mundo em que reinam poções e varinhas mágicas.

Os protagonistas recorrem às varinhas e às poções sempre que precisam de algo, seja um simples gesto quotidiano como vestir-se, deslocar-se ou comer. Mas também as usam para desarmar os adversários, ler-lhes os pensamentos, estropiá-los, matá-los. O uso da varinha, com tudo o que esse gesto implica de mecanicidade, significa que os esforços, por simples que sejam, são indignos de seres especiais. Aqui, a raiva descarrega-se sobre o(s) outro(s), como nos videojogos, com um simples toque de mãos.

Ao longo de toda a saga, não existe um único momento de introspecção por parte das personagens. Os feiticeiros parecem estar dispensados de pensar e de reflectir. Apenas devem agir. As personagens crescem física e cronologicamente, mas não há evolução interior em nenhuma delas. O guião do que será a sua vida futura já está escrito e tudo o que têm a fazer é decorar o papel. A sua vida está organizada em função de um combate que terão de vencer, seja a que preço for. No final de Harry Potter e a Ordem da Fénix, a figura tutelar de Sirius Black, o padrinho de Potter, é morta, e o protagonista dá-se conta de que a vida só lhe reserva uma opção: ou mata Voldemort ou é morto por ele. A impossibilidade de escapar ao Mal anula qualquer pensamento e reflexão. Como todos lutam pela sobrevivência, e não há como escapar ao destino, os dados estão lançados. Em Hogwarts, não se aprende que “destino” é o que acontece quando não transformamos os conteúdos inconscientes da nossa psique em consciência.

Nos dois últimos volumes da saga, Harry Potter e o Príncipe Misterioso e Harry Potter e os Talismãs da Morte, assistimos a um crescendo de violência, explícita e implícita. Harry empreende uma viagem com Dumbledore, o Director de Hogwarts, para o ajudar na tarefa de destruir a alma de Voldemort, que se encontra espalhada por diversos objectos. Contudo, ao tentar destruir a alma de Voldemort, Dumbledore acaba por ser destruído por ela, e vê-se obrigado a pedir a um colega, Severus Snape, que ponha termo ao seu sofrimento e o mate.

Só resta Harry para, com a ajuda dos Talismãs da Morte (a Pedra da Ressurreição, que ressuscita os mortos, a Varinha de Sabugueiro, que é invencível, e o Manto da Invisibilidade, que é infalível), derrotar definitivamente Voldemort. Mas este antecipa-se e, num dos derradeiros combates, mata Harry, ao lançar-lhe a Maldição da Morte. Contudo, Harry não morre realmente, porque ele é um dos objectos que contêm a alma de Voldemort. Ao tentar matar Potter em bebé, o Senhor do Mal transferiu para a criança uma parte de si. Como essa parte deixou de existir mal Voldemort a matou, Harry pode, apesar de morto, regressar à vida, e acabar de vez com o seu arqui-inimigo. A obra termina com os filhos dos protagonistas a ingressarem, por sua vez, em Hogwarts, onde irão, provavelmente, seguir as pisadas dos seus pais e mães.

O que ganham os nossos jovens com a leitura disto tudo?

Uma coisa é certa: sempre que, na nossa vida, o mundo da sombra usurpa o lugar da luz, todos perdemos.

Sugestões de leitura para adultos – edições brasileiras

A Garota Que Você Deixou Para Trás

Jojo Moyes
Intrínseca, 2014

Jojo Moyes apresenta a comovente história de duas jovens separadas por quase um século no tempo,mas juntas em sua determinação de lutar por aquilo que amam – custe o que custar.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o jovem pintor francês Édouard Lefèvre é obrigado a se separar de sua esposa, Sophie, para lutar no front. Vivendo com os irmãos e os sobrinhos em sua pequena cidade natal, agora ocupada pelos soldados alemães, Sophie apega-se às lembranças do marido admirando um retrato seu pintado por Édouard. Quando o quadro chama a atenção do novo comandante alemão, Sophie arrisca tudo – a família, a reputação e a vida – na esperança de rever Édouard, agora prisioneiro de guerra.

Quase um século depois, na Londres dos anos 2000, a jovem viúva Liv Halston mora sozinha numa moderna casa com paredes de vidro. Ocupando lugar de destaque, um retrato de uma bela jovem, presente do seu marido pouco antes de sua morte prematura, a mantém ligada ao passado. Quando Liv finalmente parece disposta a voltar à vida, um encontro inesperado vai revelar o verdadeiro valor daquela pintura e sua tumultuada trajetória. Ao mergulhar na história da garota do quadro, Liv vê, mais uma vez, sua própria vida virar de cabeça para baixo. Tecido com habilidade, A garota que você deixou para trás alterna momentos tristes e alegres, sem descuidar dos meandros das grandes histórias de amor e da delicadeza dos finais felizes.


1A bibliotecária de Auschwitz

Antonio G. Iturbe
Nova Fronteira, 2013

Muitas histórias do horror e sofrimento testemunhados dentro dos campos de concentração nazistas são contadas e recontadas, já estão gravadas e arquivadas. É difícil, nesses relatos, encontrar atos de esperança e força diante de todo o mal registrado durante o Holocausto.

A Bibliotecária de Auschwitz é um livro diferente. É uma história verdadeira e cheia de detalhes a respeito de um professor judeu, Fredy Hirsh, que criou uma escola secreta dentro do bloco 31, no campo de concentração de Auschwitz, dedicando-se a lecionar para cerca de 500 crianças. Criou também uma biblioteca de poucos volumes com a ajuda de Dita Dorachova, uma menina judia de 14 anos que se arriscava para manter viva a esperança trazida pelo conhecimento e escondia os livros embaixo do vestido. É um registro de uma época sofrida da história, mas que também mostra a coragem de pessoas que não se renderam ao terror e se mantiveram firmes usando os livros como “arma”.


últimos-dias-de-nossos-pais-jOs últimos dias de nossos pais

Joël Dicker
Intrínseca, 2015

Após a frustração de ter tido o Exército britânico encurralado em Dunquerque, Winston Churchill tem uma ideia capaz de mudar o curso da guerra: a criação de uma nova seção do serviço secreto britânico, a SOE (Executiva de Operações Especiais), responsável por conduzir ações de sabotagem e se infiltrar nas linhas inimigas. Algo jamais feito na história. Na esperança de se juntar à Resistência, o jovem Paul-Émile deixa Paris e vai para Londres. Logo recrutado pela SOE, ele se integra a um grupo de franceses que se tornam seus companheiros de coração e de armas. Passando por formações e treinamentos intensos nos quatro cantos da Inglaterra, os selecionados voltarão para a França ocupada para contribuir na resistência. Mas a espionagem alemã está alerta… A existência da SOE por muito tempo foi mantida em segredo. Várias décadas após o fim das atrocidades da Segunda Guerra, Os últimos dias de nossos pais é um dos primeiros romances a abordar sua criação e a relembrar as verdadeiras relações entre a Resistência e a Inglaterra de Churchill. Dicker constrói um livro sobre amor, amizade e medo, com uma profunda reflexão sobre o ser humano e suas fraquezas.


Uma-Prova-do-CeuUma prova do céu

Dr. Eben Alexander

A jornada de um neurocirurgião à vida após a morte

Sextante, 2013

“Minha experiência mostrou que a morte não é o fim da consciência e que a existência humana continua no além-túmulo. E, mais importante ainda, ela se perpetua sob o olhar de um Deus que nos ama e que se importa com cada um de nós.

Cético, defensor da lógica científica e neurocirurgião há mais de 25 anos, o Dr. Eben Alexander viu sua vida virar do avesso quando passou por uma experiência que ele mesmo considerava impossível. Vítima de uma meningite bacteriana grave, ficou em coma por sete dias. Enquanto os médicos tentavam controlar a doença, algo extraordinário aconteceu.

Eben embarcou numa jornada por um mundo completamente estranho. Sem consciência da própria identidade, foi mergulhando cada vez mais fundo nessa realidade difusa, onde conheceu seres celestiais e fez descobertas transformadoras sobre a existência da vida após a morte e a profunda relação que todos nós temos com Deus.

Quando os médicos já pensavam em suspender seu tratamento, o inesperado aconteceu: seus olhos se abriram. Ele estava de volta. Mas nunca mais seria o mesmo. Aquela experiência o levou a questionar tudo em que acreditava até então. Afinal, como neurocirurgião, ele sabia que o que vivenciou não poderia ter sido uma mera fantasia produzida por seu cérebro, que estava praticamente destruído.

Analisando as evidências à luz dos conhecimentos científicos, o Dr. Eben decidiu compartilhar essa incrível história para mostrar que ciência e espiritualidade podem e devem andar juntas.

Narrado com o fascínio de um paciente que visitou o outro lado e com a objetividade de um médico que tenta comprovar a veracidade de sua experiência, este é um livro emocionante sobre a cura física e espiritual e a vida que se esconde nas diversas dimensões do Universo.”


Hereges

Leonardo Padura
Boitempo, 2015

O ponto de partida é um episódio real: a chegada ao porto de Havana do navio S.S. Saint Louis, em 1939, onde se escondiam 900 refugiados vindos da Alemanha. A embarcação passou vários dias à espera de uma autorização para o desembarque. No romance, o garoto Daniel Kaminsky e seu tio, aguardavam nas docas, trazendo um pequeno quadro de Rembrandt que pertencia à família desde o século XVII e que esperavam utilizar como moeda de troca para garantir o desembarque da família que estava no navio. No entanto, o plano fracassa, a autorização não é concedida, e o navio retorna à Alemanha, levando também a esperança do reencontro. Quase setenta anos depois, em 2007, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família.


o homemO Homem que Amava os Cachorros

Leonardo Padura
Boitempo, 2013

A história é narrada, no ano de 2004, pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava com seus cães, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski, seu assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo.

Esse ser obscuro, que Iván passa a denominar “o homem que amava os cachorros”, confia a ele histórias sobre Mercader, um amigo bastante próximo, de quem conhece detalhes íntimos. Diante das descobertas, o narrador reconstrói a trajetória de Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS, e a de Ramón Mercader, o homem que empunhou a picareta que o matou, um personagem sem voz na história e que recebeu, como militante comunista, uma única tarefa: eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.

As duas trajetórias ganham sentido pleno quando Iván projeta sobre elas sua própria experiência na Cuba moderna, seu desenvolvimento intelectual e seu relacionamento com “o homem que amava os cachorros”.


pintassilgoO pintassilgo

Donna Tartt
Companhia das Letras, 2014

Theo Decker, um nova-iorquino de treze anos, sobrevive milagrosamente a um acidente que mata sua mãe. Abandonado pelo pai, Theo é levado pela família de um amigo rico. Desnorteado em seu novo e estranho apartamento na Park Avenue, perseguido por colegas de escola com quem não consegue se comunicar e, acima de tudo, atormentado pela ausência da mãe, Theo se apega a uma importante lembrança dela: uma pequena, misteriosa e cativante pintura que acabará por arrastá-lo ao submundo da arte.

Já adulto, Theo circula com desenvoltura entre os salões nobres e o empoeirado labirinto da loja de antiguidades onde trabalha. Apaixonado e em transe, ele será lançado ao centro de uma perigosa conspiração.
O Pintassilgo é uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência, um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara sensibilidade as cruéis maquinações do destino.


homeroA odisseia de Homero

Gwen Cooper
Editora Sextante, 2010

Todo mundo que tem gatos sabe que eles são dotados de uma sensibilidade incrível e possuem uma forma peculiar de encarar a vida. Mas Homero tinha muito mais a ensinar.

Abandonado, cego e rejeitado, ele tinha tudo para ser amuado e medroso. Ninguém imaginaria que um gato sem os olhos – que precisaram ser retirados cirurgicamente para garantir sua sobrevivência – seria capaz de levar uma vida normal, com a alegria e a esperteza características dos felinos.

Contrariando todas as expectativas, Homero vivia como se seus olhos não lhe fizessem falta. Era bagunceiro, implicante, temperamental, divertido e dengoso como qualquer outro gato. Gwen Cooper fazia questão de afirmar que ele não era diferente. Mas ele era.

Diferente não por causa da falta de visão, mas por sua capacidade de fazer aflorar nas pessoas o que elas tinham de melhor. Parecia haver em seu espírito uma sabedoria oculta e uma energia latente que inspiravam todos à sua volta.

Homero se tornou o centro do mundo de sua dona. Foi se esforçando para garantir a segurança do seu gato que ela aprendeu a estabelecer a sua própria. Foi preocupando-se com a felicidade dele que Gwen percebeu quanto estava sozinha. E foi lhe oferecendo um amor incondicional que ela permitiu que esse sentimento entrasse em sua vida.

Mais do que um livro divertido e comovente sobre as aventuras de um gatinho, A odisseia de Homero é uma história de superação, de autoconhecimento, de transformação e de crescimento pessoal. Ela vai fazer você rir, se emocionar e compreender que, para conseguir o que queremos da vida, muitas vezes precisamos dar um salto no escuro, da mesma forma que Homero: confiando em nossos instintos e acreditando que sempre cairemos de pé.


O Jardim Secreto de Eliza

Kate Morton
Editora Rocco, 2009

O Jardim Secreto de Eliza – Em 1913, um navio chega à Austrália direto de Londres, trazendo com ele uma menina de quatro anos, absolutamente sozinha, sem um acompanhante adulto sequer. Com ela, apenas uma pequena mala com um livro de contos de fadas. O mistério de quem era a bela garota, que dizia não lembrar seu nome, e de como chegou ao porto, jamais foi desvendado. Em suas memórias ela trazia apenas a imagem de uma mulher que ela chamava de a dama ou a Autora e que dizia que viria buscá-la. Muitos anos depois, em 2005, na cidade australiana de Brisbane, a doce e reservada Cassandra herda de sua avó Nell uma casa na Inglaterra. Surpresa, ela descobre que a casa esconde as origens de sua avó, que foi uma vez a bela menina sem nome perdida no porto.

Enquanto acompanha a viagem de Cassandra para a Inglaterra em busca de suas origens, a autora revela uma trama paralela que se desenrola muitos anos antes do nascimento da menina, quando Nell vê seu mundo cair depois que seu pai revela, às vésperas de seu noivado, que ela não é sua filha verdadeira. A notícia a transforma numa mulher estranha, colecionadora de artigos antigos e raros e que vive numa casa em uma região afastada da Austrália. Seu exílio auto imposto, no entanto, é quebrado quando sua filha deixa a pequena Cassandra a seus cuidados. Revoltada com a filha por ter abandonado a menina, assim como aconteceu com ela quando criança, Nell acaba estreitando laços com a neta.

Um dia, porém, nos idos dos anos 1970, Nell, resolve finalmente reconstituir o caminho de volta a terra de onde veio: Londres. Lá, descobre muitas coisas sobre seu passado, incluindo as lembranças da moça que chamava de A Autora: Eliza Makepeace, uma travessa menina contadora de histórias que tinha sua própria cota de tragédias para viver na Inglaterra da virada do século XIX para o XX. Seria Eliza mãe de Nell? E por que ela a abandonou? Agora, é a vez de Cassandra revirar a pequena mala de segredos da avó e saber o que Nell conseguiu descobrir, se é que ela obteve sucesso em sua busca


Na terra da nuvem branca

Sarah Lark
Europa Editora , 2013

Governanta e professora de uma rica família em Londres, Helen Davenport anseia por um casamento, mas, sem pretendentes e já perto de completar 30 anos, sabe que suas possibilidades não são boas. Quando vê, na sua igreja, um anúncio de um fazendeiro na Nova Zelândia que procura uma mulher solteira e honrada para se casar, não pensa duas vezes. Após uma breve troca de correspondências com o pretendente, decide aceitar a proposta e emigrar.
Não muito longe, no País de Gales, Gwyneira Silkham, filha de um nobre e rico criador de ovelhas, está entediada com sua vida. Durante uma negociação de matrizes com um rico fazendeiro da Nova Zelândia, seu pai aceita o desafio para um jogo de cartas aparentemente inofensivo. Acaba apostando — e perdendo — a mão de sua filha em favor do filho do fazendeiro. Surpreendentemente, em vez de se revoltar, Gwyn vê na distante colônia a chance de uma vida vibrante e plena de aventuras.
Ambientado no século 19, durante o início da colonização inglesa na Nova Zelândia, o romance Na Terra da Nuvem Branca conta a história dessas duas corajosas mulheres que mudam radicalmente suas vidas e partem rumo ao desconhecido. Elas se encontram no navio, durante a longa e perigosa viagem, e começam a construir laços de uma duradoura amizade, que será decisiva na luta para a conquista de seus ideais.
Mesmo sendo uma história ficcional, a autora Sara Lark lança um olhar feminino sobre o momento histórico da colonização e a cultura dos nativos maoris. Destaca ainda a personalidade das mulheres e as dificuldades que enfrentam face às oportunidades que uma terra em formação oferece. E constrói uma saga envolvente e apaixonante.


A cidade do sol

Khaled Hosseini
Editora Nova Fronteira, 2013

Mariam tem 33 anos. Sua mãe morreu quando ela tinha 15 anos e Jalil, o homem que deveria ser seu pai, a deu em casamento a Rashid, um sapateiro de 45 anos. Ela sempre soube que seu destino era servir seu marido e dar-lhe muitos filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos.
Laila tem 14 anos. É filha de um professor que sempre lhe diz: “Você pode ser tudo o que quiser.” Ela vai à escola todos os dias, é considerada uma das melhores alunas do colégio e sempre soube que seu destino era muito maior do que casar e ter filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos. Confrontadas pela história, o que parecia impossível acontece: Mariam e Laila se encontram, absolutamente sós. E a partir desse momento, embora a história continue a decidir os destinos, uma outra história começa a ser contada, aquela que ensina que todos nós fazemos parte do “todo humano”, somos iguais na diferença, com nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.


Holocausto brasileiro
Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil

Daniela Arbex
Geração, 2014

Neste livro-reportagem fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.
Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças.


A resposta

Kathryn Stockett
Bertrand Brasil, 2011

A Resposta – Uma história de otimismo ambientada no Mississippi em 1962, durante a gestação do movimento dos direitos civis nos EUA.

Eugenia Skeeter Phelan acabou de se graduar na faculdade e está ansiosa para tornar-se escritora, mas encontra a resistência da mãe, que quer vê-la casada. Porém, o único emprego que consegue é como colunista de dicas domésticas do jornal local. É assim que ela se aproxima de Aibellen, a empregada de uma de suas amigas. Em contanto com ela, Skeeter começa a se lembrar da negra que a criou e, aconselhada a escrever sobre o que a incomoda, tem uma ideia perigosa: escrever um livro em que empregadas domésticas negras relatam o seu relacionamento com patroas brancas.

Mesmo com receio de prováveis retaliações, ela consegue a ajuda de Aibileen, empregada que já ajudou a criar 17 crianças brancas, mas chora a perda do próprio filho, e Minny, cozinheira de mão cheia que, por não levar desaforo para casa, já esteve por diversas vezes desempregada após bater boca com suas patroas. Uma história emocionante e estarrecedora onde a cor da pele das pessoas determina toda a sua vida. Um livro que, devido ao seu tema, chegou a ser recusado por quase sessenta editoras antes de ser publicado.

A criança que não queria falar – Torey Hayden (sugestão de leitura)

Torey Hayden
A criança que não queria falar
Lisboa, Editorial Presença

Esta é a história verídica e comovente da relação entre uma professora que ensina crianças com dificuldades mentais e emocionais, e a sua aluna Sheila, de seis anos, abandonada por uma mãe adolescente e que até então apenas conhecera um mundo onde fora severamente maltratada.

Excerto

A criança que não queria falar

CAPÍTULO 5

No dia seguinte, decidi que chegara a altura de Sheila participar. O autocarro que a trazia deixava-a em frente do liceu a dois quarteirões e, portanto, Anton fora buscá-la para a trazer até à nossa escola. Quando chegaram, Sheila despiu o casaco e dirigiu-se logo à sua cadeira.

Aproximei-me e sentei-me, explicando que nesse dia lhe seria pedido que fizesse algumas coisas. Examinei o horário do dia com ela e disse-lhe que esperava que se nos juntasse para todas as actividades como no anterior e que esperava igualmente que resolvesse alguns exercícios de cálculo para mim na hora da matemática. Acrescentei que nas tardes de quarta-feira cozinhávamos sempre e, portanto, queria que ela nos ajudasse a fazer bananas com chocolate. Era suposto que fizesse estas duas coisas.

Observou-me enquanto eu falava, com os olhos reflectindo a mesma desconfiança do dia anterior. Perguntei-lhe se compreendia o que eu desejava. Não respondeu.

Durante a discussão da manhã, Sheila juntou-se-nos quando lhe fiz o pedido com um olhar severo. Sentou-se aos meus pés sem fazer nada. O cálculo foi outra história. Eu planeara fazer umas contas simples. Portanto, tirei os cubos da gaveta e disse-lhe para que se aproximasse. Permaneceu no sítio onde estivera para a discussão da manhã.

— Sheila, chega aqui, por favor — pedi indicando-lhe a cadeira de que ela tanto gostava. — Vá lá.

Ela não se mexeu. Anton começou a preparar-se cautelosamente para a apanhar, se ela se esquivasse ante a minha aproximação. Ela apercebeu-se logo do nosso plano e entrou em pânico. Esta criança tinha a fobia da perseguição. Com um grito selvagem, pôs-se a correr, derrubando os colegas e os seus trabalhos, naquela fuga. Contudo, Anton estava muito perto e apanhou-a quase de imediato. Arranquei-a aos braços dele.

— Quando te agarramos, não é para te fazer mal, querida. Não percebes? — Sentei-me com ela, abraçando-a com força, pois ela debatia-se. Escutava-lhe a respiração ofegante e receosa.

— Calma, gatinha.

— Eh, malta — gritou Peter, encantado. — Agora, temos de portar-nos todos bem. — Aquelas pequenas cabeças inclinaram-se sobre os cadernos e Tyler levantou-se, solícita, para inspeccionar o trabalho de Susannah e Max.

Sheila retomou a gritaria, com o rosto afogueado. Mas não chorava. Agarrando-a no colo, espalhei os cubos. Alinhei-os, cuidadosamente, enquanto esperava que ela se acalmasse. — Ouve. Quero que contes uns cubos.

Ela gritou ainda mais alto.

— Conta três para mim. — Ela continuava a tentar soltar-se.

— Vou ajudar-te — prossegui, dirigindo a mão renitente para os cubos. — Um, dois, três. Agora, tenta tu.

Ela agarrou inesperadamente num cubo e atirou-o, com toda a força, pela sala. Num abrir e fechar de olhos, pegou num outro, que atingiu Tyler na testa. Tyler soltou um gemido.

Imobilizei o braço de Sheila contra ela e levantei-me, arrastando-a para o canto.

— Aqui não fazemos essas coisas. Ninguém se magoa uns aos outros. Quero que te sentes nesta cadeira até acalmares e poderes voltar a trabalhar — disse, ao mesmo tempo que fazia sinal a Anton para que se aproximasse. — Ajuda-a a ficar na cadeira, se for preciso.

Voltei para junto das outras crianças, esfreguei a testa dorida de Tyler e elogiei todos por se terem mantido ocupados. Colocando uma marca no placard para indicar a nossa aproximação do gelado de sexta-feira, instalei-me junto de Freddie e ajudei-o a empilhar os cubos. No canto, o diabo andava à solta. Sheila gritava selvaticamente, dando pontapés na parede com os ténis e balançando a cadeira. Anton mantinha um silêncio sombrio, conservando-a firmemente no sítio.

Durante todo tempo reservado ao cálculo, Sheila continuou a armar confusão. Quando o recreio já começara há meia hora, estava cansada de dar pontapés e de lutar. Aproximei-me.

— Estás pronta para vires fazer os exercícios comigo? — perguntei. Ela fitou-me e emitiu um grito furioso e sem palavras. Anton deixara de a agarrar, segurando apenas a cadeira, e fiz-lhe sinal para que se ocupasse dos outros. — Quando estiveres disposta para fazer os exercícios, podes vir. Até lá, quero-te nessa cadeira. — Em seguida, virei costas e afastei-me.

O facto de ficar completamente só sobressaltou-a por um instante e deixou de gritar. Quando tomou consciência de que nem Anton nem eu estávamos por perto para a manter na cadeira, levantou-se.

— Estás pronta para o cálculo? — inquiri do outro lado da sala, onde estava a ajudar Peter a construir uma auto-estrada com os cubos.

— Não! Não! Não! — gritou com uma expressão furiosa.

— Nesse caso, volta a sentar-te.

Guinchou de raiva e a sua repentina mudança de volume fez com que todos parassem. Contudo, ela manteve-se ao lado da cadeira.

— Mandei-te sentar, Sheila. Não podes levantar-te até estares pronta para fazeres os exercícios.

Durante o que me pareceu uma eternidade, gritou com tanta força que senti a cabeça a latejar. Depois, repentina e surpreendentemente, reinou a calma e fulminou-me com o olhar. Um ódio tão visível retirou-me a pouca autoconfiança que tinha em relação ao que estava a fazer.

— Senta-te nessa cadeira, Sheila.

Ela obedeceu. Virou a cadeira de forma a poder observar-me, mas sentou-se. Depois, retomou a gritaria. Emiti um profundo e íntimo suspiro de alívio.

— Sabes, Torey, acho que desta vez devíamos ganhar dois pontos por bom comportamento — declarou Peter, fitando-me. — Ela é difícil de ignorar.

— Acho que tens razão, Peter — anuí com um leve sorriso. — Isto vale dois pontos.

Sheila gritou e berrou durante todo o tempo das actividades. Havia uma hora e meia que continuava aquela barulheira. Batia com os pés no chão e balançava a cadeira. Puxava pela roupa e agitava os pulsos. Contudo, manteve-se na cadeira.

Quando chegou a hora do recreio, estava rouca e tudo o que vinha do canto eram leves grasnidos abafados. No entanto, a sua raiva não diminuíra e os grasnidos de fúria continuaram. Permaneci na sala, enquanto Anton levou os outros para o recreio. Tal aumentou a agitação de Sheila durante uns momentos. Emitiu mais alguns gritos e fez girar a cadeira em todos os sentidos. Estava, porém, a ficar cansada. No final do recreio, tinham deixado de se ouvir quaisquer sons vindos do canto. Sentia a cabeça a latejar.

Não repeti as condições para ela sair do canto. Achava que era inteligente bastante para as saber e não queria dar-lhe mais atenção do que aos outros. As crianças entraram, geladas e de faces afogueadas do recreio, cheias de histórias sobre o jogo da cabra-cega na neve com Anton, que fora sempre apanhado. O período de leitura iniciou-se sem novidade, cada um de nós entregue às suas tarefas, como se o montinho de carne sentado na cadeira, ao canto, não existisse.

Quase no final do período de leitura, senti um leve toque no meu ombro, quando estava a trabalhar com Max. Virei-me e deparei com Sheila, de pé, atrás de mim, a pele manchada de ansiedade, o rosto franzido com aquela expressão desconfiada, que os seus olhos tantas vezes reflectiam.

— Estás disposta a fazer os exercícios?

Premiu os lábios durante um momento e depois assentiu devagar com a cabeça.

— Muito bem. Vou pedir à Sarah que ajude o Max. Vai apanhar os cubos que atiraste ao chão e tira os outros do armário junto ao lava-louças.

Falei-lhe num tom casual e desprendido, como se fosse normal esperar que ela obedecesse, embora sentisse um aperto no coração. Ela fitou-me atentamente, mas em seguida foi fazer o que lhe pedira.

Sentámo-nos juntas na alcatifa e espalhei os cubos.

— Mostra-me três cubos.

Ela pegou em três com gestos cautelosos.

— Mostra-me dez.

De novo, dez cubos foram alinhados na alcatifa na minha frente.

— Boa menina. Conheces bem os números, verdade?

Ela ergueu o rosto com uma expressão ansiosa.

— Vou dificultar a tarefa. Conta-me vinte e sete. — Segundos depois, surgiram vinte e sete cubos.

— Sabes somar?

Ela não respondeu.

— Mostra-me quantos cubos são dois mais dois. — Quatro cubos surgiram sem hesitação. Observei-a durante um momento. — Que tal três mais cinco? — Ela alinhou oito cubos.

Ignorava se ela sabia mesmo as soluções, ou se as ia encontrando. Mas compreendia, sem dúvida, a mecânica por trás da adição. Hesitava quanto a ir buscar uma folha e lápis, dado conhecer a sua tendência para destruir papel. Não queria estragar a nossa frágil e recém-conquistada relação. Mas queria saber como é que ela resolvia os problemas. Portanto, decidi mudar para a subtracção, o que me daria mais indicações.

— Mostra-me três menos um.

Sheila alinhou rapidamente dois cubos. Sorri. Era óbvio que conhecia este problema sem ter de colocar três cubos e tirar um.

— Mostra seis menos quatro.

De novo, dois cubos.

— Eh! És muito esperta. Mas tenho um problema para ti em que vou apanhar-te. Mostra-me doze menos sete.

Sheila ergueu o rosto na minha direcção e um leve vestígio de sorriso brilhou-lhe nos olhos, embora não lhe chegasse aos lábios. Colocou um, dois, três, quatro, cinco cubos em cima uns dos outros. Fê-lo, sem sequer olhar para os cubos. «A diabinha», pensei. Onde quer que tivesse estado nestes últimos anos e o que quer que tivesse feito, também aprendera. Tinha capacidades superiores às de uma criança normal da sua idade. Não hesitara uma fracção de segundo, antes de colocar os cubos. O coração pulou-me de alegria ante a hipótese de ter uma criança inteligente debaixo de toda aquela revolta e sujidade.

Resolveu mais alguns exercícios antes de eu lhe dizer que chegava e ela podia largar os cubos. Agora, era o período de leitura e dissera-lhe, de manhã, que ela não tinha de participar nesta activi­dade. Levantei-me para me ocupar das outras crianças e Sheila levantou-se também. Foi atrás de mim, sem largar a caixa dos cubos.

— Podes largá-los, se quiseres, querida — disse, virando-me para ela. — Não precisas de andar com eles atrás de ti.

Sheila tinha outras intenções. Quando voltei a erguer a cabeça, ela estava na sua cadeira favorita no canto oposto da mesa com os cubos espalhados na sua frente. Manipulava-os, muito ocupada, fazendo algo, mas eu não sabia o quê.

O almoço pareceu deprimi-la novamente e Sheila regressou ao seu posto na cadeira. No entanto, quando chegou a hora de cozinhar, convencia-a facilmente a aproximar-se, estendendo-lhe uma banana num pau de chupa-chupa.

Todas as quartas-feiras preparávamos algum prato. Organizara esta actividade por várias razões. Para as crianças mais evoluídas, era um bom exercício de cálculo e leitura. Para todos, encorajava a actividade social, a conversa e trabalho de conjunto. Além de que cozinhar era divertido. Uma vez por mês, pegávamos numa receita favorita das crianças e esta tarde era bananas com chocolate, uma receita que consistia em enfiar uma banana num pau, mergulhá-la em chocolate, enrolá-la numa cobertura e pô-la a congelar.

Para simplificar as coisas, resolvera não experimentar uma receita nova no primeiro dia de Sheila e as bananas com chocolate eram um bom recurso. Quase todas as crianças conseguiam manejar os ingredientes sem ajuda. Até mesmo Susannah conseguia fazer tudo, sob a supervisão atenta de Max e Freddie. Havia, obviamente, chocolate por tudo o que era sítio e uma boa parte das coberturas era devorada antes de encontrarem uma banana onde a colocarem, mas passávamos momentos maravilhosos.

Sheila hesitou em juntar-se-nos, agarrando a banana com firmeza e olhando de lado os outros, que tagarelavam alegremente. Contudo, não ofereceu resistência e Whitney atraiu-a até junto do molho de chocolate, quando todos já haviam acabado. Depois de começar, Sheila absorveu-se por completo na tarefa e começou a tentar enrolar quatro coberturas diferentes na sua pegajosa banana.

Eu observava-a do canto oposto da mesa. Nunca falou, mas tornou-se visível que ela tinha ideias muito claras quanto a fazer que as coberturas colassem, voltando a mergulhar a banana no chocolate depois de a envolver em cada cobertura. As outras crianças começaram a parar uma a uma para a observar enquanto ela experimentava a sua ideia. As vozes transformaram-se num sussurro, à medida que a curiosidade levava a melhor. Enrolando a grande e pegajosa massa no prato com a última cobertura, ergueu-a com cuidado. Os seus olhos encontraram os meus e um sorriso estampou-se-lhe devagar no rosto e atravessou-o de um lado ao outro, mostrando os espaços onde lhe faltavam os dentes de baixo.

No final de cada dia tínhamos actividades que, à semelhança do tópico da manhã, se destinavam a unir-nos e a preparar-nos para o tempo de separação. Uma delas era a Caixa do Duende.

Eu adorava inventar histórias para contar às crianças e dissera-lhes, uma vez, no início do ano, que os duendes eram como fadas, mas viviam nas casas das pessoas e cuidavam das coisas, enquanto elas dormiam. Peter sugerira que talvez houvesse um duende na nossa sala que cuidava das nossas coisas e fazia companhia durante a noite a Benny, Charles e Onions, o coelho irascível. Tal deu azo a uma série de histórias sobre o nosso duende.

Assim, um dia, eu trouxe uma grande caixa de madeira e expliquei às crianças que era este o sítio onde o duende passaria a deixar mensagens. Garanti que ele nos vira a trabalhar e ficara muito satisfeito ao verificar como todos na sala se iam tornando bons e ponderados. Por conseguinte, sempre que assistisse a uma boa acção, deixaria uma mensagem na caixa.

No final de cada dia, eu lia, portanto, os bilhetes da Caixa do Duende. Passados uns dias, disse-lhes que o duende estava a ficar com cãibras e precisava de uma ajuda, porque havia tantos a praticar boas acções. Pedi aos miúdos que estivessem de olho nas boas acções dos outros, escrevessem um bilhete e o metessem na caixa, ou, caso não soubessem escrever, viessem ter comigo e eu escreveria por eles.

Foi assim que começou a funcionar um dos nossos mais populares e eficazes exercícios. Todas as noites havia cerca de trinta bilhetes das crianças sobre boas acções que observavam nos companheiros. Tal não só encorajava as crianças a observarem comportamentos positivos nos outros, mas também rivalizavam em bondade com a esperança de verem o seu nome aparecer na caixa ao fim do dia.

Alguns bilhetes eram tradicionais, mas outros denotavam especial perspicácia no elogio de uma criança devido a pequenos mas significativos actos, às vezes por coisas que nem eu havia notado. Por exemplo, Sarah foi elogiada por não ter usado um seu palavrão favorito durante uma discussão e Freddie foi elogiado por procurar um lenço de papel, em vez de se assoar à camisa.

Eu adorava abrir a caixa todas as noites, pois raramente contribuía para ela, à excepção de me certificar de que todos recebiam, pelo menos, um bilhete. A emoção de ver o que as crianças haviam observado era algo excitante. E confesso que também me agradava encontrar um bilhete que me fosse dirigido.

A leitura das mensagens, depois de cozinharmos na quarta–feira, foi particularmente agradável, porque, pela primeira vez, apareceu o nome de Sheila escrito com uma caligrafia que não era a minha. Sheila, que se mantinha sentada longe de nós, conservou a cabeça baixa, enquanto as outras crianças batiam palmas de satisfação com as suas mensagens. Contudo, aceitou prontamente os bilhetes, quando lhos entreguei.

Anton acompanhou as outras crianças até aos autocarros quando as aulas acabaram. Sentei-me à mesa para classificar uns papéis e actualizar uns gráficos de comportamento que estava a elaborar sobre algumas crianças.

Sheila fora à casa de banho para limpar os restos de banana com chocolate da cara. Já se mantinha lá há algum tempo e eu embrenhara-me no meu trabalho. Ouvi o som do autoclismo e ela saiu. Não levantei a cara, porque estava a completar o traçado de uma curva com um marcador e não queria cometer um erro. Sheila aproximou-se da mesa e observou-me por um momento. Depois, chegou-se mais, apoiando os cotovelos em cima da mesa e inclinando-se de forma a ficarmos apenas uns centímetros separadas. Ergui os olhos e fitei-a. Ela examinou atentamente o meu rosto.

— Por que é que as outras crianças não vão à sanita?

— O quê? — retorqui, surpreendida.

— Disse por que é que os outros, embora sejam crescidos, fazem nas calças e não na sanita?

— Bom. É uma coisa que ainda não aprenderam.

— Como assim? São grandes. Mais crescidos que eu.

— Bom, ainda não aprenderam. Mas estamos a trabalhar nisso. Todos estão a tentar.

Sheila baixou os olhos para o gráfico que eu estava a traçar. — Mas já deviam ter aprendido — insistiu. — O meu pai dava-me uma grande tareia se eu fizesse isso.

— Toda a gente é diferente e aqui ninguém apanha.

Ficou pensativa durante um longo momento e traçou um pequeno círculo na mesa com o dedo.

— Isto é uma sala de malucos, não é?

— Não propriamente, Sheila.

— O meu pai diz que sim. Diz que sou maluca e que me puseam numa aula para crianças malucas. Diz que isto aqui é uma sala para crianças malucas.

— Não propriamente.

— Não me interessa muito — retorquiu, depois de uma pausa com a testa franzida. — Este sítio é tão bom como qualquer outro onde estive antes. Não me interessa que seja uma sala de malucos.

Fiquei um pouco à toa, sem saber como negar o óbvio. Não esperara ver-me envolvida com uma das minhas crianças neste tipo de discussão. A maioria não era coerente bastante para ter essa percepção nem suficientemente corajosa para o afirmar.

— Tu seres maluca? — perguntou Sheila, coçando a cabeça e olhando-me com um ar pensativo.

— Espero que não. — Ri-me.

— Como é que fazes isto?

— O quê? Trabalhar aqui? Porque gosto muito de meninos e meninas e acho que ensinar é divertido.

— Como é que estás com crianças malucas?

— Porque gosto. Ser louco não é mau. E apenas diferente, nada mais.

Sheila abanou a cabeça sem sorrir e endireitou-se.

— Acho que também seres maluca — concluiu.

O diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi – Hélène Berr (sugestão de leitura)

Hélène Berr
Diário – O diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi
Alfragide, Publicações D. Quixote

 

Nascida em 1921 no seio de uma abastada família francesa de origem judia, Hélène Berr estudou Literatura Inglesa na Sorbonne. Erudita e de trato refinado, tinha por hábito reunir-se com os amigos e juntos tocavam, no violino, pecas de compositores como Beethoven, Schubert e Bach.

A 8 de Março de 1943 é capturada e, posteriormente, deportada de Drancy para o campo de concentração de Auschwitz. Nas páginas deste Diário, escrito entre 1942-1944, Hélène descreve como a ocupação nazi foi progressivamente transformando a sua vida num «Horror, Horror, Horror…».

O Diário é um documento comovente de uma densidade excepcional, não só pelo contexto como pela firmeza de carácter e capacidade de resistência da autora face à adversidade das circunstâncias. Hélène morreu de tifo, em Abril de 1944, com 24 anos, pouco antes da libertação do campo de Bergen-Belsen. Anne Frank morrera semanas antes, também de tifo, no mesmo campo. Talvez por isso, Hélène seja considerada a Anne Frank francesa.

 

Diário 

Excerto

1943

Quarta-feira, 25 de Agosto de 1943

Há dez meses que terminei este diário. Esta tarde tiro-o da gaveta para que a Mamã o leve para lugar seguro. Mais uma vez obrigaram-me a dizer que não ficaria em casa no fim-de-semana.

Quase um ano passou, e Drancy, as deportações, os sofrimentos continuam. Muitos acontecimentos se passaram: Denise casou-se; Jean partiu para Espanha sem que o tenha podido ver; todas as minhas amigas do escritório foram presas, e só por um acaso extraordinário eu não estava lá nesse dia; Nicole está noiva de Jean-Paul; Odile voltou; um ano já! As razões para ter esperança são imensas. Mas tornei-me muito circunspecta, e não posso esquecer os sofrimentos. O que se terá passado quando retomar este diário?

 

***

10 de Outubro

Recomeço este diário esta tarde, após um ano de interrupção. Porquê?

Hoje, ao voltar de casa de Georges e Robert, fui bruscamente dominada por uma impressão: a de que é necessário que eu escreva a realidade. Apenas este regresso da Rue Margueritte fora um mundo de factos e pensamentos, de imagens e reflexões. Aquilo de que se faz um livro. E, de súbito, percebi quanto um livro, no fundo, era banal… Quero eu dizer: que outra coisa há num livro que não seja a realidade? O que falta aos homens para poderem escrever é o espírito de observação e a largueza de vistas; não faltando isso, toda a gente poderia escrever livros.

(…)

E no entanto há mil razões que me impedem de escrever e que me importunam neste preciso momento, e me entravarão ainda amanhã e nos outros dias.

Primeiro, uma espécie de preguiça que será dura de vencer. Escrever, e escrever como eu quero, isto é, com uma sinceridade completa, nunca pensando que outros irão ler a fim de não falsear a própria atitude, escrever toda a realidade e as coisas trágicas que vivemos dando-lhe toda a nudez da sua gravidade, sem a deformar pelas palavras, é uma tarefa muito difícil e que exige um esforço constante.

(…)

Depois há também o orgulho. E isso eu não quero. A ideia de que se possa escrever para os outros, para receber os elogios dos outros, causa-me horror.

Talvez haja ainda o sentimento de que «os outros» não nos compreendem a fundo, que eles nos sujam, nos mutilam, e que nos deixamos aviltar como uma mercadoria.

Inutilidade?

Por momentos, também o sentido da inutilidade de tudo isso me paralisa. Outras vezes duvido, e digo a mim própria que este sentido da inutilidade não é senão uma forma de inércia e de preguiça, porque em face de todos estes raciocínios se levanta uma grande razão que, se me convenço da sua validade, tornar-se-á decisiva: tenho um dever a cumprir ao escrever, porque é preciso que os outros saibam. A cada hora do dia repete-se a dolorosa experiência que consiste em nos apercebermos de que os outros não sabem, que não imaginam sequer os padecimentos de outros homens, e o mal que alguns infligem a outros. E sempre tento fazer esse penoso esforço de narrar. Porque é um dever, talvez o único que posso cumprir. Há homens que sabem e que fecham os olhos; a esses não chegarei a convencê-los, já que são duros e egoístas, e eu não tenho autoridade. Mas os outros, os que não sabem e que provavelmente têm suficiente coração para compreender, sobre esses eu devo agir.

Porque, como se curará a humanidade de outra forma senão começando por descobrir toda a sua podridão? Como se purificará o mundo de outra forma, senão fazendo-o compreender a extensão do mal que comete? Tudo é uma questão de compreensão. É esta verdade que me angustia e me atormenta. Não é pela guerra que se vingarão os padecimentos: o sangue chama o sangue, os homens ancoram-se na sua malvadez e cegueira. Se se chegasse a fazer compreender aos homens maus o mal que fazem, se se conseguisse dar-lhes a visão imparcial e completa que deveria ser a glória do ser humano! Demasiadas vezes discuti este tema com os que me rodeiam, com os meus pais, que têm sem dúvida mais experiência do que eu. Só Françoise partilhava as minhas ideias. A mais pequena lembrança de Françoise enche o meu coração de tristeza.

Esta tarde, ao chegar a casa, pensava nela, na maneira como nos entendíamos. Com ela sentia-me viver, um mundo de possibilidades maravilhosas abria-se-me à frente no momento em que ela foi arrancada de mim. Até ao presente, foi sempre assim: os que me pareciam ser desse mundo – o único onde me teria podido desenvolver – foram-me arrebatados antes que dele pudesse ter gozado. Desde então tenho-me censurado; reflecti e pensei que talvez fosse porque não soubesse conhecer os que estavam comigo que os lamentava só depois de partirem. Desde este último desgosto, voltei-me mais para os meus pais e falo mais com eles, e creio que um bom domínio está também aí a abrir-se.

Será, pois preciso que eu escreva, para poder mais tarde mostrar aos homens o que foi esta época. Sei que muitos terão lições maiores a dar e factos mais terríveis a revelar. Penso em todos os deportados, em todos os que jazem nas prisões, em todos os que tentaram a grande experiência da partida. Mas isso não deve levar-me a cometer uma cobardia: cada um na sua pequena esfera pode fazer qualquer coisa. E se pode fazê-lo, deve fazê-lo.

Somente, não tenho tempo de escrever um livro. Não tenho tempo, nem tenho a tranquilidade de espírito necessária. E não tenho, sem dúvida, o distanciamento que é requerido. Tudo o que posso fazer é anotar os factos aqui, os quais ajudarão mais tarde a minha memória se quiser narrar, ou se quiser escrever.

Além disso, há uma hora que escrevo, apercebo-me de que é um alívio, e estou decidida a pôr nestas páginas tudo o que estiver na minha cabeça e no meu coração. Agora termino, para ir acabar o serão com a Mamã.

As cinco pessoas que encontramos no céu – Mitch Albom (sugestão de leitura)

Mitch Albom
As cinco pessoas que encontramos no céu
Lisboa, Bertrand Editora, Lda.

Eddie é um veterano da Segunda Guerra Mundial que sente que a sua vida não tem qualquer sentido nem importância, e lamenta o facto de não ter vivido mais intensamente.
No dia do seu 83º aniversário, morre num acidente trágico ao salvar a vida de uma criança. A última coisa que sente é duas mãozinhas a segurar as suas – e depois o silêncio. É então que tudo começa.

As cinco pessoas que encontramos no céu

Excerto

Todos os pais prejudicam os filhos. É inevitável. A juventude, como um vidro cristalino, absorve as impressões do quem a manuseia. Alguns pais deixam manchas, outros provocam brechas, alguns estilhaçam por completo a infância em ínfimos cacos, sem reparação possível.

Os estragos causados pelo pai de Eddie foram, no início os estragos da negligência. Quando era bebé, Eddie raramente ia para o colo do pai e, em criança, costumava ser agarrado pelo braço mais com irritação do que com amor. A mãe de Eddie dava-lhe carinho; o pai encarregava-se da disciplina.

Aos sábados, o pai de Eddie levava-o ao cais. Eddie saía de casa com visões de carrosséis e pedaços de algodão doce, mas, passada uma hora, o pai encontrava uma cara conhecida e dizia: «Olhas-me pelo miúdo?» Até o pai voltar, geralmente; ao fim da tarde, frequentemente embriagado, Eddie ficava à guarda de um acrobata ou de um domador de animais.

Ainda assim, durante horas incontáveis da sua juventude na marginal, Eddie esperava pela atenção do pai, sentado nas balaustradas ou empoleirado, em cima de caixas de ferramentas, na oficina. Muitas vezes, dizia «Eu posso ajudar, eu possa ajudar!», mas a única tarefa que lhe confiavam era rastejar para debaixo da roda-gigante, de manhã, antes de o parque abrir para apanhar as moedas que tinham caído dos bolsos dos clientes na noite anterior.

Pelo menos quatro noites por semana, o pai jogava às cartas. A mesa tinha dinheiro, garrafas, cigarros e regras. A regra de Eddie era simples: não incomodes. Uma vez, tentou pôr-se ao lado do pai e olhar para as cartas, mas o velho pousou o charuto e rebentou como um trovão, dando um estalo na cara de Eddie com as costas da mão. «Pára de respirar por cima do meu ombro!», disse. Eddie desfez-se em lágrimas e a mãe puxou-o para si, lançando um olhar fulminante ao marido. Eddie nunca mais se aproximou.

Noutras noites, em que o jogo de cartas corria mal e as garrafas estavam vazias e a mãe já dormia, o pai levava os seus trovões para o quarto de Eddie e Joe. Vasculhava os poucos brinquedos, atirando-os contra a parede. Depois, obrigava os filhos a deitarem-se de barriga para baixo, na cama, enquanto ele tirava o cinto e lhes batia, aos gritos de que andavam a esbanjar o seu dinheiro em porcarias. Eddie costumava rezar para que a mãe acordasse, mas, mesmo quando ela o fazia, o pai avisava-a para «não se meter». Vê-la no corredor, agarrada ao roupão e tão indefesa como ele, piorava ainda mais a situação. As mãos que tocavam o vidro da infância de Eddie eram, então, duras, calejadas e vermelhas de raiva, e ele passou os seus anos mais tenros a levar murros, estalos e chicotadas. Esse foi o segundo estrago, depois da negligência. O estrago da violência. Atingiu proporções tais que Eddie conseguia adivinhar, pelo soar dos passos no corredor, a força com que ia ser espancado.

Ao longo desse tempo todo, apesar de tudo, Eddie adorava secretamente o pai, porque os filhos adoram os pais mesmo quando eles se portam da pior maneira possível. Antes de poder dedicar-se a Deus ou a uma mulher, um rapaz dedica-se ao pai, mesmo que não faça sentido, mesmo que não haja explicação para tal.

 

E, de vez em quando, como que para alimentar as brasas mais fracas de uma fogueira, o pai de Eddie deixava uma rugia de orgulho estalar o verniz do seu desinteresse. No campo de basebol, junto do pátio da escola da Avenida 14, o pai postava-se atrás da vedação a ver Eddie jogar. Se Eddie lançava a bola para a parte mais distante do campo, o pai fazia um sinal de assentimento com a cabeça e, quando ele o fazia, Edd corria de base em base. Outras vezes, quando Eddie voltava para casa depois de uma briga de beco, o pai reparava nos punhos arranhados ou no lábio cortado. Perguntava «Em que estado ficou o outro tipo?» e Eddie dizia que o tinha amassado bem. Também isto recebia a aprovação do pai. Quando Eddie atacou os miúdos que estavam a chagar o irmão — os «rufias», como lhes chamava a mãe —, Joe ficou envergonhado e escondeu-se no quarto, mas o pai de Eddie disse: «Não lhe ligues. Tu é que és forte. Tens de tomar conta do teu irmão. Não deixes que ninguém lhe toque.»

Quando Eddie começou o liceu, imitava o horário de Verão do pai, levantando-se antes de raiar o Sol e trabalhando no parque até ao cair da noite. No inicio, limitava-se a ocupar-se das diversões mais simples, manobrando as alavancas dos travões, fazendo os carrinhos parar suavemente. Anos depois, foi trabalhar para a oficina. O pai de Eddie testava-o com problemas de manutenção. Dava-lhe um volante estragado e dizia: «Conserta-o». Apontava para uma corrente enredada e dizia» «Conserta-a». Entregava-lhe um pára-choques enferrujado e um pedaço de lixa e dizia: «Conserta». E de todas as vezes, depois de terminada a sua tarefa, Eddie levava o objecto ao pai e dizia: «Está consertado».

À noite, reuniam-se à volta da mesa do jantar, a mãe rechonchuda e transpirada, a cozinhar ao fogão, o irmão, Joe, a falar pelos cotovelos, com os cabelos e a pele a cheirarem a água do mar. Joe tornara-se um bom nadador e o seu emprego de Verão era trabalhar na piscina de Ruby Pier. Joe falava sobre todas as pessoas que por lá via, os seus fatos-de-banho, o seu dinheiro. O pai de Eddie não ficava impressionado. Uma vez, Eddie ouviu-o falar com a mãe acerca de Joe. «Aquele», disse ele, «só tem resistência para a água.»

Ainda assim, Eddie tinha inveja da maneira como o irmão aparecia ao jantar, tão bronzeado e limpo. As unhas de Eddie, como as do seu pai, estavam manchadas de gordura e, à mesa do jantar, Eddie limpava-as com a unha do polegar, tentando retirar a sujidade. Apanhou o pai a observá-lo, uma vez, e o velho sorriu.

— Mostra que tiveste um dia de trabalho duro — disse ele, e mostrou as suas próprias unhas sujas, antes de enrolar os dedos à volta de um copo de cerveja.

Nessa altura — já um adolescente bem constituído — Eddie limitava-se a fazer que sim com a cabeça. Sem tomar consciência disso, iniciara um ritual de sinalização com o pai, abdicando de palavras ou de afecto físico. Tudo devia ser feito internamente. Sabiam o que sentiam e ponto final. Recusa de afecto. Os estragos estavam feitos.

 

E, então, uma noite, deixaram de falar. Foi depois da guerra, quando Eddie teve alta do hospital e tirou o gesso da perna e voltou para o apartamento da família, na Avenida Beachwood. O pai tinha estado a beber no pub do bairro e, quando voltou para casa, tarde, deparou com Eddie a dormir no sofá. As trevas do combate tinham mudado Eddie. Não saía de casa. Raramente falava, mesmo com Marguerite. Passava horas a olhar pela janela da cozinha, a ver o carrossel, a esfregar o joelho ferido. A mãe sussurrava que «ele precisa de tempo para recuperar), mas, a cada dia que passava, o pai estava cada vez mais agitado. Não compreendia o conceito de depressão. Para ele, era sinal de fraqueza.

— Levanta-te — gritou, proferindo as palavras com dificuldade — e arranja um emprego.

Eddie mexeu-se ligeiramente. O pai voltou a gritar.

— Levanta-te… e arranja um emprego!

O velho estava trôpego, mas aproximou-se de Eddie e deu-lhe um empurrão.

— Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te… e… ARRANJA UM EMPREGO!

Eddie apoiou-se nos cotovelos.

— Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te e…

— CHEGA! — gritou Eddie, pondo-se de pé e ignorando a explosão de dor no joelho. Lançou um olhar fulminante ao pai, o seu rosto a escassos centímetros do dele. Sentiu o hálito a álcool e cigarros.

O velho olhou para a perna de Eddie. Baixou a voz e grunhiu:

— Vês? Não… estás… assim… tão ferido.

Recuou um passo e fez menção de lhe dar um murro, mas Eddie moveu-se instintivamente e agarrou o braço do pai em pleno ar. O velho arregalou os olhos. Era a primeira vez que Eddie se defendia, a primeira vez que fazia qualquer coisa para impedir uma sova, em vez de aguentá-la como se a merecesse O pai baixou os olhos para o seu próprio punho cerrado, suspenso no ar, as suas narinas adejaram, os dentes rangeram e ele recuou, cambaleante, e soltou o braço das garras de Eddie. Fitou Eddie com os olhos de um homem que vê um comboio a afastar-se.

Nunca mais voltou a falar com o filho.

Esta foi a marca final no vidro de Eddie. O silêncio. Assombrou os seus restantes anos de vida. O seu pai remeteu-se ao silêncio quando Eddie saiu de casa e foi morar para o seu próprio apartamento, remeteu-se ao silêncio quando Eddie arranjou emprego como motorista de táxi, silêncio no casamento de Eddie, silêncio quando Eddie vinha visitar a mãe. Ela implorava, chorava e suplicava para que o marido mudasse de ideias, para que deixasse o rancor para trás, mas o pai de Eddie limitava-se a dizer, por entre os maxilares cerrados, o mesmo que dizia a todas as outras pessoas que lhe faziam o mesmo pedido: «O rapaz levantou-me a mão». E assunto encerrado.

Todos os pais prejudicam os filhos. Esta foi a sua vida juntos. Negligência. Violência. Silêncio. E, agora, algures para lá da morte, Eddie deixou-se cair contra uma parede de aço inoxidável e afundou-se num banco de neve, novamente ferido pela recusa de um homem cujo amor, quase inexplicavelmente, ele ainda desejava, um homem que o ignorava, até no Céu. O seu pai. Os estragos estavam feitos.

Sinais do fim de um mundo – Michel Béaud

Sinais do fim de um mundo

  • Desprezo pela Terra e pela vida

Desprezando-se a si mesmo e aos outros, indiferente ao lugar por onde passa, assim como ao tempo que está para vir, o homem do nosso tempo propaga resíduos e dejectos pelo mundo: desde os papéis gordurosos, o gás de escape e os detritos domésticos aos poluentes ricos, metais pesados e detritos radioactivos.

Atira sacos de plástico, caixas e garrafas, embalagens, recipientes e materiais diversos pelas janelas dos carros e dos comboios, em lugares bonitos ou sublimes e até no coração dos desertos e dos cumes dos Himalaias. Acumula pilhas de resíduos perto das suas aglomerações. Lança objectos de trabalho, de consumo e de lazer e muitas toneladas de metais pesados, de resíduos petrolíferos ou de produtos químicos nos mares e nos oceanos; certo da sua capacidade técnica, acumula armas bacteriológicas ou químicas e materiais radioactivos, esquecendo que toda a maquinaria social se pode, um dia, desconjuntar. Destrói as mais belas paisagens até ultrajar a recordação, infecta os terrenos, contamina a terra, a água, o ar. Chega mesmo a obstruir as órbitas mais úteis do espaço com perigosos destroços.

Secagem do mar de Arai, empobrecimento das terras da Ucrânia, descarga nuclear de Cheliabinsk: acidentes sem limites do estatismo totalitário. Florestas devastadas, água imprópria para a irrigação, rios transformados em esgotos químicos por causa dos erros da industrialização. Expulsão dos gases dos navios em pleno mar, destruição das paisagens pela implantação de grandes superfícies, tumefacção das embalagens, recipientes; produtos para deitar fora: prejuízos colectivos para benefícios privados. Danos devidos à insaciável voracidade do homem moderno que invade, se apropria, se apodera, pilha, desperdiça, transforma o planeta numa lixeira e destrói, por muito tempo, os recursos que pensávamos ser inesgotáveis.

Beneficiando de milénios de adaptação e de aprendizagem recíprocas das sociedades e do seu ambiente, de saberes e de belezas, a sociedade, que pretende emergir à escala mundial, é ávida, destruidora, sem consciência. Recursos desperdiçados, terrenos degradados, desertos alargados, águas diminuídas e contaminadas, mares e oceanos transformados em últimas descargas de múltiplos perigos, paisagens ocupadas pelas nossas catedrais industriais e nucleares, depósitos dos nossos detritos radioactivos: as gerações futuras deverão lutar contra tudo isto.

 

  • O aumento dos perigos

Em Minamata, pequeno porto do Japão, nos anos cinquenta e sessenta, uma doença atinge os gatos, de seguida, os pescadores, as suas famílias e outros habitantes. Esta doença ataca o sistema nervoso, conduz à perda de controlo de si mesmo e, depois, à morte; mais tarde, nascem pequenas larvas: a empresa química Chisso que, desde 1932, tinha despejado cerca de 100 toneladas de mercúrio na baía, recusa-se, durante mais de vinte anos, a admitir a sua responsabilidade. Mil e duzentos mortos, dez mil pessoas com a saúde afectada e só em 1996 chegará ao fim de uma longa batalha jurídico-administrativa para a indemnização das vítimas.

Três de Dezembro de 1984, uma fuga de quarenta toneladas de gás isocianato de metilo da fábrica de pesticidas da União Carbide, em Bhopal, provoca, num só dia, entre dois a três mil mortos e numerosas vítimas, das quais milhares estão condenadas a uma morte mais ou menos lenta; a empresa litiga diante dos tribunais americanos, depois indianos, para finalmente negociar com o governo de Deli, em 1989, um acordo «para pagar todas as contas» com indemnizações em valores de uma sexta parte das pedidas de início.

Vinte e seis de Abril de 1986, o reactor n° 4 da central electronuclear de Chernobil explode; as primeiras vítimas são os técnicos da central; são precisos vários dias para que as autoridades soviéticas sejam informadas e tomem a informação em consideração, para que as populações sejam evacuadas e que o exército comece a enterrar o reactor na areia. As autoridades suecas, que tinham sido alertadas da existência de uma elevação da radioactividade no dia 27, difundem a informação no dia 28. Em França, o director do Serviço Central da Protecção contra as radiações ionizadas só no dia 10 de Maio tomará conhecimento de que a nuvem radioactiva sobrevoou o território. Iniciou-se, assim, uma longa saga onde se descobre como é difícil tanto parar um reactor acidentado como limitar a difusão (através das lixeiras, águas, plantas e animais) da radioactividade dispersada.

Minamata, Bhopal, Chernobil: estes acidentes, guias da modernidade industrial, deveriam incitar à reflexão sobre dois séculos de doenças e acidentes de trabalho, de catástrofes industriais e mineiras, de poluição contínua, acidental ou periódica. Isto porque, na Europa Ocidental e na América do Norte a partir do século XIX, no grupo soviético e nos novos países industriais a partir da última guerra, nos países pobres e emergentes desde há já alguns anos e em todo o mundo, existem empresas que podem prejudicar a saúde dos seus trabalhadores, a água, o ar, os terrenos circunvizinhos e, portanto, a vida das populações. Se algumas se comportaram de uma maneira responsável, muitas colocaram o imperativo industrial e a procura pelo menor custo acima do respeito pelos homens e pela vida.

 

Michel Béaud: O Desequilíbrio do Mundo. 2007

“Maravilhas” ignoram o passado esclavagista de Portugal

“Maravilhas” ignoram escravatura

Catedráticos de África, Europa e América acusam o Governo português de querer apagar o seu passado esclavagista.

Vários catedráticos proeminentes especializados no estudo da África de expressão portuguesa e no colonialismo português redigiram uma carta aberta em três línguas (inglês, francês e português), em protesto contra a recente tentativa do Governo português para distorcer a História manchada de sangue da expansão colonial portuguesa.

O Governo português e instituições académicas como a Universidade de Coimbra estão a promover um concurso internacional para encontrar as «Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo» [anunciadas no passado dia 16 de Junho]. Muitas destas maravilhas, dispersas pelo globo, foram erigidas no auge do poder imperial português.

Algumas são, efectivamente, impressionantes. Mas as notas explicativas tratam-nas como pouco mais do que exemplos de excelência arquitectónica. Pelos textos que acompanham o concurso, ninguém suporia que, durante séculos, diversos desses locais desempenharam um papel de charneira no comércio de escravos do Atlântico.

Estimativas indicam que cerca de 12 milhões de africanos foram sequestrados e transportados através do Atlântico na época da escravatura. Portugal e o Brasil foram responsáveis por metade deste número. O comércio de escravos é um facto da maior relevância, que domina a história da expansão colonial portuguesa; mas foi deliberadamente omitido no concurso das «maravilhas».

A carta aberta salienta que, nas últimas décadas, tem havido uma crescente consciencialização da «memória dolorosa do comércio de africanos escravizados, valorizando o património que lhe é associado». Algumas das antigas nações esclavagistas, nomeadamente a França, reconheceram o comércio de escravos como um crime contra a Humanidade, e a França adoptou mesmo uma data específica, 10 de Maio, como «Dia Nacional de Memória do Comércio Negreiro, da Escravatura e da sua Abolição».

O Vaticano, em tempos cúmplice da escravatura, desculpou-se, na pessoa do Papa João Paulo II, quando este visitou a Casa dos Escravos na ilha de Goreia, em frente da costa do Senegal, em 1992. Vários Chefes de Estado de países que estiveram envolvidos no comércio de escravos, incluindo Inácio Lula da Silva, do Brasil, e dois Presidentes dos Estados Unidos, Bill Clinton e George W. Bush, condenaram a escravidão e o passado trágico das suas nações. Em 2007, a Grã-Bretanha comemorou o 200.° aniversário da abolição do comércio de escravos, e o primeiro-ministro de então, Tony Blair, expressou pesar pelo papel britânico na escravização de africanos.

Mas Portugal, assinala a carta aberta, está a remar contra esta maré de reconhecimento e contrição. A lista de «maravilhas» inclui locais como o centro histórico de Luanda, hoje capital de Angola, a ilha de Moçambique, que foi a primeira capital do país, Ribeira Grande na ilha cabo-verdiana de Santiago, e o castelo de S. Jorge da Mina no actual território do Gana.

Todos estes lugares estiveram profundamente envolvidos no comércio de escravos e esse facto é sistematicamente omitido na literatura do concurso. Apenas um texto das «Sete Maravilhas» diz que o Castelo de S. Jorge da Mina foi um depósito de escravos, depois de ter sido ocupado pelos holandeses em 1637. O pressuposto é claro: os holandeses eram esclavagistas, mas os portugueses não; no entanto, assinala a carta aberta, os portugueses fundaram a feitoria de S. Jorge da Mina como entreposto do tráfico de escravos em 1482. Servia igualmente de centro do comércio do ouro e de outros bens; mas não há nenhuma dúvida de que grande número de escravos passou pela Mina quando estava sob o controlo português, para ser desembarcado no Brasil.

A carta aberta acusa o Governo português e os organizadores do concurso de ignorarem «a dor daqueles que tiveram os seus antepassados deportados desses entrepostos comerciais e muitas vezes ali mortos». «Seria possível desvincular a arquitectura dessas construções do papel que elas tiveram no passado e que ainda têm no presente enquanto lugares de memória da imensa tragédia que representou o tráfico transatlântico e a escravidão africana nas colónias euro peias?», perguntam os autores da carta.

A carta aberta foi assinada por dezenas de catedráticos de Universidades de África, Europa e Américas do Norte e do Sul, que quiseram «repudiar a omissão do papel que tiveram esses lugares no comércio atlântico de africanos escravizados».

Paul Fauvet

Allafrica.com (excertos)

29.05.2009

Um Amigo Invulgar – L. S. Mathews (sugestão de leitura)

L. S. Mathews
Um Amigo Invulgar
Lisboa, Editorial Presença

Não sabemos se Tigre é rapaz ou rapariga, porque a história é contada pela própria criança que a vive e ela não se lembrou de deixara clara essa questão. Sabemos que tem 11 anos e acompanhou os pais na sua missão como voluntários numa organização humanitária, para virem ajudar as pessoas deste país onde havia guerra. Tigre só se lembra desta pequena aldeia, e dá-nos a conhecer o seu mundo com uma limpidez quase táctil. Sabemos que é um país devastado, onde existe fome, doença e as pessoas carecem de tudo, um país, além disso, assolado pela seca extrema e por chuvas torrenciais que transformam a poeira em lama pardacenta. Um dia, numa poça de lama deixada pela chuva, Tigre encontra um lindíssimo peixe de escamas irisadas. Quando os pais lhe anunciam que têm de partir numa perigosa jornada pelas montanhas, para fugir aos soldados que se aproximam, Tigre sabe que não poderá deixar para trás o seu amigo peixe. Uma história invulgar, generosa, contada com a magia de um sonho, que poderá ser apreciada de muitas maneiras, conforme o olhar de quem a lê.

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Filhos do Coração – A adopção explicada a pais e filhos

Filhos do Coração

Era uma noite como outra qualquer.

A Luena estava sentada no chão a folhear o álbum de família. Os irmãos brincavam na sala com o Rafa e o Manecas, o cão e o gato lá de casa que, sendo os melhores amigos, às vezes pareciam os piores inimigos.

De repente, o silêncio foi interrompido pela curiosidade de uma menina de cinco anos.

— Mãe… como é que eu nasci? Porque é que não há fotografias minhas em bebé aqui no álbum?

A mãe percebeu que aquela, afinal, ia ser uma noite muito especial. Levantou-se do sofá e foi sentar-se ao lado da filha.

— Vou contar-te a história mais bonita do mundo e a mais especial, porque é a tua história. Sabes como nascem os bebés?

— Nascem de repolhos grandes! — exclamou o Manuel.

— Não é nada… chegam no bico das cegonhas! — contrapôs o Jorge.

Maria desatou a rir e avançou com a sabedoria de quem acredita que domina o mundo do alto dos seus dez anos:

— Os bebés nascem das barrigas das mães! O pai põe uma sementinha num ovo que a mãe tem dentro da barriga e, depois, a barriga começa a crescer, a crescer, a crescer e, nove meses depois, nascem os bebés!

— Nem todos — interrompeu a mãe —, alguns filhos nascem nos corações!

Nesse momento até as certezas da Maria, a irmã mais velha, desapareceram.

Curiosos, os irmãos aproximaram-se da mãe, prontos para ouvir esta história que, como todas as histórias importantes, começa com um…

— Era uma vez… — disse o pai da Luena que acabara de entrar na sala.

— …um coração que engravidou de amor — acrescentou a mãe.

— Os corações também engravidam? — interrompeu a Luena curiosa.

— Claro que sim! Esse coração, tal como as barrigas das mães, cresceu tanto, tanto, tanto, que se apaixonou por uma menina cor de canela e de trancinhas no cabelo que escolheu fazer parte desta família — respondeu o pai emocionado.

— Sabes Luena… há várias maneiras de criar uma família, mas o importante é o amor que une as pessoas dessa família, porque as famílias são para sempre — concluiu a mãe.

— Mesmo quando se zangam? — perguntou o Manuel.

— Claro… não vês que, apesar de se zangarem, o Rafa e o Manecas adoram-se e não conseguem viver um sem o outro? — lembrou a mãe.

A Luena ouvia em silêncio com muita atenção mas, quanto mais lhe explicavam, menos conseguia entender. Pegou na mão da mãe, obrigando-a a fixar o olhar no seu, que suplicava por mais esclarecimentos.

— Então como é que eu cheguei ao teu coração grávido, mãe?

— Já vais perceber… mas, o mais importante é que estás cá dentro, no nosso coração, como todos os teus irmãos.

Pelo olhar perdido da Luena, todos conseguiram imaginar a confusão que reinava na sua cabeça. O pai avançou com mais explicações:

— Sabes Luena, existem muitos lugares no mundo onde os pais não têm condições para criar os filhos…

— …e, por isso, têm que deixá-los em instituições como aquela no Gana, em África, onde nós te vimos pela primeira vez — acrescentou a mãe.

— E nesses lugares existem muitos meninos como eu, mamã? — perguntou a Luena.

A resposta chegou pela mão da irmã mais velha, a quem os dez anos davam direito legítimo a uma resposta sempre na ponta da língua:

— Espalhados pelo mundo, existem meninos de todas as raças e cores que precisam de pais, porque os seus pais da barriga não puderam cuidar deles como eles mereciam.

«Raças» era uma palavra difícil para os irmãos mais novos. O Manuel sabia que era preciso perguntar para conseguir aprender e, por isso, não hesitou:

— O que são raças, papá?

— Raças são características diferentes dos meninos que nascem em todas as partes do mundo: em Portugal, no Gana, na China…

À Luena nunca lhe tinha ocorrido perguntar porque é que a sua cor de pele era diferente da dos seus irmãos… afinal somos todos diferentes uns dos outros! Há crianças gordas, magras, altas, baixas, meninos de olhos azuis e outros de olhos castanhos. A cor da sua pele fora sempre aquela, portanto era uma característica sua.

Ela também sabe que o que é realmente importante sente-se com o coração. E o seu coração traquina dizia-lhe que o importante é o amor que une as famílias e o sentimento de segurança que os filhos têm junto dos pais.

— Ao ver-te pela primeira vez, o nosso coração cresceu tanto, tanto, tanto, que se apaixonou e, desde esse momento, a nossa vida deixou de fazer sentido sem ti — revelou a mãe com ternura.

A Luena ficou em silêncio a saborear o olhar apaixonado dos pais e a pensar em todas as crianças que não têm uma família.

Imaginou os meninos que não pertencem a ninguém e que adormecem à noite sem ter os pais ao seu lado para lhes contarem uma história. Imaginou como deve ser difícil não receber um beijo da mãe todas as manhãs. Imaginou como se devem sentir sozinhas as crianças que estão à espera de conhecer os seus pais do coração…

Espontaneamente correu e abraçou os seus pais com toda a força que conseguiu, numa tentativa desesperada de lhes fazer sentir todo o amor que tem por eles.

— Que bom que é ter uma família! — exclamou feliz.

E a sabedoria dos dez anos da Maria traduziu-se numa verdade simples que, no coração, todos sentem como uma certeza:

— Luena… a nossa família não seria a mesma sem ti…

— É verdade Luena, estamos muito felizes por termos uma irmã como tu — acrescentou o Jorge.

— Papá, e o que acontece às outras crianças que ainda não tem uma família? — perguntou o Manuel.

— Estão à espera de encontrar corações apaixonados que engravidem de amor e consigam formar uma família como a nossa — explicou o pai.

— Sabem que às vezes isso acontece muito depressa, mas outras, demora mais tempo. Porém o mais importante é que, no final de tudo, encontrem uma família… e de certeza que isso acaba por suceder! — concluiu a mãe.

A Luena ficou tranquila com as palavras da mãe em relação aos outros meninos que ainda se encontram a viver em instituições. Contudo, uma dúvida insistia em formar a covinha que aparecia na sua bochecha esquerda sempre que algo a preocupava:

— Mamã… mas como é que esses pais que engravidam do coração conseguem escolher uns meninos e deixar lá outros?

— Na verdade, filhota — explicou a mãe orgulhosa da sensibilidade da filha —, esses pais não escolhem os filhos… mesmo que não percebam, eles é que são os escolhidos. Um coração só engravida quando se apaixona, por isso é que pouco importa se os filhos nascem da barriga das mães ou dos seus corações. O amor só pode ser um laço natural… porque ninguém nos pode obrigar a amar!

— Tu, por exemplo, — continuou o pai – escolheste-nos no dia em que te conhecemos e, depois de nos conquistares, deixaste-nos amar-te. As fotografias que te faltam aí no álbum não são importantes, porque a nossa história de amor começou mais tarde, e nem todas as histórias de amor tem de começar numa maternidade.

— Se pensares bem, filhota — acrescentou a mãe —, não há fotografias de todos os momentos felizes que passámos juntos, porque alguns desses momentos guardámo-los cá dentro do coração, que é o melhor álbum da nossa vida!

O Manuel e o Jorge começavam a dar os primeiros sinais de cansaço com um bocejo traiçoeiro. A Maria, a quem a vida naquela noite até tinha conseguido ensinar qualquer coisa nova, foi contagiada e abriu a boca, denunciando a chegada da hora de dormir.

— Meninos, vamos para a cama! Hoje já ouviram uma linda história, que vos deu muito em que pensar! — exclamou o pai divertido.

A mãe levantou-se e distribuiu as crianças pelos quartos, ao ritmo de mimos e beijos de boas-noites. Quando chegou perto da cama da Luena reparou que a covinha da bochecha voltara a ficar visível.

— Mamã… ainda existem muitas famílias à espera de serem escolhidas por essas crianças? — perguntou-lhe a filha.

— Algumas, meu amor… — disse a mãe tentando tranquilizá-la — …mas não te preocupes, porque todas essas crianças vão, de certeza, escolher uma família como a nossa para serem muito felizes.

Aos poucos, a covinha foi desaparecendo. A Luena fechou os olhos, rendendo-se a um sono descansado, e começou a sonhar com um mundo cor-de-rosa, com pinceladas de muitas outras cores alegres e vivas que pintam a realidade de uma menina traquina de cinco anos.

A mãe inclinou-se e beijou o rosto daquela filha especial, que tinha trazido um brilhante arco-íris à sua vida. Depois, afastou-se em silêncio e ficou a pensar que, se todas as famílias soubessem quão maravilhosas e completas se podem tornar as suas vidas quando os seus corações engravidam, de certeza que as instituições do mundo ficariam vazias de crianças e as suas casas cheias de amor.

Alexandra Borges; Luís Figo; Ana Cardoso
Filhos do Coração – A adopção explicada a pais e filhos
Lisboa, Bertrand Editora Lda., 2007

Nas pedreiras de Abeokuta

Nas pedreiras de Abeokuta

O fenómeno da escravidão e do trabalho infantil persiste em África. No Benim, por exemplo, há tráfico de crianças com destino ao trabalho nas pedreiras de Abeokuta, na Nigéria. A reportagem, bem actual, documenta o drama destas crianças vendidas pelos pais e exploradas pelos traficantes.

 

«Venho para levar as crianças ao “akowé”», disse François à mulher logo após se ter apeado da moto. Na língua fon, falada no Benim, akowé significa “mestre”. A mulher chamou os miúdos pelo nome, Lewidjo e Pierre, e em minutos os dois estavam já em cima da mota. Deu um saco de plástico a cada um: uma T-shirt e umas calças lavadas e pouco mais. Essa era toda a bagagem para uma viagem de quatro ou cinco anos.

«Diz ao “akowé” que cuide bem dos catraios. Se os maltratar, denunciá-lo-ei à polícia, e diz-lhe que os quero em casa uma semana pelo fim de ano e que tragam dinheiro.» A mulher, Plantine, despediu-se dos seus filhos apenas com uma carícia na mão. Ficou a olhar como se ajeitavam na mota sem fazer gesto algum, alheada da mais pequena expressão de tristeza.

As estatísticas da ONU sobre a pobreza mundial dizem que a República do Benim ocupa o décimo quinto lugar da lista. A mais pobre é a Serra Leoa. Dos dez países mais subdesenvolvidos do planeta, cinco estão na África Subsariana, como é o caso do Benim; porém, não é a mesma coisa ter a sorte de nascer na sua emergente capital, Cotonou, ou na paupérrima Zakpoktá. Trata-se do município mais pobre do país, pelo que muitas das suas crianças sobem para as motas dos traficantes.

A miséria é uma condenação, mas se, além disso, se nasceu na rota de passagem para a Nigéria, que é o grande colosso africano, a condenação converte-se em sentença: muitas crianças de Zakpoktá são vendidas pelos próprios pais como escravos aos traficantes locais, que os levam para a Nigéria e os exploram nas pedreiras de Abeokuta.

Lugar no Inferno

Victorin Adeokunté, o “akowé”, é um dos traficantes mais conhecidos da zona. Anda mais perto dos 40 anos do que dos 30, veste-se à maneira fon e tem uma casa nos arredores de Zakpoktá. Comporta com tanta indiferença a designação de “negreiro” que ganhou a pulso um bom lugar no Inferno.

No sábado passado, 9 de Fevereiro, mandou um primo da sua confiança, François, buscar os dois meninos à aldeia de Allahé. Tinha-os comprado uns dias antes aos pais por 25 euros. Ao cair da tarde, o “akowé”, os dois irmãos e eu partimos no seu carro rumo à Nigéria. Lewidjo Adjakpa tem uns 13 anos e não abriu a boca durante a viagem. O seu irmão Pierre não passa dos 10 e adormeceu assim que abalámos.

Victorin não colocou nenhum entrave quando lhe propus que me mostrasse como funciona o tráfico de crianças entre o Benim e a Nigéria. Apenas uma condição. «Obatedo é a última cidade antes da fronteira. Vais sair lá e tratar de arranjar uma mota para passar para a Nigéria. Assim que se passa a fronteira, há uma bomba de gasolina Texaco à direita. Espero aí por ti.»

Victorin não queria arriscar-se a transpor a fronteira com as duas crianças traficadas e um homem branco no seu carro. Uma coisa era ter a polícia comprada e outra chamar a atenção gratuitamente. «Esta noite estão de vigia os meus, por isso viajo aos fins-de-semana. Largarei cinco mil cefas, uns sete euros, em cada controlo policial e não haverá problemas.»

Ao fim de uma hora e meia de viagem, estávamos em Obatedo. Num cruzamento não me foi difícil contratar uma moto-táxi, “zemiján”, como lhe chamam no Benim, e segui Victorin a uma distância prudente até ao posto de controlo beninense. Vi como o seu carro passava sem problemas a barreira, enquanto eu entrava nos escritórios para carimbar o meu passaporte.

Passada meia hora, estava novamente sentado na furgoneta do traficante, com os garotos na parte de trás a comer umas bananas que o Victorin lhes tinha comprado. A estrada até Abeokuta, uns 200 quilómetros, estava infestada de controlos militares. O soldado de turno limitava-se a perpassar as janelas com a sua lanterna e a comprovar com gesto mecânico quantas pessoas iam dentro do carro. Nada de parar a viatura para pedir os papéis ou fazer perguntas. Pelo meio-dia, Victorin deixava-me à porta do Presidential Hotel de Abeokuta. «Amanhã poderás passear pela cidade. Na segunda-feira, às oito, venho buscar-te para ir às pedreiras.»

Pá ao ombro

Abeokuta é a capital histórica dos Yoruba, a etnia principal da Nigéria. Com meio milhão de habitantes, é uma das cidades mais importantes do país. Daqui são o Prémio Nobel da Literatura Wole Soyinka e o ex-presidente do país, Obasanjo. O cimento, os tijolos e a brita são as suas principais indústrias. Vá-se onde se for, há sempre um rapaz com uma pá recém-comprada ao ombro. Vendem-nas em todo o lado: nos mercados, nos semáforos e à beira das estradas. As pedreiras estão perdidas no meio da selva. O território é propriedade dos Yoruba e os beninenses arrendam-no para extrair areia, brita e granito. Aqui só podem entrar os beninenses; é o seu gueto e para o proteger estabeleceram uma rede de controlos que impede o acesso a estranhos. O tráfico e a exploração de crianças é dos Fon, é um assunto entre beninenses; aqui, os Yoruba, os nigerianos, não têm nada que fazer; quando muito, olham para o outro lado.

Na segunda-feira seguinte, 11 de Fevereiro, às oito da manhã, a furgoneta do Victorin estava à porta do meu hotel. Vinha só ele, sem os miúdos. «Levei-os ontem para as pedreiras. Têm de se habituar, quanto antes, à sua nova vida. Há muitas valas para cavar na selva», disse-me com um leve sorriso.

Atravessámos a cidade, semi-deserta a essa hora da manhã, e chegámos ao subúrbio de Sabo. Acabava a estrada asfaltada e continuámos por um caminho de terra em muito mau estado. Percorremos cerca de 15 quilómetros sem encontrar uma única povoação nem ver ninguém, apenas um intenso tráfego de camiões, uns que desciam com o reboque cheio e outros que subiam vazios.

De repente, sem dizer nada, Victorin parou o carro na berma do caminho e disse-me que o seguisse. Eu não via mais do que espessa vegetação, até que ao longe destrincei umas pequenas montanhas de areia. Victorin acenou a um grupo de gente ao longe. «Ali estão as crianças», disse-me. Ao aproximar-me, vi um panorama desolador. À direita e à esquerda havia dezenas de pequenas valas escavadas no solo. Teriam entre um e dois metros de profundidade. Nalgumas, não chegava a aparecer a cabeça de um miúdo alto. Traçavam uma linha curva de uns três metros. A paisagem era lunar: uma multidão de montículos de areia e brita e vários camiões carregando o material.

Jornada dura

Em cada vala estava a trabalhar um grupo de três miúdos. Aproximei-me de uma e pus-me a falar com eles. O mais velho, que não passava dos 13 anos, cavava a encosta com uma picareta. Chamava-se Etienne Montchomi. Vinha de Yohoné, uma aldeia de Zakpoktá. Contava já dois anos nas pedreiras. O seu dia começava com o nascer do Sol, às seis da manhã, e terminava com o pôr-do-sol, doze horas depois. Parava da uma às três para comer e para fugir ao calor sufocante do meio-dia. Reconhecia que as condições de trabalho eram duras, mas não se queixava. «Aqui pelo menos como duas vezes ao dia. Em Zakpoktá passava vários dias sem meter nada na boca», dizia-me resignado.

Ao seu lado, outro menino, Eugène Animanou, atirava pás de terra a um terceiro que estava empoleirado na ladeira. Tinha chegado às pedreiras em 2006, vindo da povoação de Zahla, também em Zakpoktá. Contou-me que foi trazido por um vizinho, de quem não quis dizer o nome, de carro, com outros meninos. «Estão a trabalhar noutras pedreiras longe daqui. Não os vejo há meses. Tenho saudades deles porque eram meus amigos e protegíamo-nos uns aos outros, mas o Etienne trata-me bem», disse-me, enquanto agarrava na pá e me virava as costas.

Cada grupo é formado por seis crianças. Três trabalham na vala, enquanto as outras três se encarregam de carregar o camião e de procurar comida na selva. Em cinco minutos fazem uma fogueira e deitam sobre a grelha o que encontram. Nesse dia tinham como menu quatro ratazanas preparadas para assar. O patrão visita-os cada segunda-feira e traz-lhes farinha de mandioca, um tubérculo africano, pimentos e legumes. Com isso e com o que encontram na selva, têm comida para toda a semana. Os mais sortudos podem ir às aldeias dormir mas muitos têm de se conformar com passar a noite ao pé da vala, sujeitos à intempérie, sobre uns plásticos ou umas esteiras feitas com ramas. Trabalham de segunda a sábado e descansam ao domingo. Nesse dia vão às povoações, se tiverem a sorte de encontrar um carro que os leve; caso contrário, ficam a descansar nas valas.

Os mais novos dos grupos fazem o trabalho menos duro. Bertin Dosson tem 8 anos e encarrega-se de remover a terra que Eugène lhe lança com a pá a partir da vala. Zarandea criva-a com as mãos e deixa que a areia fina lhe caia aos pés, deitando a brita que fica na peneira para o monte que está a formar. Bertin contou-me que o seu pai tinha morrido havia dois meses e que um seu tio o trouxera para as pedreiras. «Aqui tratam-me bem, mas o trabalho é muito duro, por isso quero voltar para casa», disse-me olhando-me nos olhos, como que pedindo-me socorro, enquanto a areia fina cobria os seus pés descalços e levantava uma nuvem de pó que se dissolvia à altura da sua frágil cintura.

Castigos corporais

É um ritual que os Fon trouxeram das suas aldeias, nas margens do rio Quémé. Quando o patrão se irrita, não tem de dizer nada: chega à vala e bate no chão ou numa árvore várias vezes com o seu bastão, e entrega-o de seguida ao encarregado, que normalmente é o mais velho do grupo. Toda a gente nas pedreiras fica a saber que foi dado um castigo. O traficante afasta-se uns metros da vala e o encarregado elege um dos meninos do grupo. Pode ser o mais preguiçoso dessa semana, o mais rebelde ou, simplesmente, o novato. Coloca-o de cabeça para baixo num monte de areia e dá-lhe uma lição até que o patrão mande parar.

À exploração das crianças há que acrescentar uma vasta lista de problemas sanitários. «Barrigas inchadas pela desnutrição, parasitas intestinais de todos os tipos, perda de visão, problemas pulmonares por causa do pó e lesões oculares provocadas por areia que salta», relata de memória Mathieu Shanu, o médico das pedreiras. Vive com a sua família numas cabanas a alguns quilómetros das valas, e quando uma criança adoece levam-lha para que a cure. «O pior de tudo é a falta de água, mas essa é uma questão de difícil solução», conta-me, resignado, ante a situação dos petizes.

À hora do almoço e do descanso dos grupos, perguntei a Victorin pelos irmãos Lewidjo e Pierre, os quais não tinha reconhecido entre os cerca de trinta rapazes que havia contado nessa zona de pedreiras. «Os Adjakpa não estão aqui. Estas pedreiras não são minhas. Eu tenho cinco grupos a trabalhar numas valas, mas não estão nesta zona. Tu pediste-me que te trouxesse às pedreiras de Abeokuta, não às minhas pedreiras», disse-me com uma gargalhada que ecoou em metade da selva. Agora entendia porque é que as crianças das aldeias e das pedreiras lhe chamavam “akowé”. Porque, para eles, Victorin, o mestre, significa a possibilidade de aprender um ofício e ter um trabalho, ainda que seja um trabalho de pá e picareta, pó nos olhos e quatro ratazanas na brasa no meio da selva.

Xaquín López

Além-Mar, Junho 2009

O Mito do Amor – M. Scott Peck

M. Scott Peck
O Caminho Menos Percorrido
Cascais, Sinais de Fogo, 2000

 

A VIDA É DIFÍCIL.

Com esta frase inicial, M. Scott Peck revoluciona a maneira como vivemos, e isto é tão verdadeiro hoje como o era quando foi escrito, há vinte anos. Neste guia de como enfrentar e resolver os nosso problemas – e viver o sofrimento das mudanças – aprendemos que é possível conseguir serenidade e plenitude na nossa vida.

 

Excerto

 

O Mito do Amor Romântico

Para servir assim tão bem para nos apanhar no casamento, a experiência de se apaixonar tem provavelmente como uma das suas características a ilusão de que a experiência irá durar sempre. Esta ilusão é fomentada na nossa cultura pelo mito vulgarmente cultivado do amor romântico, que tem as suas origens nas nossas histórias infantis favoritas, em que o príncipe e a princesa, uma vez unidos, vivem felizes para sempre. O mito do amor romântico diz-nos, com efeito, que para cada rapaz no mundo há uma rapariga que “foi feita para ele” e vice-versa. Além disso, o mito implica que há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher para um homem e que isso foi predeterminado “nas estrelas”.

Quando conhecemos a pessoa a quem estamos destinados, o reconhecimento advém do facto de nos apaixonarmos. Encontrámos a pessoa a quem os céus nos tinham destinado, e uma vez que a união é perfeita, seremos capazes de satisfazer as necessidades um do outro para sempre, e portanto viver felizes para sempre em perfeita união e harmonia. Se acontecer, no entanto, não satisfazermos ou não irmos de encontro a todas as necessidades um do outro surgem atritos e desapaixonamo-nos. Está claro que cometemos um erro terrível, interpretámos as estrelas erradamente, não nos entendemos com o nosso único par perfeito, o que pensámos ser amor não era amor real ou “verdadeiro”, e não há nada a fazer quanto à situação a não ser viver infelizes para sempre ou obter o divórcio.

Embora eu pense que, de um modo geral, os grandes mitos são grandes precisamente porque representam e incorporam grandes verdades universais (serão explorados vários destes mitos mais adiante neste livro), o mito do amor romântico é uma terrível mentira. Talvez seja uma mentira necessária por assegurar a sobrevivência da espécie, por estimular e validar convenientemente a experiência de nos apaixonarmos que nos leva ao casamento. Mas, como psiquiatra, o meu coração chora quase todos os dias pela horrível confusão e sofrimento que este mito gera. Milhões de pessoas desperdiçam enormes quantidades de energia tentando desesperada e futilmente fazer com que a realidade das suas vidas se ajuste à irrealidade do mito.

A Sra. A submete-se absurdamente ao marido devido a um sentimento de culpa. “Eu não amava verdadeiramente o meu marido quando nos casámos,” diz ela. “Fingia que sim. Acho que o enganei para se casar comigo, portanto não tenho o direito de me queixar dele, e devo-lhe fazer tudo o que ele quiser.” O Sr. B lamenta: “Estou arrependido de não me ter casado com a Menina C. Penso que poderíamos ter tido um bom casamento. Mas não me sentia perdidamente apaixonado por ela, portanto parti do princípio que ela não era a pessoa certa para mim.” A Sra. D, casada há dois anos, fica gravemente deprimida sem causa aparente e começa a fazer terapia, afirmando: “Não sei o que se passa de errado. Tenho tudo o que preciso, incluindo um bom casamento.” Só meses mais tarde consegue aceitar o facto de se ter desapaixonado do marido, mas que isso não significa que tenha cometido um horrível erro. O Sr. E, também casado há dois anos, começa a sofrer de dores de cabeça intensas à noite e não acredita que sejam psicossomáticas. “A minha vida doméstica corre bem. Amo tanto a minha mulher como no dia em que casei com ela. Ela é tudo o que eu sempre quis.” Mas as dores de cabeça continuaram até que, um ano mais tarde, conseguiu admitir, “Ela dá-me cabo da cabeça porque está sempre a querer, querer, querer coisas sem se preocupar com o meu orde­nado,” e foi então capaz de a confrontar com a sua extravagância. O Sr. e a Sra. F reconhecem que deixaram de estar apaixonados e passam a fazer-se infelizes um ao outro por mútua infidelidade galopante à medida que procuram o “verdadeiro amor”, sem se aperceberem que o seu próprio reconhecimento podia marcar o início da obra do seu casamento em vez do fim.

Mesmo quando os casais reconhecem que a lua-de-mel terminou, que já não estão romanticamente apaixonados um pelo outro e ainda conseguem empenhar-se na sua relação, continuam a agarrar-se ao mito e tentam adaptar-lhe as suas vidas. “Apesar de já não estarmos apaixonados, se agirmos por força de vontade como se estivéssemos apaixonados, pode ser que o amor romântico regresse às nossas vidas,” segundo o seu raciocínio. Estes casais privilegiam o estar juntos. Quando iniciam a terapia de grupo para casais (que é o cenário em que a minha mulher e eu e os nossos colegas mais próximos exercemos o aconselhamento matrimonial mais crítico), sentam-se juntos, falam um pelo outro, defendem os defeitos um do outro e tentam apresentar ao resto do grupo uma frente unida, acredi­tando que esta unidade seja um sinal de saúde relativa do seu casamento e um pré-requisito para a sua melhoria.

Mais cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo, temos que dizer à maior parte dos casais que estão demasiado casados, demasiado próximos, e que têm de estabelecer alguma distância psicológica entre si antes de começarem a tratar construtivamente os seus problemas. Por vezes, é mesmo necessário separá-los fisicamente, dando-lhes instruções para se sentarem longe um do outro no círculo do grupo. Repetidamente, temos que dizer, “Deixe a Mary falar por si própria, John” e “O John é capaz de se defender, Mary, é suficientemente forte.”

Por fim, se continuam na terapia, todos os casais aprendem que a verdadeira aceitação da sua própria individualidade e da do outro e a independência são as únicas fundações sobre as quais se pode basear um casa­mento adulto e o verdadeiro amor pode crescer.

Tentando alcançar a lua – conto tibetano

Tentando alcançar a lua

(conto tibetano)

Uma noite, o Rei dos Macacos reparou numa gloriosa lua dourada que repousava no fundo de uma lagoa. Não se apercebendo de que se tratava apenas de um reflexo, o Rei chamou os seus súbditos para que lhe fossem buscar aquele tesouro não reclamado.

— O nosso macaco mais forte agarra-se a esta árvore — ordenou o Rei. — E o nosso segundo macaco mais forte agarra-se à mão dele, tenta alcançar a água e pega na lua dourada.

Assim fizeram. Mas o segundo macaco não conseguia alcançar a lua.

— Quem é o nosso terceiro macaco mais forte? Agarra-te à mão do teu irmão e vai buscar a lua.

Mas a lua continuava fora do alcance deles.

— Tragam o quarto macaco mais forte. Que desça até junto da lagoa e tente a sua sorte.

Os macacos formavam agora uma cadeia, cada um pendurado no braço do outro. O quarto macaco usou os braços deles como escada e ficou pendurado na mão do terceiro macaco… mas a lua continuava fora do seu alcance. E assim continuaram… cinco… seis… sete… oito… macaco após macaco, até que o último conseguia tocar já na superfície da água.

— Estamos quase a conseguir! — gritaram os macacos.

— Deixem-me ser o primeiro a agarrá-la! — gritou o Rei, que se lançou cadeia abaixo.

Mas o peso de toda esta loucura tinha-se tornado demasiado para as forças do macaco mais forte, que continuava agarrado ao topo da árvore. Quando o Rei ia a tocar a água para pegar na lua, o macaco mais forte largou o tronco. Um a um, caíram todos na lagoa e afogaram-se, juntamente com o Rei.

Aquele que segue um líder insensato é ele próprio um tolo.

Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

A guerra entre as galinholas e as baleias – conto das Ilhas Marshall

A guerra entre as galinholas e as baleias

( conto das Ilhas Marshall)

Todas as manhãs, a pequena galinhola ia à praia tomar o pequeno-almoço. Corria para a água com as suas perninhas altas e slup… slup… engolia um pequeno vairão. Depois corria de novo para a praia e esperava. Voltava de novo à água e slup… slup… engolia um outro pitéu.

A baleia, que vivia nas águas profundas da baía, viu a galinhola a correr para dentro e para fora de água. Ergueu bem a cabeça enorme e chamou-a:

— Ei, passarinho! Não te quero na minha água! O mar pertence às baleias!

A galinhola decidiu ignorá-la.

— O mar também pertence às galinholas. E há muito mais galinholas do que baleias. Vê lá se me deixas em paz!

A baleia encolerizou-se e começou a esguichar. A galinhola tinha-a enfurecido.

— Mais galinholas? Há muito mais baleias no oceano do que galinholas em terra!

— Não há, não! — replicou a pequena galinhola. Há mais galinholas!

A baleia estava furiosa.

— Vou chamar as minhas irmãs. Vais ver!

A baleia veio à superfície e esguichou buuturu… buuturu. Depois voltou a mergulhar bem fundo na baía. Virou-se para leste e chamou:

— Baleias do leste. Baleias do leste. Venham…venham para esta ilha!

Veio de novo à superfície.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao oeste.

— Baleias do oeste. Baleias do oeste. Venham… venham para esta ilha!

De novo veio à superfície.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao norte.

— Baleias do norte. Baleias do norte. Venham…venham para esta ilha!

Voltou de novo a emergir.

Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao sul.

— Baleias do sul. Baleias do sul. Venham…venham para esta ilha!

A leste, a oeste, a norte e a sul, as suas irmãs baleias ouviram-na. Começaram a nadar em direcção à ilha. Quando já tinham chegado todas, a baía ficou tão cheia de baleias que podíamos caminhar nos seus dorsos! Estavam todas apinhadas naquela baía.

A galinhola ficou alarmada.

— Tens mesmo muitas irmãs! Mas espera, que eu vou chamar as minhas irmãs galinholas!

A pequena galinhola começou a saltar para cima e para baixo e a emitir o seu grito de galinhola:

Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri… Galinholas! Galinholas! Leste! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Norte! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!

— Galinholas! Galinholas! Sul! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!

E as galinholas vieram a voar! Do leste, do oeste, do norte, do sul. Quando pousaram, cobriram a praia inteira! Cobriram as árvores! Havia tantos pássaros! Havia mais pássaros ou mais baleias? Havia mais baleias ou mais pássaros? Era impossível dizer.

As baleias falavam entre elas.

— Temos de chamar os nossos primos. Nessa altura, haverá mais baleias do que pássaros.

Então, as baleias vieram todas à tona da água e chamaram:

Buuturu… buuturu…

Mergulharam fundo, bem fundo.

Chamaram a leste.

— Primos do leste! Primos do leste! Venham… venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam.

Buuturu… buuturu…

Mergulharam.

— Primos do oeste! Primos do oeste! Venham… venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam.

Buuturu… buuturu…

Mergulharam.

— Primos do norte! Primos do norte! Venham… venham para esta ilha!

Voltaram à superfície e esguicharam. Mergulharam uma vez mais.

— Primos do sul! Primos do sul! Venham… venham para esta ilha!

Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das baleias começaram a nadar em direcção à ilha. Os golfinhos ouviram o chamamento e vieram. As orcas ouviram o chamamento e vieram. Os lobos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até os tubarões vieram.

Quando já tinham chegado todas os primos da baleia, os peixes eram tantos que rodeavam completamente a ilha. Até onde a vista alcançava, havia criaturas marinhas a esguichar e a mergulhar.

As galinholas ficaram assustadas.

— Há tantas criaturas do mar. Depressa! Temos de chamar todos os nossos primos!

As galinholas começaram aos pulos e a emitir o seu chamamento:

Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri…

— Primos das galinholas! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!

— Primos das galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!

— Primos das galinholas! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!

— Primos das galinholas! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!

Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das galinholas começaram a chegar. As gaivotas ouviram o chamamento e vieram. As gaivinas ouviram o chamamento e vieram. Os corvos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até as garças-reais vieram.

Depois de todas estas aves marinhas terem chegado, cobriram as praias e estenderam-se até às montanhas. Não havia um pedaço de terra naquela ilha que não estivesse coberto por pássaros!

Havia mais pássaros ou mais animais marinhos? Mais primos das baleias ou mais primos das galinholas? Ninguém saberia dizer.

Então as baleias tiveram uma ideia.

— Se as baleias comessem a terra toda… os pássaros afogar-se-iam. Haveria então mais baleias do que galinholas. Vamos a isso!

As baleias começaram a mastigar a terra. Scrunch… scrunch… scrunch… A praia desaparecia gradualmente por entre as suas mandíbulas enormes. Então a galinhola teve uma ideia.

— Se os pássaros bebessem toda a água do mar… as baleias morreriam! Então haveria mais galinholas do que baleias. Vamos a isso!

Os pássaros voaram em direcção ao oceano. Cada um deles enfiou o bico na água e começou a beber. Beberam… beberam… até ficarem com a boca cheia de água… Beberam… beberam… até ficarem com as barrigas cheias de água. Como era mais fácil beber do que mastigar, os pássaros acabaram a sua tarefa primeiro!

Olharam em volta. As baleias estavam a morrer por falta de água. Os peixes também estavam a morrer por falta de água. Os caranguejos minúsculos… as estrelas-do-mar… todas as criaturas marinhas estavam a morrer sob o sol escaldante.

De repente, os pássaros pensaram numa coisa.

— Os caranguejos minúsculos… todas estas criaturas do mar… tudo isto é o nosso alimento. É o que nós comemos. Se elas morrerem, nós morremos também. Isto é uma má ideia! Rápido! Cuspam a água! Cuspam fora o oceano!

Ptooooie… ptoooie… ptoooie… Os pássaros cuspiram fora o oceano todo.

As baleias começaram de novo a mover-se. Os peixes recomeçaram a nadar. Os pequenos caranguejos e as estrelas-do-mar esticaram as suas perninhas e começaram a viver de novo.

— Isto foi uma péssima ideia! — disseram as baleias. — O oceano é a nossa casa. A praia faz parte do oceano. Estamos todos a destruir o nosso próprio lar. Depressa! Cuspam fora a areia toda.

Glurk… glurk… glurk… As baleias cuspiram fora a areia toda.

— Esta guerra foi uma péssima ideia — disse a baleia. — Há mar que chegue para todos partilharmos.

— Tens razão — concordou a galinhola. — Foi uma má ideia. Quase destruímos o nosso lar!

Então, as baleias e os seus primos nadaram em direcção ao mar alto. Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E as galinholas e os seus primos também voaram para longe. Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E até hoje nunca ninguém descobriu se há mais baleias ou mais galinholas. Se há mais galinholas ou mais baleias. Não que isso interesse, realmente. No fundo, é uma razão demasiado insignificante para começar uma guerra…

Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas , August House Publishers, Inc., 2005

Um homem sem cabeça – conto argelino

Um homem sem cabeça

(conto argelino)

Esta é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então, Ben Sakrane. Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na realidade, trata-se de Till Eulenspiegel ou de Jean le Sot; o louco que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para ser ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.

Um dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham escudos, lanças, arcos e aljavas cheias de setas.

— Onde vão nesses preparos? — perguntou-lhes.

— Não sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa batalha, que promete ser dura!

— Óptimo, eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que ouvi falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir convosco, só desta vez!

— Está bem! És bem-vindo!

E lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de batalha.

A primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!

Depressa! Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça e declarou:

— A ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a mais ínfima parte de cérebro agarrada, está perdido!

O ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua “profunda gratidão para com o Mestre”, e declarou:

— Doutor, pode remover a seta sem medo; não vai encontrar nela a mais ínfima parte de cérebro.

— Esteja calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de si! Como sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?

— Sei-o bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula de cérebro, nunca teria vindo com os meus amigos.

Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

Força – conto da África Ocidental

Força

(conto da África Ocidental)

Os animais decidiram fazer um concurso para ver qual deles era o mais forte. A ideia do concurso foi do Elefante.

— Encontramo-nos todos na quarta-feira. Veremos quem tem FORÇA.

O primeiro a chegar foi o Chimpanzé, que chegou aos saltos.

— Força! Eu tenho força. Vejam só estes BRAÇOS! Esperem só até verem a minha força!

O Chimpanzé sentou-se. Chegou o Veado.

— Força! Olhem para estas PERNAS! Tenho tanta força!

O Veado sentou-se. A seguir veio o Leopardo. Mostrava as garras e rugia.

— Força! Olhem para estas GARRAS! Eu tenho força!

O Leopardo sentou-se. Depois veio o Bode, que baixou os seus chifres fortes.

— Força! Vejam estes CHIFRES! Isto é força.

O Bode sentou-se. Chegou o Elefante. Caminhava muito devagar.

— El…e…fante…significa força.

O Elefante sentou-se. Esperaram e voltaram a esperar. Faltava mais um animal. Finalmente o Homem chegou, a correr.

— Força! Força!

O Homem exibia os seus músculos.

— Eis-me aqui! Podemos começar!

O Homem tinha trazido a sua espingarda para a floresta e tinha-a escondido nos arbustos. Era por isso que estava atrasado. O Elefante encarregou-se de dar início ao concurso.

— Agora que o Homem chegou, podemos começar. Chimpanzé, mostra-nos a tua força!

O Chimpanzé deu um pulo. Correu para uma pequena árvore e trepou-a. Dobrou-a e deu-lhe um nó. Desceu da árvore e disse:

— Então? Isto não é força?

Os animais exultaram.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

Depois acalmaram.

— Bem…Chimpanzé. Senta-te. O próximo!

O Veado pôs-se de pé com um salto. Correu três quilómetros em direcção à floresta. Correu outros três quilómetros de volta. Nem sequer estava ofegante. Vangloriou-se:

— Vejam só! Se isto não é força…

Os animais concordaram.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem…Veado. Senta-te. O próximo!

O Leopardo pôs-se de pé e esticou as garras enormes. Começou a esgravatar a terra. Scrung…scrung…scrung…scrung… Como o pó voava! Os animais saltaram para trás. Estavam assustados. O Leopardo perguntou:

— Aaaah! Isto é força ou não é?

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem… Leopardo. Senta-te. O próximo!

O Bode era o seguinte. Baixou os chifres enormes. Havia por ali um campo de canas e o Bode começou a escavar o campo. Shuuu…shuuu…shuuu…shuuu… Os chifres fizeram uma estrada através do campo. O Bode voltou-se. E escavou outra estrada até ao lugar onde estavam os animais. Depois perguntou:

— Não é força, isto?

Os animais ficaram impressionados.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem… Bode. Senta-te. A seguir?

A seguir vinha o Elefante. Havia muitas árvores em redor que cresciam bem juntas. O Elefante encostou o seu ombro enorme de encontro às árvores. E eennhh…eeennhh… eeennhh…kangplong! As árvores caíram todas. O Elefante exclamou:

— Que tal? Isto não é força?

Os animais ficaram impressionados.

— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!

— Bem… Elefante. Senta-te. O próximo!

Era a vez do Homem. O Homem correu para o meio do círculo. Começou a rodopiar. Deu saltos mortais. Fez a roda. Fez o pino. Volteou em redor deles sem cessar. Depois parou e perguntou:

— Força! Força! Isto não é força?

Os animais entreolharam-se.

— Bem… foi excitante.

— Mas era força, aquilo?

— Nem por isso…

— Só sabes fazer isso?

O Homem sentiu-se insultado.

— Muito bem, então vejam isto!

O Homem subiu a uma palmeira. Tão depressa! Tão depressa! Atirou cocos da palmeira. Desceu da árvore. Perguntou de novo:

— Força! Força! Isto não é força?

Os animais olharam para ele.

— Chamarias àquilo força?

— Só subiu a uma árvore.

— Isso não é bem força.

— Há mais alguma coisa…?

O Homem estava zangado.

— Força? Eu mostro-vos o que é FORÇA!

O Homem correu para o arbusto. Agarrou na arma. Correu de novo para junto deles. O Homem apontou a arma ao Elefante. Ting… Puxou o gatilho. Kangalang! O Elefante tombou. Estava morto. Morto. O Homem dava pulos e gabava-se:

— Força! Força! Isto não é FORÇA?

O Homem olhou em redor. Os animais tinham ido embora. Tinham fugido para a floresta.

— Força!…

Não havia ninguém para o ouvir gabar-se. O Homem estava sozinho. Na floresta, os animais juntaram-se a um canto para trocar impressões.

— Viste aquilo?

— Era força aquilo?

— Chamarias àquilo força?

— Não. Aquilo era MORTE.

— Aquilo era MORTE.

A partir desse dia, os animais não voltaram a caminhar com o Homem. Quando o Homem entra na floresta, tem de caminhar sozinho. Os animais ainda falam do Homem… Da criatura Homem… O Homem é aquele que não conhece a diferença entre força e morte.

Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

Quem luta perde sempre – conto indiano

Quem luta perde sempre

(conto indiano)

Um chacal recém-casado vivia perto da margem de um rio. Um dia, a esposa pediu-lhe uma refeição de peixe. O chacal prometeu trazer-lha, embora não soubesse nadar. Aproximou-se do rio com todas as cautelas e viu duas lontras a lutarem com um peixe enorme que tinham apanhado. Depois de matarem o peixe, começaram a lutar para dividir o peixe entre ambas.

— Eu vi-o primeiro, por isso a parte maior pertence-me! — disse uma delas.

— Mas ias-te afogando a pescá-lo e eu salvei-te — contrapôs a outra.

Continuaram a lutar até que o chacal se aproximou delas e se ofereceu para ajudar a regular a disputa. As lontras concordaram em acatar a decisão que ele tomasse. O animal cortou o peixe em três pedaços. A uma das lontras deu a cabeça e à outra deu a cauda.

— A parte do meio é para o juiz — declarou.

Afastou-se dali todo contente e disse para consigo:

— Quem luta perde sempre.

Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005

O pássaro e a guerra – fábula do Zaire

O pássaro e a guerra

Nesta fábula dos Legas (do Zaire), um pássaro explica-nos como são absurdas as guerras dos homens.

Ai se os homens lhe dessem ouvidos…

Kansisi é um pássaro branco com as asas negras e faz o ninho nos bananais em redor das aldeias. Testemunha da vida quotidiana das pessoas, sabe muita coisa sobre o comportamento dos homens.

Por isso, um dia, o seu amigo Monkonia, pássaro que frequenta pouco estes sítios, veio colocar-lhe um problema que há muito o apoquentava:

— Porque é que os homens fazem a guerra?

Kansisi deu uma gargalhada. Mas o amigo voltou a insistir:

— Os homens dizem que são inteligentes e racionais; como é que não conseguem, então, estar de acordo? Não há ninguém que cometa tantas asneiras como eles.

— Por diversos motivos — respondeu Kansisi. — A avidez, a inveja, a vingança levam-‑nos a pegar em armas uns contra os outros. Guerreiam-se até por coisas banais, sem pensar nas consequências. Anda comigo, que eu mostro-te um exemplo concreto.

Voaram juntos até à aldeia vizinha. Monkonia poisou numa folha de bananeira, de onde podia observar tudo o que acontecia.

Era meio-dia, e o sol queimava. A aldeia estava deserta, parecia adormecida. Só uma criança pequena brincava no meio do pó, junto de alguns potes de barro ainda frescos, a secar ao sol antes de serem cozidos no forno.

Kansisi poisou num desses potes. A criança viu-o e correu para o espantar com um pau. O pássaro voou para mais longe e a criança acabou por bater no pote, que rolou no chão, com uma pequena mossa. Ao ouvir o barulho, a dona dos potes saiu cá para fora e deu duas valentes chapadas na criança. Ouvindo a criança a chorar, a mãe agarrou num ramo de árvore e deu com ele na mulher, que gritou por socorro. O marido dela saiu de casa com uma faca, e a mãe da criança fugiu chamando pelo marido. Ouvindo esta barulheira toda, mais homens e mulheres saíram de casa gritando e brandindo bastões, sachos e facas. Voavam insultos e ameaças de todos os lados. Dez minutos mais tarde, a aldeia estava em pé de guerra: o clã da dona dos potes contra o clã da outra mulher. Ninguém fazia ideia do motivo que causara esta situação e nem queria saber nem pensar nas consequências do conflito. A briga durou o tempo suficiente para provocar danos irreparáveis; houve mesmo mortos e feridos.

Entretanto, Kansisi, regressando para junto do amigo, contemplava com satisfação o desenvolvimento da peleja.

— Aí tens! — disse ao amigo. — É assim que nascem as guerras entre os homens. A conclusão podes tirá-la tu mesmo!

Ela está bem expressa em dois provérbios dos Lega:

O pássaro Kansisi provoca a guerra, mas fica em paz pousado na sua folha.

O estulto entra na rixa sem medir as causas nem os efeitos.

Além-Mar
Abril 2004

Aprenda a lidar com crianças desafiadoras

Aprenda a lidar com crianças desafiadoras

Teresa Paula Marques, psicóloga clínica
In: CERTA – Maio de 2009

Lidar com uma criança com transtorno de oposição e desafio constitui um grande repto para os pais

É comum que crianças com transtorno de hiperactividade e défice de atenção (THDA) apresentem também outros problemas. As patologias que surgem habitualmente associadas ao THDA são os comportamentos de desafio e oposição, ansiedade, transtornos de conduta, tiques e perturbações do humor. Assim, os comportamentos de oposição constituem a maior percentagem de casos.

COMPORTAMENTO de oposição pode evoluir para alterações mais sérias do comportamento, por isso é urgente consultar um profissional

O QUE É E COMO SE MANIFESTA

O transtorno de oposição e desafio (TOD) pode ser definido como um padrão persistente de comportamentos negativistas, hostis, desafiadores e desobedientes observados nas interacções sociais da criança com adultos e figuras de autoridade de uma forma geral, sejam pais, tios, avós ou professores. As crianças com TOD facilmente perdem a paciência, discutem com os adultos, desafiam e recusam obedecer a solicitações ou regras, incomodam deliberadamente os outros, não assumem os seus erros e estão quase sempre irritadas.

Devido aos sintomas mencionados, existe nestas crianças ou adolescentes um prejuízo significativo no funcionamento social e académico. Estão constantemente envolvidas em discussões e são muitas vezes rejeitadas pelos colegas de escola, o que lhes traz problemas ao nível da auto-estima.

Os sintomas iniciam-se antes dos oito anos de idade e esta perturbação apresenta-se, em número significativo de casos, como um precursor do transtorno de conduta, forma mais grave de perturbação disruptiva do comportamento.

A IMPORTÂNCIA DAS REGRAS

Russell Barkley, um dos mais conceituados especialistas na área da hiperactividade, considera que o comportamento de oposição se encontra associado ao transtorno de hiperactividade, sendo este o responsável pelas dificuldades da criança na regulação das emoções. Por outro lado, as famílias de hiperactivos parecem ter elas próprias dificuldade em gerir as emoções, pelo que não conseguem ensinar as crianças como fazê-lo adequadamente. Estas crianças precisam, então, de ser educadas com alguma firmeza, temperada de afecto.

Segundo Barkley, sempre que os pais queiram dar uma ordem devem posicionar-se perto da criança, com voz firme, sem deixarem de ser amorosos, usando o verbo na forma imperativa. De preferência há que olhar directamente nos olhos da criança e, se houver resistência, socorrerem-se de uma discreta pressão física (segurar-lhe no braço, por exemplo). Há que evitar retardar ou desistir de uma ordem quando esta já foi proferida.

O que os pais não devem fazer

O conhecimento de certas estratégias comportamentais pode ajudar muitos pais a corrigirem hábitos que, de uma maneira ou de outra, acabam por contribuir para o aumento da tensão familiar. Vamos referir alguns aspectos que devem ser evitados porque estimulam a desobediência.

DAR ORDENS À DISTÂNCIA Falar de um quarto para o outro (onde está a criança) é algo completamente ineficaz, pois ela irá manter-se desatenta e sem cumprir a ordem. As ordens têm de ser dadas presencialmente, assegurando-se que ela as compreendeu.

DAR ORDENS VAGAS Pedir à criança que se comporte “como um bom menino” não clarifica o que se espera e o que não se espera que ela faça. Há que ser o mais concreto possível!

DAR ORDENS COMPLEXAS Havendo de antemão dificuldade em fixar na memória de curto prazo as actividades a fazer, solicitar a execução de várias tarefas só servirá para tornar a sua realização menos provável.

DAR ORDENS COM ANTECEDÊNCIA Ordenar a uma criança com TOD que, quando acabar de brincar, tem de arrumar os brinquedos, só serve para interromper o prazer que ela está a ter, já que as ordens serão esquecidas.

DAR ORDENS ACOMPANHADAS DE MUITAS EXPLICAÇÕES Muitos pais, de modo a evitar parecer autoritários, perdem-se em argumentações sobre as necessidades do cumprimento das ordens. Como a criança não consegue estar atenta durante muito tempo, é bastante provável que no final da explanação do progenitor ela já não se lembre da maior parte do que foi dito.

DAR ORDENS SOB A FORMA DE PERGUNTA Perguntar”podes ir agora fazer os trabalhos de casa?” deixa um espaço livre para que a criança diga que não. As ordens devem ser claras e assertivas.

DAR ORDENS EM TOM AMEAÇADOR É frequente que, antevendo a batalha que vai ser travada após uma solicitação, os pais dêem a ordem já em tom de ameaça, como se a recusa já tivesse ocorrido. Assim, a criança vai tender a imitar o progenitor e a reagir no mesmo tom, uma vez que o clima de hostilidade já está instalado.

Um aspecto de enorme importância prende-se com a consistência entre o casal, ou seja, o pai e a mãe devem esforçar-se por ter a mesma atitude, caso contrário essa desarmonia será facilmente detectada pela criança e até usada para manipular os progenitores. Face a este quadro, torna-se muitas vezes necessário um acompanhamento psicológico. O psicólogo pode ajudar a criança a lidar com a frustração e a encontrar canais mais saudáveis de escoamento dos sentimentos de hostilidade, ao mesmo tempo que se torna necessário ajudar os pais a lidar por essa difícil e desgastante tarefa.

Rafael diz não a tudo

Rafael diz não a tudo

É sexta-feira. A mãe vai buscar Rafael ao infantário. Lá fora está frio e a chover.

— Olá, Rafael — diz a mãe, e vai buscar a gabardine ao cabide.

— Não — diz Rafael. — Não a visto.

— Mas está a chover — diz a mãe, e vai buscar as galochas.

— Não visto o casaco! — continua Rafael.

— Assim vais ficar todo molhado.

— Não — Rafael bate com o pé no chão. — Quero um guarda-chuva! Se não, fico aqui.

— Então o pai vai ficar triste — responde a mãe. — Hoje, ele queria montar o comboio contigo.

— Não, não visto a gabardine! — grita Rafael.

A mãe nunca o vira assim. Como não quer continuar a discutir, dá-lhe o guarda-chuva dela.

— Vamos — diz.

Satisfeito, Rafael caminha orgulhoso para fora do infantário.

— Adeusinho! — diz aos outros meninos.

Assim que entram no autocarro, a mãe sugere:

— Vamos sentar-nos aqui. Assim podemos olhar pela janela.

— Não — responde Rafael. — Quero ir em pé!

— Mas o motorista faz travagens muito rápidas! Não quero que caias.

— Não. Ir sentado é aborrecido.

A mãe está admirada. O que se passa com o Rafael? Esta manhã também não queria que lhe penteasse o cabelo. E, em vez dos cereais, quis à força pão com doce.

No final da viagem, Rafael tem uma nódoa negra no joelho, mas sente-se satisfeito.

Quando entram em casa, vem um cheiro maravilhoso. A avó de Rafael está a fazer panquecas.

— Olá, Rafael! Hoje é o teu prato preferido — grita alegre da cozinha.

— Não, hoje não como panquecas.

Para ser sincero, até queria comer panquecas, mas ontem decidiu que hoje ia dizer não o dia todo. Ontem a mãe tinha dito não a tudo o que ele queria. Ficou tão zangado!

Pega numa maçã e mastiga-a sem grande vontade.

— Anda lá, Rafael — diz a avó. — Tive tanto trabalho!

— Não — insiste Rafael. Sente a água a crescer-lhe na boca e tem a barriga a dar horas.

— Bom, já chega de dizer não! — declara a mãe. — Estiveste com isso o dia todo. O que é que se passa?

— Estou furioso!

— Então porquê? — pergunta a avó.

— Ontem a mãe disse sempre não — responde Rafael. — Os adultos também passam o tempo todo a dizer não. Queria tanto ver os Simpsons na televisão.

— Agora estás a ser injusto — diz-lhe a mãe. — Já tinhas visto um programa. Tínhamos ambos decidido que escolhias um programa para ver e depois desligávamos a televisão.

— Os outros meninos do infantário têm autorização para ver sempre os Simpsons.

— Os outros são os outros, e tu és tu — diz a mãe.

— Nós antes não tínhamos televisão — conta a avó. — E mesmo assim divertíamo-nos imenso. Além do mais, com a tua idade, eu já sabia fazer panquecas sozinha.

— A sério? — pergunta agora Rafael. — Fazias tudo sozinha?

— Sim — responde a avó satisfeita. — A minha mãe só vigiava ao fritá-las.

— Que fixe!

— Anda — diz a avó. — Hoje podes fazer as tuas panquecas, queres?
E Rafael grita, bem alto:
— Sim!
Elisabeth Zöller
Stopp, das will ich nicht
Hamburg, Ellermann, 2007
Tradução e adaptação

Nunca acompanhes um desconhecido!

Nunca acompanhes um desconhecido!

Lisa tem seis anos e já vai à escola. O Pedro é o melhor amigo de Lisa e os dois costumam brincar muitas vezes juntos.

Lisa toma todos os dias o pequeno-almoço com os pais. Um dia, o pai leu no jornal que uma criança tinha sido raptada. Diz-lhe então:

— Nunca acompanhes alguém que não conheças! Não abras a porta quando estiveres sozinha! Nunca entres para o carro de um desconhecido! Nem todos os adultos são bons para as crianças. Também há pessoas que tentam atrair meninos e meninas com doces e prendas. Depois agarram-nos, possivelmente tiram-lhes a roupa e magoam-nos muito.

Lisa presta muita atenção.

Um dia, ao regressar da escola, pára um carro ao lado dela. O condutor, muito simpático, diz-lhe:

— Olha, tenho uma coisa para ti. Queres vir comigo?

Mas Lisa não entra no carro.

Nunca acompanho nenhum desconhecido.

Uma vez, a mãe de Lisa foi às compras. Lisa prefere ficar a brincar com o comboio e com o ursinho, por isso fica sozinha em casa. Pouco depois da mãe sair, tocam de repente à porta. Lisa pensa:

A mamã tem chave.

E não abre a porta.

Não abro a porta quando a mãe não está em casa.

Uma vez, Pedro e Lisa estavam a construiu um grande castelo na caixa de areia. Um homem vem sentar-se à beira e fica a olhar para eles durante muito tempo. As crianças já o tinham visto. Ele costuma ajudá-los a fazer coisas na areia e fala-lhes dos seus coelhos fofinhos.

— Se vierem comigo, dou-vos um!

Pedro prefere o gato que tem em casa mas há muito que Lisa queria ter um coelhinho…

E Lisa vai com ele.

O homem agarra Lisa com força pela mão. Ela tem de correr porque o homem caminha a passos largos. Já não parece ser nada simpático. Passado pouco tempo, chegam a casa dele.

— Onde é que tem os coelhinhos? — pergunta Lisa cheia de medo.

A porta da rua fecha-se atrás deles.

Não há coelhinhos nenhuns, ele mentiu.

Lisa está com um medo terrível e chora e grita pela mãe.

Mas ninguém a ouve.

O homem grande aproxima-se cada vez mais de Lisa e agarra-a com força.

Entretanto, Pedro continua na caixa de areia mas já não lhe apetece brincar. Corre a casa dos pais de Lisa e conta-lhes que ela foi com um homem. O pai chama imediatamente a polícia.

Ao fim de poucos minutos, ouvem o carro da polícia chegar.

Pedro consegue dizer exactamente aos agentes da polícia como é que o homem é, e que tem uma bicicleta enferrujada com uma buzina. E lembra-se da direcção em que o homem seguiu com Lisa.

Os polícias partem imediatamente com os pais e com Pedro. Já está a anoitecer. E juntos palmilham as ruas escuras. Os pais estão desesperados.

De repente, Pedro descobre a bicicleta velha com a buzina encostada contra a parede de uma casa. Os polícias entram na casa. Felizmente não demoram a encontrar Lisa, que está completamente transtornada.

Só quando a mãe pega nela ao colo é que se acalma. O homem é levado para o posto da polícia.

Pedro fica muito orgulhosos quando os pais de Lisa o elogiam e lhe agradecem por ter estado atento.

Depois, apressam-se a sair sem demora daquela casa sombria e levam Pedro a casa.

Nunca mais vou com alguém que não conheço!

Ursula Kirchberg
Geh nie mit einem Fremden mit
München, Ellermann, 1985
Tradução e adaptação

Eu, da cabeça aos pés!

Cópia de img045

Eu, da cabeça aos pés!

Tobias e Serafina frequentam a mesma turma do quarto ano.

Quando Tobias vê Serafina dobrar a esquina a toda a velocidade em cima do seu skate, sente imediatamente qualquer coisa no estômago. É uma sensação agradável mas, ao mesmo tempo, esquisita. Quando Serafina passa por ele, Tobias puxa-lhe os cabelos e chama-lhe estúpida e Maria-rapaz. Às vezes, Tobias imagina que vai casar com Serafina quando for grande. Claro que só conta isto ao velho urso Roberto, e à noite, quando está sozinho.

Serafina acha Tobias simpático quando ele sorri e assobia pelo espaço que tem entre os dentes. Numa ocasião em que ninguém estava a ver, ele ofereceu-lhe meia tablete de chocolate. Mas, quando é mau, enerva-a e ela então grita-lhe:

— Vai mas é fazer uma dentadura nova, seu esburacado! — e foge no skate.

Ou então, quando no recreio vai de braço dado com a Estela, dão um encontrão ao Tobias e deitam-lhe a língua de fora.

— Nunca hei de apaixonar-me! — diz Tobias aos amigos. — As raparigas são tão parvas!

— É mesmo! — concordam os outros. Só Estêvão é que os contradiria, mas a ele ninguém pergunta nada.

Serafina gosta de Tobias, mas ele irrita-a. Tobias gosta de Serafina mas puxa-lhe os cabelos e chama-lhe nomes.

— Claro! — diz a mãe de Serafina. — Quem desdenha quer comprar! Quando os rapazes e as raparigas discutem, é porque gostam um do outro. Claro como água!

Será verdade?

Quando o Maurício encontra a Estela, muitas vezes dá-lhe uma canelada ou um beliscão no braço. O Maurício não suporta a Estela. Acha a Estela simplesmente parva. E a Estela também acha que o Estêvão é um parvo. E que parvo! Ela nem lhe dirige a palavra. Nunca! Nem sequer no passeio da escola, onde os dois, por engano, tiveram de ir sentados um ao lado do outro no autocarro.

— O Estêvão está apaixonado! — gritam, de vez em quando, os outros rapazes.

Mas o Estêvão não está apaixonado, a sério que não. Pelo menos, não pela Estela.

Segue:

Dagnar Geisler
Das bin ich von Kopf bis Fuß
Bindlach, Loewe Verlag, 2005
(excertos traduzidos e adaptados)

Os rapazes brigam / Bom-Mau / Dizer SIM, dizer NÃO

Cópia de Cópia de img048 - Cópia

Os rapazes brigam e as meninas andam de mãos dadas.

Será verdade?

Anterior: Eu, da cabeça aos pés!

Paulina é amiga da Mimi e da Niki. No recreio, andam quase sempre as três de braço dado. Paulina é um pouco mais amiga da Regina. Às vezes andam as duas de mão dada. Para Paulina, é uma sensação agradável.

O Rómulo é amigo do Justino. Fica contente quando o vê pela manhã descer a rua a correr.

— Olá, Justino! — grita-lhe e dá-lhe um encontrão.

— Olá, Romão grandão — berra Justino e dá-lhe um soco nas costas. Às vezes começam imediatamente à bulha e rebolam-se pelo chão.

Jeremias é o melhor amigo de Paulo. Quando o Paulo vê o Jeremias, dá-lhe uma palmada nas costas. Por acaso, o Jeremias não gosta nada disso. Preferia dar-lhe um aperto de mão, mas acaba por lhe dar um soco no braço.

Bom – Mau!
O que é que está certo?

Cópia (4) de img050Lutar na brincadeira pode ser bom:

Quando Rómulo e Justino andam à bulha um com o outro, na brincadeira, sem se agredirem e sentem-se bem. Sentem que são amigos a sério.

Cópia (2) de img049Brigar é mau:

Quando Maurício bate em Estela, magoa-a. Estela não gosta.
Luís, Ludgero, Estêvão, Jeremias e Uli não gostam de andar à bulha. Jaime até fica cheio de medo, desde que numa dessas brigas partiu o braço. Deixou de poder tocar violino durante meses!

Cópia (3) de img050Mimos podem ser bons:

Para Estêvão, não há nada melhor do que receber mimos do pai. Ele cheira sempre tão bem. Sente-se bem sentado com o pai no sofá.

Cópia (5) de img050Mimos podem ser desagradáveis:

Quando a tia Olga vem visitá-los, a Niki desaparece. A tia aperta-a com tanta força, que ela mal consegue respirar. Dá-lhe sempre um beijo todo lambuzado e Niki fica com o baton vermelho colado na cara. Brr!

Dizer sim, dizer não — nada fácil!

• Não sou obrigado a andar à bulha!

• Se não quero que me abracem, tenho o direito de dizer NÃO!

• Não sou obrigado a deixar que me beijem quando não quero!

• Posso deixar abraçar-me pela mãe mesmo que os outros se riam!

• Quando estou no quarto de banho e a mãe quer entrar, posso dizer NÃO!

• Posso querer ficar sozinho no meu quarto.

• Posso ter um segredo entre mim e a minha melhor amiga e não tenho de o contar, mesmo que todos me perguntem. Posso dizer NÃO!

• Quando a tia Bia quer dar-me um beijo, posso dizer SIM. Gosto imenso da tia Bia e ela cheira sempre muito bem. Quando o tio Leo me vê beijar a tia, também quer um beijo. Eu não gosto de beijar o tio. Ri-se muito alto e tem uma barba que pica. Posso dizer NÃO ao tio Leo. Mesmo que o tio não compreenda porque é que a tia recebe um beijo e ele não.

Segue:

 

Dagnar Geisler
Das bin ich von Kopf bis Fuß
Bindlach, Loewe Verlag, 2005
(excertos traduzidos e adaptados)

SIM ou NÃO? – Como é que me sinto?

Anterior:

SIM ou NÃO?

Como é que me sinto?

SIM

  • Quando me agarro ao papá, a minha barriga sente-se bem, como se estivesse cheia de pudim de baunilha. (Estêvão)

  • Quando a avó me abraça, tenho a impressão de estar numa nuvem macia. Ela cheira a sabonete de rosas e a bolos acabados de fazer. (Sílvia)

  • Quando vou com o papá ao futebol e a nossa equipa marca um golo, o papá pega em mim e aperta-me com força contra ele. Eu dou guinchos de alegria e sinto-me forte como um leão. (David)

  • Às vezes, a mamã dá-me beijinhos no pescoço e faz-me coceguinhas na pele. É como se mil joaninhas estivessem a caminhar sobre as minhas costas. (Jeremias)

  • O avô cheira a cachimbo e costuma andar com um casaco grosso de lã áspera. Quando pega em mim, tenho a impressão de que nada me pode acontecer. (Regina)

  • Quando a tia Bia me faz festas na cara é como se uma borboleta me tocasse. A mão dela é muito fresca, lisa e macia. (Leonor)

  • Eu e a minha amiga temos um segredo só nosso que não contamos a ninguém. De cada vez que penso nisso, até sinto arrepios. (Lia)

NÃO

  • Os beijos lambuzados da tia Olga são desagradáveis. Parecem um caracol a subir-me pela cara. No fim tenho de limpar sempre o baton. Brr! (Niki)

  • Às vezes, quando o papá me abraça, levanta-me como um bebé. Já não tenho idade para isso. (Bernardo)

  • Quando o tio Manuel vem visitar-nos, aperta-me tanto que me magoa. Eu não gosto. (Estela)

  • O irmão mais velho da minha amiga é muito fixe mas quando ninguém está a ver, tenta beijar-me. Mete-me medo. (Mafalda)

  • Quando a avó me dá um abraço, primeiro é bom, mas ela depois não para. Deixo de conseguir respirar e começo a mexer-me todo. Só quero fugir. (Paulo)

  • O Tó, do 6º ano, convenceu-me a ir com ele ao supermercado roubar. Eu não queria nada. O Tó diz que é um segredo nosso e que, se eu o contar, vai acontecer-me alguma coisa má! Até fico enjoado quando penso nisso. (Ludgero)

 

Quando alguma coisa faz com que te sintas mal, tens sempre o direito de dizer NÃO! Mesmo que os outros possam sentir-se ofendidos.

Alguém que goste de ti vai aceitar o teu NÃO e não vai forçar-te. E até podes explicar a razão do teu NÃO!

Segue:

 

Dagnar Geisler
Das bin ich von Kopf bis Fuß
Bindlach, Loewe Verlag, 2005
(excertos traduzidos e adaptados)

Dizer NÃO! por vezes é muito difícil!

Anterior:

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Dizer NÃO! por vezes é muito difícil!

Devemos dizer NÃO! quando alguma coisa não nos faz sentir bem. Parece muito fácil!

À Laura, a prima da Serafina, aconteceu uma coisa que lhe fez deixar de perceber o Sim e o Não.

Certa vez, o tio Pedro tinha ido visitá-los. É o irmão da mãe de Laura.

Laura estava contente. O tio mostrou-lhe como navegar na Internet. Mostrou-lhe onde encontrar os melhores jogos e como descarregar da net as músicas preferidas dela. Estavam sentados ao computador muito perto um do outro. Laura estava com uma sensação agradável na barriga. O tio Pedro pôs um braço em volta de Laura e começou a fazer-lhe festas.

Deslizou uma mão por debaixo da camisola. A sensação agradável, de repente, deixou de ser agradável. Laura começou a sentir-se incomodada. Só lhe apetecia dizer: “Para imediatamente de fazer isso!” Mas pareceu-lhe estranho dizer uma coisa daquelas porque o tio Pedro é mesmo muito simpático.

Laura ficou hirta. Só desejava que o tio se apercebesse que devia parar. Mas ele continuou. Acariciou as pernas de Laura e meteu as mãos no fecho das calças. Laura sentiu muito bem que não queria que o tio lhe fizesse aquilo.

Mas, de certa maneira, tinha deixado passar a oportunidade de dizer NÃO! A voz do tio ficou muito rouca e olhou para ela de uma forma esquisita. Muito diferente do costume.

Depois deu-lhe um beijo na orelha e disse-lhe que não podia contar a ninguém como o tio gostava dela. E que de certeza que a mãe se ia sentir muito infeliz ao ouvir aquilo e ia deixar de gostar de Laura.

— É o nosso grande segredo! — dissera o tio Pedro.

A partir daí, Laura tentou não voltar a encontrar-se com o tio.

— Mas o que se passa com a minha princesinha? — perguntou. — Então já não gostas do teu tio?

Ele tentava sempre ficar sozinho com Laura para a acariciar.

Laura tinha a sensação de que guardar aquele segredo era como carregar com uma nuvem escura e pesada.

A certa altura, não aguentou mais e contou a história toda a Serafina. Por sorte, Serafina sabia que há segredos que não devem ser guardados. Foram então as duas juntas ter com a mãe de Laura e contaram-lhe tudo. A mãe de Laura ficou muito zangada com o irmão, mas continuou a gostar tanto de Laura como dantes. Foi com ela a um local de aconselhamento, onde falaram com uma senhora que ajudou Laura a perceber que, naquela história com o tio, ela não tinha culpa de nada. Mesmo que não tenha conseguido dizer “Não!” e “Para imediatamente!”, como na verdade queria.

IMPORTANTE!

Tens sempre o direito de dizer NÃO! Mas, se não conseguiste, não te sintas culpada.

Ninguém é obrigado a guardar um mau segredo. Quem te pede para guardar um segredo desses, não tem boas intenções.

Os maus segredos são difíceis de guardar para qualquer pessoa. Especialmente para uma criança. Conta o que te preocupa a alguém em quem confies. Se não tens coragem para contar a alguém próximo de ti, podes telefonar para uma linha de apoio.

Segue:

Direitos iguais para rapazes e raparigas

Dagnar Geisler
Das bin ich von Kopf bis Fuß
Bindlach, Loewe Verlag, 2005
(excertos traduzidos e adaptados)

Direitos iguais para rapazes e raparigas

Direitos iguais para rapazes e raparigas.

É óbvio!

 

Nenhuma criança pode ser prejudicada por ser rapaz ou rapariga. Está escrito nos direitos das crianças. Mas então, não é óbvio? — admira-se Paulo. Estêvão, Jeremias e Lea acenam afirmativamente com a cabeça.

— E porque é que eu tenho de ajudar sempre a lavar a loiça e o meu irmão não? — pergunta Ana.

— O teu irmão ainda é pequeno — responde Alexandra. — Quando for um pouco mais velho, também tem de ajudar, se não, é injusto.

— Lavar a loiça é coisa para mulheres — diz Rómulo com um risinho.

— Ainda vives na idade da pedra? — responde Catarina. — Isso era dantes, quando o meu avô ainda era novo. E até ele passou a ajudar nas tarefas domésticas!

Rapazes e raparigas, homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres. Isto não vem só escrito nos direitos das crianças mas também na nossa lei mais importante, na Constituição. Apesar disso, algumas coisas ainda são injustas.

— Por exemplo, quando uma mulher ganha menos do que um homem, embora faça o mesmo trabalho — diz Lea.

— Exacto! — Alberto franze a testa. — Ou quando alguém diz: Na nossa turma há 25 alunos.

— Porquê? Mas é verdade! — Luís encolhe os ombros.

— Alunos e alunas, é como devia ser — diz Alberto. — Se não, parece que não há meninas.

— Ah! — Luís acena com a cabeça. — Compreendo.

— A minha amiga Sevim é turca. Tem de andar sempre de lenço na cabeça e não pode andar sozinha na rua, mas os irmãos podem, embora sejam mais novos. E por causa disso é muitas vezes troçada pelas outras pessoas — conta Sílvia.

Sevim vem de um outro país, com outra cultura. Na Constituição também está escrito que ninguém pode ser discriminado ou preferido por causa do seu sexo, origem, raça, língua, pátria e proveniência, pela crença, convicção religiosa ou política.

Portanto, se para Sevim e para a família andar com o lenço está bem, não há motivo para ser alvo de troça ou para lho proibirem.

 Dagnar Geisler
Das bin ich von Kopf bis Fuß
Bindlach, Loewe Verlag, 2005
(excertos traduzidos e adaptados)

Acabaram-se os beijos!

Acabaram-se os beijos!

É fim-de-semana e Tim e o pai estão confortavelmente a tomar o pequeno-almoço. Com toalha de mesa, chocolate, pãezinhos, doce, fiambre e queijo! E como é fim de semana, Tim tem autorização para comer todo o creme de chocolate que quiser.
— Que bom! — exclama, satisfeito.
— Amanhã a tia Zélia vem cá a casa — diz o pai.
— Oh, não! — volta a exclamar Tim, e até deixa cair o pão ao chão. — Vou esconder-me para ela não me encontrar.
Tim rasteja para debaixo da mesa para ver se a toalha o esconde bem. O pai segue-o.
— A tia Zélia é tão simpática!
— Sim, mas enche-me de beijos e eu não gosto. E o baton dela é tão pegajoso!
Tim até sente um arrepio. Continuar a ler

O dia em que não acabei os trabalhos de casa – Hermann Schulz

O dia em que não acabei os trabalhos de casa

— Eu estou aqui mas tomo sempre cuidado! — disse-me um dia mais tarde o turco que trabalhava no snack-bar “Adana” em Barmen, na Rua Schützen.

Por vezes conversávamos um pouco quando, depois da escola, passava por lá depressa porque estava com fome e ele era muito simpático. A rapariga, que nunca falava e estava quase sempre a limpar a gordura da placa ou a pôr salsichas a grelhar, devia ser filha. Ou sobrinha, quem sabe. Talvez a loja lhe pertencesse, ou talvez ele fosse só empregado. Com os turcos, nunca se sabe. Geralmente, pertencem todos a uma grande família e acautelam-se para que ninguém mandrie. Não cheguei a perguntar-lhe essas coisas privadas porque o snack-bar fechou.

— De qualquer maneira, não se deve ter muita confiança com os clientes — dizia ele. — Eu, pelo menos, não quero ter aborrecimentos. Nunca se sabe quem se tem à frente.

 

Era entre as 18 e as 19 horas, altura em que as pessoas vão ainda rapidamente comprar batatas fritas ou salsichas de caril antes do cinema e os pais pedem grandes doses e prendem o serviço com os seus pedidos. Se uma pessoa tinha pressa, ficava furiosa com aqueles pais. Se não tinha nada planeado, não tinha importância.

Eu não tinha nada planeado, estava no fim da fila e olhava para o ecrã da televisão, em cima, ao canto. Não conseguia perceber muito mas, quando se está à espera, tanto faz. Pelo menos, comigo é assim. No ecrã uns homens corriam de um lado para o outro e, no chão, estava um homem deitado, baleado ou morto, não conseguia perceber. Não fazia ideia se estava a passar um filme ou as notícias. Nos filmes, os mortos estão muitas vezes caídos na rua com todos a correr à volta. A fila avançou um pedaço e eu ouvi indistintamente o nome Martin Luther King.

À minha frente encontrava-se um indivíduo bastante forte, mais velho e maior do que eu um palmo. Quando uma pessoa está na fila de um snack-bar, não lhe interessa quem está à frente porque não se conversa com a pessoa quando não se conhece, só muito raramente. O importante é que essa pessoa não tenha um rol de pedidos a fazer. A nossa vez está quase a chegar mas ainda pode demorar muito. Eu não tinha nada para fazer, só alguns – poucos – trabalhos de casa. Nada de importante.

Ainda faltava muito para a minha vez; tinha, pelo menos umas sete pessoas à frente, homens e mulheres. “Espero que muitos deles estejam sozinhos”, pensava eu. “Despacham os pedidos mais depressa.”

Esperanças destas não servem de nada porque não sabemos. Nas mesas estavam sentadas algumas pessoas a comer, também um casal já avançado na idade. Provavelmente não lhes apetecia cozinhar só para eles. Eu não estava com pressa mas, mesmo assim, não queria ficar ali em pé uma eternidade. A começar pelo facto de gordura e batatas fritas não cheirarem lá muito bem quando se tem de aguentar o cheiro durante muito tempo. Bem, adiante.

O indivíduo à minha frente também estava a olhar para o ecrã, pelo jeito da cabeça, e disse em voz alta:

— Menos um preto nojento! — olhou em volta com um risinho, como se esperasse uma aprovação ou, pelo menos um assentimento.

Ninguém disse nada. Mas, de repente, fez-se um silêncio tal, que se ouvia o frigir da gordura e o barulho do papel em que o turco estava a embrulhar outro pedido. Algumas pessoas olharam fixamente em frente, uma mulher lá à frente virou-se para trás para ver quem tinha falado mas não disse nada. Eu queria ter dito alguma coisa, mas não sabia o quê. Foi muito de surpresa, penso eu. A fila avançou.

O homem que estava à frente de tudo pagou. Quando se voltou, reconheci-o. Trabalha nas obras em frente da nossa escola. Conduz o cilindro para a frente e para trás, sempre devagar. Reconheci-o pelo capuz de pala com um boi vermelho à frente. E, para além disso, pelo físico. Não era pequeno, mas também não era um gigante. Pegou no recipiente das batatas fritas e seguiu ao longo da fila. Meteu uma batata frita à boca e mastigou muito calmamente. Tudo nele era lento como o pesado cilindro que conduzia, sempre devagar, de cada vez que eu olhava pela janela da sala de aula. Parou muito calmamente ao lado do indivíduo à minha frente e disse:

— Não percebi muito bem o que disseste. Ora diz lá outra vez!

Continuava a comer calmamente mas os olhos estavam postos no grandalhão à minha frente, uns bons quinze anos mais novo do que ele, de certeza, e maior. O homem do cilindro não era muito pequeno, mas talvez mais forte de ombros.

— O que eu disse, toda a gente ouviu — respondeu ele, em tom de desafio, mas os olhos tremiam-lhe um pouco ao falar. — Em todo o caso, é a minha opinião.

O condutor do cilindro olhava calmamente para ele continuando a comer.

— Eu não percebi lá muito bem — disse — por isso é que pedi que repetisses.

O tipo à minha frente saltava de uma perna para a outra e olhava de soslaio para o homem parado ao lado dele.

— Abre os ouvidos! Toda a gente ouviu! Eu falo quando quero e não quando me mandam! — falava num tom arrogante, esticava os ombros, olhando para outro lado e notava-se que, de certa forma se sentia incomodado.

Uma voz de mulher, vinda de mais à frente, disse então, bastante alto:

— Acha muito bem que tenham morto um pastor negro na América. Devia era ter vergonha!

Era a mulher que já se voltara uma vez. O último burburinho extinguiu-se. Estava um silêncio tenso, antes de o homem do cilindro dizer, sempre com o olhar dirigido para o fulano à minha frente:

— Finalmente percebi. Então uma pessoa como tu acha bem uma coisa destas… Deves ter viajado muito, deves conhecer um montão de pretos e tens muito contacto com eles, não? — perguntou amigavelmente.

— Isso não é da conta de ninguém — disse num tom brusco o tipo à minha frente. — Deixe-me mas é em paz.

A voz tremia-lhe. O turco já só perguntava em surdina o pedido do próximo cliente. A rapariga atrás do balcão, com o pano de limpar nas mãos, olhava com medo para os dois homens. A maioria dos clientes também se tinha voltado.

— Se tu dizes o que pensas aqui tão abertamente, então isso é muito da minha conta. Por acaso até admiro alguém com tanta coragem. A sério! Isso quando não diz disparates… ou até asneiras maiores!

— Quem é que está a dizer disparates? — o grandalhão à minha frente fazia-se de indignado mas a voz soava bastante tremida. Tinha suor na testa. Pensei que talvez ele estivesse com medo do condutor do cilindro, que não é propriamente uma criança. E é um pouco mais velho e talvez mais forte. Mas o homem do cilindro não parecia querer lutar.

— Quem é que está a dizer disparates? Bom, então vamos pedir a opinião das pessoas aqui! — virou-se e olhou em redor.

Algumas riam, inseguras, outras murmuravam, concordando. Eu tinha quase a certeza de que a maioria estava do lado do homem do cilindro. Mesmo que não dissessem nada.

“Os que provavelmente não são da mesma opinião, agora calam a boca”, pensei eu e disse ao homem que podia contar comigo. Eu também era da opinião que o tipo tinha dito asneira. Corei, mas depois senti-me bem, mesmo estando o indivíduo imediatamente à minha frente.

O turco suava em bica e passava o lenço pela testa cada vez com mais frequência para as gotas não caírem na comida. O condutor do cilindro manteve-se muito calmo e continuava a comer. Quando a fila avançava, ele andava um pouco porque queria continuar ao lado do indivíduo.

— Ora repara — disse ele suavemente mas tão claramente para que todos ouvissem. — Não vejo aqui ninguém que ache isso correcto… Ou será que há? — virou-se também para o velho que, sentado à mesa com a mulher, picava a salsicha de caril sem uma única vez levantar os olhos. Desta vez também não ergueu. Baixou ainda mais a cabeça e murmurou:
— Não somos de cá…

O condutor do cilindro olhou-os com certa pena mas não disse nada. Sentou-se a uma mesa, esticou as pernas, sempre com as batatas fritas nas mãos e o olhar dirigido ao fulano à minha frente.

— Pareces estar um pouco só com a tua opinião. Porque será? Talvez voltes a pensar outra vez no assunto. Um rapaz como tu… é pena.

O homem à minha frente mexia-se de um lado para o outro, nervoso. Vi claramente que a nuca estava ruborizada e não sabia onde meter as mãos. Olhava à sua volta, mas todos os olhares o evitavam.

De repente, deixou a fila e dirigiu-se à porta de saída, quase chocando com clientes que vinham a entrar, e quis atirar com a porta atrás dele mas ela fechou-se devagar e silenciosamente. Toda a gente olhava pela janela e via como ele estava no passeio, na paragem do autocarro, um pouco só, de costas viradas para a janela, e cada um fazia o seu juízo. O turco estava aliviado, via-se bem. A filha, ou sobrinha, com o pano na mão, sorria agora muito amavelmente.

Isto passou-se a 4 de Abril de 1968 entre as dezoito ou dezanove horas. Não me esqueço porque não se passa por uma situação destas muitas vezes. Tinha esquecido a data e o ano mas vi na enciclopédia sob o nome de King, Martin Luther.

Passou-se isto na Rua Schützen, em Barmen, quando, entre o posto dos correios e a taberna, que antes se chamava “Cantinho da Protecção”, ainda havia aquele snack-bar turco, e eu, na altura, ainda não tinha acabado de fazer os meus trabalhos de casa. Naquele dia também não os acabei.

Hermann Schulz

Karlhans Frank (org.)
Menschen sind Menschen. Überal.
München, C. Bertelsmann Verlag, 2002
tradução e adaptação

Como estragar um filho – regras básicas 11/12

António Mazzi
Como estragar um filho em dez jogadas
Lisboa, Paulus Editora, 2006

(excertos adaptados)

Anterior: 9/10

11. Faça-lhe crer que a vida é um paraíso

É cada vez mais difícil para mim compreender o suicídio de Fran­cisco, um rapaz de dezoito anos, de Ostia, apesar da abundante do­cumentação. Deixo de lado, voluntariamente, tudo o que respeita à prepa­ração de vinte minutos de vídeo e às várias premeditações para que o suicídio fosse bem sucedido. Detenho-me porém, no segundo dos três motivos que deveriam justificar o gesto louco. Francisco escreve: “O primeiro motivo permanecerá um segredo pessoal que ninguém saberá jamais. O segundo é que quero parar de sofrer. O terceiro é que, uma vez que mais cedo ou mais tarde todos morrem, não tenho medo de antecipar este processo.”

Encontro no segundo a chave de leitura deste doloroso epi­sódio. Volto, por isso, a uma antiga tese minha, que reencontro cada vez mais nos jovens de hoje: a profunda fragilidade que apresentam face ao esforço de uma vida verdadeira, feita de der­rotas e de vitórias, de limitações, esperas e outras dificuldades normais… Os filhos crescem, sobretudo nos primeiros anos da infância, convencendo-se demasiado que a vida é um paraíso terrestre, feita mais de brinquedos que de dores, mais de caprichos que de deveres.

Criámo-los como se criam as plantas na estufa. Tudo estava bem enquanto os mecanismos da estufa produziam essa atmos­fera artificial que permitia aos nossos filhos sentirem-se bem, in­dependentemente do mérito e do esforço. Quando a adolescên­cia os convida a sair desta atmosfera superprotegida com desejo de liberdade e de autonomia, acontece de tudo. A frase mais perturbadora do último gesto da vida deste rapaz de dezoito anos resume‑se às duas palavras do segundo motivo: “Quero parar de sofrer”. Traduzida numa linguagem mais acessível e verdadeira, significa interpretar a vida de cada dia como um sofrimento insuportável.

Se não deixarmos depressa, nós, adultos, de cuidar dos nossos filhos como pequenas plantas de estufa, episódios como este du­plicarão, perante o nosso desconcerto e incredulidade. Esquecemos cada vez mais que a educação supõe o treino para o esforço, o apoio para enfrentar as derrotas, a paciência e o diálogo ininterrupto, a proposta de gestos solidários e a libertação de tudo quanto possa fazer interpretar a vida como uma peça de teatro, um folhetim ou uma simples telenovela.

12. Deixe-o colado à televisão toda a tarde

A delicada relação entre os menores e a televisão não é ape­nas um problema, é “o problema dos problemas”. Não sei se os mass media encantam mais os pais se os filhos. Muitas vezes não são os pais que, por falta de tempo e de pa­ciência, substituem a sua voz materna pela voz enfeitiçada da televisão? Os interesses comerciais, a instabilidade das relações dos pais, o fascínio pela fantasia e o abuso imoral da infância vergonho­samente transformada em objecto de especulação, levaram o fenómeno aos limites de uma histeria colectiva.

Os dados dizem que há 87 canais dedicados às crianças, que a difusão da televisão atingiu 70% das famílias e que os nossos filhos passam pelo menos quatro horas por dia colados ao seu ”ídolo”! Creio que a coisa mais sensata que nos resta fazer é criar uma mobilização massiva e inteligente da escola e da família para criar baluartes críticos e válidos contra este desvario generalizado. Como educador, gostaria de sublinhar dois dos perigos que podem afectar as crianças dominadas pelos multimédia. Primei­ro: a incapacidade, algum tempo depois, de distinguir à sua volta o real do virtual. Segundo: a espantosa sobrecarga de emoções incontidas e concentradas que explodem na sua psique frágil e ainda em processo de formação.

De modo mais cómodo para nós mas mais arriscado para eles, substituímos as indispensáveis fábulas e contos das nossas avós pelos desenhos animados e pelos espectáculos mais diversos e disparatados. Ver crescer pequenos homenzinhos e pequenas mulherzinhas a abarrotar de publicidade, de ficção, de videojogos é a pior des­graça que pode acontecer ao nosso país. Que diferença fará para a criança de cinco anos, imbecilizada pelo bombardeamento da televisão, matar o seu gato verdadeiro ou o seu gato de peluche? E ficamo-nos prudentemente pelos gatos!

Perfil do bom pai/mãe  (cont.)

Perfil do bom pai/mãe

António Mazzi
Como estragar um filho em dez jogadas
Lisboa, Paulus Editora, 2006

(excertos adaptados)

Que diferença fará para a criança de cinco anos, imbecilizada pelo bombardeamento da televisão, matar o seu gato verdadeiro ou o seu gato de peluche? E ficamo-nos prudentemente pelos gatos!

Perfil do bom pai/mãe

  • Respeita os filhos

Aos filhos é devido o reconhecimento de uma per­sonalidade própria. Respeitar-nos-ão mais se mos­trarmos saber aceitar também o seu modo de ser no que não nos agrada.

  • Respeita-se a si próprio

Um pai que se sacrifica a si próprio e não escuta os próprios desejos habitua os filhos a não ter limi­tes e torna-os egocêntricos.

  • Dá ternura

As expressões de afecto (sorrisos, abraços, mimos) são importantes para dar aos filhos segurança so­bre os seu próprio lugar na família e no mundo.

  • Estabelece regras

As crianças, os adolescentes, têm necessidade de limites, de regras, que representam uma base de par­tida para dar sentido ao mundo que nos rodeia.

  • Constrói o diálogo

É bom comunicar com os filhos, dando atenção à própria capacidade de escutar e de enfrentar os conflitos.

  • Valoriza os filhos

Reforça a auto-estima dos filhos e dá-lhes força interior para enfrentar a vida.

  • Não é autoritário

De outro modo não se favorece a relação e provoca-se apenas o ressentimento.

  • Não é demasiado permissivo

É preciso dar aos filhos liberdade de expressão, mas dentro de limites e de regras claras.

  • Não usa de violência física ou verbal

Cada gesto violento, ainda que apenas verbalmente, apaga a possibilidade de uma verdadeira relação afectiva e cria personalidades violentas ou tímidas e incapazes de se exprimir.

  • Conduz os filhos ao crescimento

Protecção, acompanhamento e alegria em pequeninos; autonomia cada vez maior e crescente responsabilização, à medida que forem crescendo.

  • Que os pais passem mais tempo com os filhos

Os pais devem “perder” mais tempo com os filhos. A frase é muito popular e de compreensão imediata. A ideia pode ser uma resposta, em tempo real, ao vazio das nossas famílias, à dificuldade dos pais em conversar com os seus filhos, à frágil e enfraquecida socieda­de mais preocupada com a marca das sapatilhas dos seus filhos do que com a sua consciência.

Milão e a região Lombarda, mais que outras regiões, vêem-se todos os dias surpreendidas com inúmeras notícias terríveis protagonizadas por adolescentes. Notícias inexplicáveis, ou talvez explicáveis, mas apenas se o vazio no coração de todos nós for maior do que toda a história dos nossos antepassados e do que as profundas raízes que a solidariedade fundou no nosso país.

Já perdemos demasiado tempo a fazer perguntas, a procurar soluções pseudo-intelectuais mas pouco incisivas e nada concre­tas. Desde que o mundo é mundo, a educação tem postulados, poucos mas irrevogáveis, sem os quais não se poderá chamar educação. O sociologismo imperante e as ideologias políticas, ao longo de trinta anos, procuraram, em nome de uma liberdade híbrida e perniciosa, acabar precisamente com os poucos postu­lados que tornavam possível uma visão ética e menos egoísta da nossa sociedade.

As crianças, encantadoras à vista mas ainda por domar lá por dentro, ficam muito mais contentes e sorridentes quando satis­fazemos os seus caprichos do que quando tentamos convencê-las de algum “não”, dos primeiros deveres, de um mínimo de boa educação, relacionado com autodomínio e com o respeito pelos outros. Deve ter acontecido algo de muito grave no fim deste último século, para dar origem a notícias tão indescritíveis e devastadoras.

Acompanhar os filhos é cada vez mais difícil. Pressuporia pelo menos mais clareza de objectivos da parte dos pais. Por sua vez, a geração dos quarenta anos de hoje, antes de propor objectivos aos outros, deveria redescobrir e recuperar tudo o que deitou fora em nome daquela liberdade incoerente e narcisista de que falávamos acima. Têm razão quando se fala em estar mais tempo com os filhos. Mas devemos discutir a qualidade do tempo que passamos com os nossos filhos. O que é ainda mais difícil.

A história avança em virtude deste fio elástico, mais ou menos resistente, que liga o mundo dos filhos e o dos pais. Todos nós transportamos, como diz a fábula de Fedro, dois alforges que necessariamente levamos aos ombros. Segundo Fedro, no alforge da frente levamos os defeitos dos outros, no alforge de trás, os nossos. Ficaria contente se ainda fosse assim. Pelo menos teríamos qualquer coisa sobre que discutir e disputar. Receio, porém, que ambos os alforges estejam vazios. Por um motivo simples e triste: porque exige menos esforço. Gostaria de encerrar este ponto detendo-me precisamente na palavra “esforço”, desaparecida do nosso vocabulário. Desapareceu o esforço de crescer, o esforço de educar, o esforço de trabalhar, o esforço de amar, o esforço de estudar… o esforço de viver.

Explique-lhe o valor do esforço … (cont.)

Explique-lhe o valor do esforço

António Mazzi
Como estragar um filho em dez jogadas
Lisboa, Paulus Editora, 2006

(excertos adaptados)

Anterior:

Explique-lhe o valor do esforço

  • O esforço ajuda a realizar as próprias potencialidades

Quando o nosso trabalho começa a dar frutos, sentimo-nos estimulados a redobrar esforços, porque vislumbramos novas possibilidades. O êxito confere autoconfiança e a autoconfiança facilita outros êxitos posteriores.

  • O esforço ajuda a enfrentar a vida

A vida é dura. Cada dia coloca-nos diante de uma escolha: recriminarmo-nos pelas dificuldades ou enfrentá-las. A intenção de se empenhar a fundo e uma atitude positiva são os melhores instrumentos de que o seu filho poderá dispor.

  • O esforço faz-nos sentir bem

Não há maior satisfação do que aquela que se experimenta quando se levou ao fim um projecto com a consciência de ter dado o melhor de si.

  • O esforço tempera o carácter

Nada nos qualifica melhor que a vontade de investir as nossas energias. Trabalhar com empenho e honestidade faz ressaltar quanto de bom há em nós.

  • Com o esforço ganhamos o respeito dos outros

Quando fazemos o nosso melhor com constância, suscitamos a admiração e conquistamos a confiança dos que estão à nossa volta. Além disso, a nossa boa reputação é consolidada.

  • O esforço reforça a nossa auto-estima

Trabalhando duro sem nos pouparmos, adquirimos maior estima por nós mesmos. Quer os nossos esforços sejam coroados de sucesso, quer não o sejam, cada tentativa levada a cabo tem em nós um efeito positivo.

  • O esforço reforça o sentido do que procuramos alcançar

O esforço a que nos submetemos para alcançar as nossas metas é uma das experiências mais ricas da vida. Até alcançarmos um objectivo, encontraremos motivos válidos para nos levantarmos da cama cada manhã.

  • O esforço leva-nos a melhores resultados

Quando somos produtivos, a vida torna-se mais interessante e agradável. O sentir-se compensado é o resultado de um compromisso constante e ao abrigo de recriminações.

  • O esforço torna-se um hábito

Os bons hábitos fazem parte dos principais ingredientes do sucesso. Os mais importantes são a honestidade, a boa educação e a constância no compromisso.

  • O esforço é salutar

Quando trabalhamos arduamente, utilizamos o nosso corpo e a nossa mente de modo positivo, o que é extremamente benéfico. Quem explora a fundo as próprias energias ganha saúde e longevidade.

Fotografia da família correcta … (cont.)

Fotografia da família correcta

António Mazzi
Como estragar um filho em dez jogadas
Lisboa, Paulus Editora, 2006

(excertos adaptados)

Anterior: Explique-lhe o valor do esforço

Fotografia da família correcta

  1. Horários. Respeite os horários das refeições (pelo menos o do jantar!), esperando que todos cheguem para começar a comer.
  2. Refeições. Expulse a televisão, a leitura do jornal e o telefone durante as refeições (n.b. enterre durante uma hora o telemóvel).
  3. Discussões. Encete discussões sobre problemas sociais, permitindo a cada um exprimir a sua opinião (n.b. proibido falar dos problemas de trabalho).
  4. Hóspedes. A família abre a casa aos amigos e também os filhos devem receber os seus (n.b. uma vez por semana convide alguém que se sente solitário).
  5. Passatempos. Sugira sobretudo idas até à natureza, piqueniques, desportos ao ar livre (n.b. sugira alguns serões a fazer relaxamento e exercícios de imaginação activa)
  6. Decisões. Não tenha medo de envolver os filhos nas decisões importantes de acordo com a faixa etária (n.b. não só nas decisões em relação à motorizada….).
  7. Trabalho. Implique os filhos desde pequenos nas tarefas domésticas (n.b. fazer o jantar uma vez por semana).
  8. Privacidade. Não seja invasivo, respeite a intimidade do seu filho (n.b. não significa fechar o quarto à chave!).
  9. Diálogo. Converse ao jantar sobre como correu o dia (n.b. evitando julgamentos, sentenças e pe­nas). Procure um humor sadio.

Ofereça-lhe um caderninho de sonhos ou, se for maior, um diário…

Gerou-se um debate interessante depois da sentença de um juiz dando razão a um pai que, muito preocupado com … (cont.)

Como estragar um filho em dez jogadas

António Mazzi
Como estragar um filho em dez jogadas
Lisboa, Paulus Editora, 2006

(excertos adaptados)
Anterior: Fotografia da família correcta

Ofereça-lhe um caderninho de sonhos ou, se for maior, um diário…

Gerou-se um debate interessante depois da sentença de um juiz dando razão a um pai que, muito preocupado com o comportamento do filho menor, correu, sem demasiados escrúpulos, a desfolhar o seu diário. Sou partidário do respeito pela privacidade e do direito de cada um de nós (seja pequeno ou grande) a proteger espaços de intimidade e de reserva, inteiramente seus. Ponho-me também no lugar do pai em causa. Não quero ser hipócrita e devo dizer-vos que, 99 em 100 vezes, também eu correria o risco de comportamentos semelhantes.

Há momentos em que nós, os adultos, temos o dever de escolher entre uma regra de boa educação e o risco de perder um filho ou um jovem que, arrastado numa fase delicadíssima da sua existência, parece naufragar, incapaz até de lançar um SOS. Há alguns anos atrás inventei, também eu, um diário escolar. Dei-lhe o título de Tremenda. Tinha dado conta que muitos rapazes se estavam a isolar, cortando drasticamente todas as vias de comunicação com os adultos, sobretudo com os pais. Permanecia, como tábua de salvação, a vontade de escrever e de de­sabafar com aquele pequeno utensílio.

No meu tempo, usava-o para assinalar os testes e os trabalhos de casa. Hoje, feliz ou infelizmente, parece permanecer o único amigo, o confidente, o outro canal, depois da televisão (?), a quem se confiam os problemas. Várias pesquisas vieram a demonstrar que 33% dos jovens entre os 13 e os 18 anos falam apenas com os seus Tremenda e os seus blocos de apontamentos. Há algum tempo salvei dois jovens de dezasseis anos de um provável suicídio porque as suas namoradas tinham intuído, através de umas mensagens rabiscadas no diário, que alguma coisa não andava bem… Fico contente por ter sido um pai a “cair nesta ratoeira”. No passado eram as mães a “mexer-se” em casos como este, a ter curiosidade, a meter o nariz…

Bem-vindos sejam os pais! As figuras parentais têm que ser resgatadas, reabilitadas, reinventadas, de preferência, sem incomodar os Tribunais. Será possível que hoje já não se encontrem espaços, momentos, diálogos em que se possam exprimir, com sinceridade e transparência, as dúvidas e as perplexidades dos pais diante da conduta incompreensível do filho adolescente?

Confronto e mimetismo – Violência e impotência

Jacques-Antoine Malarewicz
O Complexo do Principezinho
Lisboa, Estrela Polar, 2007

(excertos adaptados)

Anterior: O Complexo do Principezinho – A negação da morte

Confronto e mimetismo

As décadas de 1950 e 1960 foram caracterizadas pelo que se chamou “conflito de gerações”, ou seja, a vontade dos jovens em se distanciarem dos mais velhos, rejeitando os seus valores e modelo de sociedade. Estes jovens procuravam alcançar a independência o mais rapidamente possível saindo do núcleo familiar; advogavam outros tipos de relação com os adultos, reivindicando mais respeito e liberdade. Não somente rejeitavam como exigiam. Nas décadas seguintes até aos nossos dias, as relações entre adultos e adolescentes evoluíram sensivelmente. O conflito entre gerações desapareceu totalmente e deu lugar a uma diversidade de tomadas de posição.

Numa grande maioria dos casos, os jovens procuram tirar proveito de um sistema que não rejeitam abertamente. Baseiam-se na confusão de gerações – que resulta de um mimetismo generalizado – onde adultos e adolescentes trocam as suas prerrogativas. As pressões mediáticas, económicas e, sobretudo, mercantis, favoreceram e aceleraram sensivelmente este primeiro fenómeno ao «venderem» “juventude” aos adultos e ilusões de autonomia e maturidade aos jovens.

Uma minoria de jovens, frequentemente bastante desfavorecida, manifesta uma rejeição total da sociedade sem que nenhum pedido de mudança a acompanhe. Aqui, o confronto é directo, destrutivo e sem esperança. Transmite a sensação de desembocar numa violência gratuita, como se nenhuma alternativa parecesse possível para estes jovens, a não ser “a lei dos mais fortes”. Já nem se trata de «ser contra», o que supõe uma intenção e uma capacidade de se projectar para além da violência; a oposição é desesperada e inscreve-se no momento.

A um nível mais profundo ainda, o confronto é sensivelmente deslocado para desaguar em novos pedidos. Quando agora reivindicam um mundo que corresponda à sua própria visão, os jovens exigem dos adultos que eles se conduzam apenas… como adultos. Nesse aspecto, agem como adultos, quer dizer, como os pais dos seus pais. É óbvio que este pedido não é directo, consciente e claro. Mas muitos comportamentos podem ser compreendidos nesse sentido, nem que seja por via das provocações de certas crianças, ao pai e à mãe, e que correspondem a uma procura de autoridade.

O conjunto oferece a sensação de uma grande confusão na distribuição dos papéis e, sobretudo, no lugar que os adultos querem ocupar perante as gerações que lhes vão suceder. O que domina é uma visão a muito curto prazo, uma «filosofia» do «quero, consequentemente faço-o» e uma submissão cega às leis da economia de mercado.

Violência e impotência

A questão da violência física coloca dois problemas difíceis de resolver. O primeiro é: os que a introduzem e põem em prática não a identificam como tal – são violentos porque não sabem o que é a violência. Ela resume, só por si, a sua relação com o mundo e com os outros, e é-lhes impossível compará-la a outras maneiras de actuar, para serem eles próprios a criticá-la.

O segundo problema é: a violência aberta de um induz uma outra, de natureza bem diferente porque perfeitamente interiorizada. De facto, é igualmente violento não saber como fazer frente à violência como o é vivê-la. Esta impotência é então tão manifesta que provoca um verdadeiro sentimento de paralisia.

Muito poucos indivíduos sabem comportar-se «eficazmente» perante a violência. Uma resposta eficaz situar-se-ia em qualquer parte onde houvesse a possibilidade de fazer «alguma coisa», sem se deixar necessariamente arrastar na escalada. Quando não se soube responder a uma agressão desta maneira, subsiste um sentimento de desconforto que pode ir da frustração à angústia profunda. A vítima sente, então e constantemente, a necessidade de reescrever na sua mente um cenário mais satisfatório, sem nunca o conseguir. Trata-se de imaginar que ser humilhado não é uma necessidade, ainda menos uma fatalidade. A violência subsiste então, não enquanto tal, mas na impotência que impõe.

As relações inter-humanas foram desde sempre marcadas pela violência. Mas ela passou a ser para nós cada vez mais insuportável, ao mesmo tempo porque tem a ver com crianças cada vez mais jovens, mas também porque vivemos numa sociedade que nos dá a ilusão da segurança. Como tudo pode ser compreendido, nada pode acontecer sem estar previsto.

Qualquer violência gera outra violência. Quer seja patente ou dissimulada, a reacção está presente. A própria impotência resolve-se, quando tem a oportunidade, por uma atitude por vezes próxima da vingança ou do acertar de contas. Salvaguardadas todas as proporções, seja através do boletim de voto ou do recurso à psicoterapia, o mecanismo de delegação é o mesmo. Com efeito, é tentador aderir às posições políticas extremistas para resolver, pela via da força, os problemas colocados por uma minoria de jovens, da mesma forma que certos pais imaginam, de bom grado, deixar todo o poder ao psicoterapeuta para trazer os seus filhos de volta à razão.

O sintoma «psi» de uma criança é sempre violento para os seus pais. Muitos preferiam confrontar-se com algo de concreto, palpável e racional. Estes pais vivem o facto de recorrer ao psicoterapeuta como um fracasso. São então obrigados a desvendar – poderia escrever confessar – a sua impotência e o seu reconhecimento; nesta situação, escondem mal a sua cólera.

As crianças tiranas

Quando as crianças não são apenas pequenos príncipes, quando se transformam, sem que para tal tenham necessidade de crescer, em reis que só olham para eles próprios, reinam sem partilha e impõem a violência aos que os cercam, e chegam ao ponto de se conduzirem como verdadeiros tiranos. Trata-se da manifestação (…) continuação

Bernard ou como saber parar o tempo

Jacques-Antoine Malarewicz
O Complexo do Principezinho
Lisboa, Estrela Polar, 2007

(excertos adaptados)

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Bernard ou como saber parar o tempo

Bernard tem 16 anos. É um rapaz alto, solidamente constituído e cujo peso se aproxima dos noventa quilos. Vem acompanhado do pai, que pediu a consulta. Os resultados escolares de Bernard inflectiram sensivelmente nas últimas semanas e os pais são habitualmente mais sensíveis do que as mães a este tipo de problema.

Os professores denunciam um comportamento pueril, assim como ausências cada vez mais numerosas. Coloca-se a questão de ter de repetir o ano, o que é inaceitável para o pai de Bernard, que sente isso como um fracasso pessoal.

TERAPEUTA (dirigindo-se ao pai) — O que o inquieta mais no Bernard?

PAI — Tudo! É como se não vivesse mais lá em casa, salvo com o irmãozinho… aproxima-se dele desde há algumas semanas… mas de qualquer forma têm oito anos de diferença e eu penso que isso é um pouco estranho… Para além do mais, os professores convocaram-nos, eles também estão preocupados porque os resultados são fracos… é possível que repita o ano…

TERAPEUTA — E tu, Bernard, o que te inquieta?

BERNARD — …

PAI — Ora aí está, é sempre assim… nem responde quando lhe fazem uma pergunta… é o que lhe dizia… um verdadeiro túmulo… é assim desde há várias semanas… não se lhe consegue sacar nada…

TERAPEUTA (dirigindo-se a Bernard) — Será que o teu pai pode explicar-me o que se passa?

BERNARD — Não, não quero…

TERAPEUTA — Então, o que propões?

BERNARD — …

TERAPEUTA — Desejas falar a sós comigo?

BERNARD — Sim…

Bernard testa-me. Tem necessidade de saber – o que é totalmente legítimo – de que lado estou: do seu ou do lado do pai. Mas tenho que lhe mostrar que continuo dono do jogo e que ele não pode decidir tudo. Então, proponho-lhe um compromisso.

TERAPEUTA — Concordo, mas antes quero falar com o teu pai em privado… Podes deixar-nos sozinhos durante alguns instantes? (Bernard sai da sala depois de ter hesitado um pouco.)

TERAPEUTA — Tem alguma explicação?

PAI — Sim e… não. De facto, parece-me que ele tem… digamos… problemas desde há alguns meses… sobretudo depois do seu último aniversário, de ter completado dezasseis anos…

TERAPEUTA — Problemas?

PAI — Sim, tenho a impressão de que ele tem medo de tudo… não quer ver ninguém, nem os amigos mais próximos. Evita-os sistematicamente.

TERAPEUTA — Ele pode, sobretudo, ter medo de crescer!?

PAI — Pode explicar melhor?

TERAPEUTA — Medo ou não ter vontade…

PAI — Mas mesmo que seja isso… Não há nenhuma razão… tem tudo o que necessita…

É sempre difícil passar de uma explicação clínica, que o pai vem buscar, à compreensão relacional da atitude de Bernard. Tal não significa que não haja explicação clínica. Só que, enquanto terapeuta familiar, não posso contentar-me em receitar – eventualmente – um ou mais medicamentos. Durante esta consulta com o pai, tentei dar-lhe uma outra perspectiva das dificuldades do seu filho.

TERAPEUTA — Há coisas que possam perturbar o Bernard?

PAI — Não, não vejo quais…

TERAPEUTA — Será que pode estar inquieto pelo senhor ou pela mãe?

PAI — Se a minha mulher estivesse aqui, diria provavelmente que Bernard foi muito afectado por um pequeno problema de saúde que eu tive há alguns meses.

TERAPEUTA — Pequeno problema de saúde?

PAI — Um problema cardíaco… não muito grave, um pequeno alerta. Foi a primeira vez… No fundo, na minha família, o meu pai morreu de enfarte quando tinha quarenta e quatro anos, e o meu avô morreu da mesma causa quando tinha quarenta e sete. (Sorrindo e dando ares de estar descontraído…) — Já passei a idade!

TERAPEUTA — E tem a impressão que a sua mulher está enganada?

PAI — Não sei… e quanto a si?

TERAPEUTA — As crianças sabem esconder frequentemente o que as inquieta…

Em seguida observei Bernard a sós, como ele desejava. Só que a maior parte do tempo ficou entrincheirado no seu silêncio e ficámos pelas banalidades. Não quis falar-lhe demasiado rapidamente das inquietações que ele podia ter em relação ao estado de saúde do pai e da ligação que podia ser feita com os seus problemas. Pareceu-me que cabia aos pais fazê-lo, sobretudo ao pai.

Vi os pais várias vezes para os ajudar a falar de tudo isso, primeiro entre eles, em seguida com os dois filhos. A mãe estava muito angustiada, mas não ousava demonstrar ao marido a sua angústia, com medo de agravar o estado de saúde do coração do marido. Cada um refugiou-se nas suas próprias apreensões em relação ao futuro.

A angústia de Bernard era proporcional à ligeireza do pai. Os aniversários passaram a ser mais importantes para esta família. Consequentemente, ele procurou parar a marcha do tempo, tanto para o pai, como para ele próprio e para o irmão.

A anorexia ou o último controlo

A anorexia mental e as suas consequências no quadro familiar são emblemáticas da tomada do poder que determinados adolescentes são capazes de desenvolver nas suas (…) continua

A anorexia ou o último controlo – Aurélie

Jacques-Antoine Malarewicz
O Complexo do Principezinho
Lisboa, Estrela Polar, 2007

(excertos adaptados)

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A anorexia ou o último controlo

A anorexia mental e as suas consequências no quadro familiar são emblemáticas da tomada do poder que determinados adolescentes são capazes de desenvolver nas suas famílias e da submissão que os adultos podem mostrar em relação a eles.

Trata-se de uma síndroma que atinge preferencialmente os adolescentes – em 90 por cento dos casos. Ela associa três tipos de sintomas. O primeiro é um emagrecimento importante, ocasionado por uma privação voluntária de comida, por vezes acompanhada de vómitos provocados, ou da toma de laxativos e diuréticos. A actividade física, às vezes intensa, acaba por acelerar o processo. Para ser levada a sério no quadro de uma anorexia, esta perca de peso deve, pelo menos, ser de 15 por cento em relação à norma. Revela-se em seguida uma amenorreia secundária, ou seja, ausência do período depois de a adolescente estar normalmente menstruada. Os equilíbrios hormonais são, pois, profundamente perturbados e as repercussões atingem o conjunto das funções metabólicas.

Enfim, a ignorância obstinada da gravidade dos distúrbios físicos e psíquicos por parte dos interessados, e às vezes até da família, constitui uma verdadeira negação da realidade. Estas adolescentes escondem frequentemente a sua perca de peso debaixo da largura das suas roupas. Elas investem nos estudos, por vezes mais do que é razoável, sem no entanto atingir os resultados que o seu trabalho poderia permitir-lhes esperar.

Pensou-se durante muito tempo que esta síndroma era a consequência de um desequilíbrio hormonal; estas adolescentes eram frequentemente tratadas por pediatras que sentiam, e ainda sentem, muitas dificuldades em guiá-las para um psicoterapeuta ou um psiquiatra.

A anorexia mental sempre existiu, sob outros aspectos e denominações. Ela faz agora parte daquilo a que os médicos chamam distúrbios das condutas alimentares, que reagrupam igualmente a bulimia e a bulimia com vómitos. O número de casos diagnosticados aumenta sensivelmente e já vimos que esses distúrbios assumem um significado particular na nossa sociedade. É preciso igualmente ter em conta que os especialistas capazes de emitir estes diagnósticos e conduzir o tratamento são cada vez mais numerosos e que a oferta cria a procura.

Nos países ocidentais, a prevalência desta doença não está ligada a nenhum factor socioeconómico: todas as classes sociais são abrangidas. Os factores culturais, antes descritos, parecem determinantes. Assim, esta doença começa a aparecer nos países do Magreb com a ocidentalização da sociedade. A mortalidade é importante, considera-se geralmente que ela é de 10 por cento de casos em cada década.

Por outras palavras, quando os distúrbios se estendem por duas décadas, a mortalidade é da ordem dos 20 por cento. Trata-se, pois, de uma doença grave e os riscos de cronicidade são importantes. Em dez, ela abrange nove raparigas e um rapaz e perturba, frequentemente durante muitos anos, a vida escolar e social do adolescente e do adulto, ao mesmo tempo que perturba as relações familiares.

Aurélie

Trata-se do primeiro encontro com Aurélie e a sua família. Depois de várias hospitalizações, os pais acabaram por se resignar a pedir ajuda fora do quadro de qualquer situação urgente. Até lá, o recurso à medicina só se fez no limite extremo do emagrecimento de Aurélie. De cada vez, parecia evidente que o problema se resolvia por si próprio com um aumento do peso, que não era fruto da pressão clínica realizada durante a hospitalização.

Há três crianças nesta família. Aurélie é a mais velha, tem 17 anos e sofre, actualmente e de forma evidente, de um problema de anorexia mental. Tem duas irmãs mais novas, com 15 e 13 anos. Como acontece frequentemente, os pais sentem dificuldades em concordar no que toca a prioridades.

TERAPEUTA (dirigindo-se aos pais) — O que motivou o vosso pedido de consulta?

PAI — Pessoalmente, o que mais me preocupa é saber se a Aurélie vai poder reatar rapidamente os seus estudos… já se atrasou demasiado…

MÃE (virando-se para o marido) — Não creio que isso seja o mais importante… os estudos, isso virá depois. Para mim, tenho necessidade de receber conselhos do ponto de vista culinário, mais exactamente, tenho necessidade de saber se, de um ponto de vista clínico, um regime alimentar pode resolver este problema de peso… Tem de haver uma solução…

PAI — Tens razão… mas se ela retomasse os estudos, ela poderia de novo confiar nela… Tenho a certeza de que o problema da comida se vai resolver por si próprio… nessa altura… numa segunda fase. Que pensa disto, doutor?

É difícil para estes pais saírem de uma definição «sintomática» do caso da filha. Considerar que se trata de um problema escolar ou alimentar equivale a ignorar a dimensão relacional do seu comportamento. Deve ser velha a discordância entre eles no que toca à importância relativa dos estudos e da comida. Utilizam constantemente o mesmo cenário perante as filhas e perante o psicoterapeuta. Concordam em… não concordarem, embora apenas nos limites muito estreitos que definem estas implicações secundárias em relação à situação no seu todo. Dão a sensação de poderem tomar decisões, embora sabendo muito bem que é Aurélie quem manipula todos.

No final da consulta, uma outra foi marcada com toda a família, para três semanas mais tarde, a uma quarta-feira, ao princípio da noite. Todos se levantam e, quando aperto a mão à mãe para me despedir, Aurélie começa a falar de forma bastante dramática.

AURÉLIE — Não é possível!

MÃE — O que não é possível?

AURÉLIE (dirigindo-se aos pais ao mesmo tempo e com um tom de bastante desprezo)

— Enfim, apesar de… esqueceram-se? Será que vocês pensam um pouco?

PAI — Que queres dizer?

AURÉLIE — …

PAI — Responde!

MÃE — Escuta, Aurélie, se tens algo a dizer, diz e já, não podemos ficar especados aqui indefinidamente, o doutor tem provavelmente uma outra consulta… despacha-te…

AURÉLIE — …

PAI (dirigindo-se à mãe) — Deixa-a, neste caso nem vale a pena insistir…

MÃE — Gostaria apenas que ela me explicasse o que quer dizer (mais calma) —, diz-me…

AURÉLIE — Mas, enfim, não é possível, naquele dia, naquela noite…

MÃE — E porquê?

PAI — Sim, porquê?

AURÉLIE — …

PAI (começando a enervar-se) — Então, explica-te!

MÃE (dirigindo-se ao pai) — Não lhe fales assim!

PAI — Aurélie, não nos deixes assim… o que é que não é possível?

AURÉLIE (excedida) — O restaurante!

PAI — O restaurante?!

MÃE (em simultâneo) — Sim, tens razão… tinha-me esquecido (voltando-se para mim) — … É o nosso aniversário de casamento e nós há muito que fizemos uma reserva para essa noite. Aurélie tem toda a razão, é preciso encontrar uma outra data. Lamento!

Os pais tinham-se esquecido, um e outro, que o dia da próxima consulta era igualmente o dia do seu aniversário de casamento e que há muito se tinham já comprometido para essa noite. Aurélie lembrou-se quando, logicamente, isso devia primeiramente dizer respeito aos pais. Mas, neste tipo de família, os laços conjugais passam frequentemente para segundo plano perante o elo pais-filhos, o que pode explicar esta «anomalia».

Apesar disso, ainda não tinha chegado ao fim das minhas surpresas. Com efeito, os pais tinham reservado uma mesa num restaurante, não somente para eles, o que era normal, mas também para uma terceira pessoa: Aurélie. Pareceu-lhes ser evidente que não a podiam deixar sozinha em casa, tendo em conta os problemas alimentares. Ela corria o risco de nada comer na ausência dos pais. Preferiram levá-la com eles, sem que isso parecesse afectá-los, dado os conhecidos problemas de Aurélie. Assumiam o risco, mais que provável, de ficar sem apetite perante a visão da filha a contemplar, no meio do seu prato, três rodelas de cenoura misturadas com dois salsifis. A festa seria cruel!

Aurélie instalou-se, pois, solidamente, no centro de todas as preocupações familiares, até num momento simbólico da história do casal constituído pelos seus progenitores. As suas duas irmãs estão totalmente afastadas das preocupações dos pais. Elas não têm o direito de reivindicar seja o que for, e, como é óbvio, deixaram de existir.

A irmã mais velha assumiu o poder; neste caso porque é, ao mesmo tempo, a única a lembrar-se do que é importante na vida familiar e, também, porque focaliza as preocupações dos pais como se fosse filha única. Os laços protectores de que beneficia são tão poderosos que os pais aceitam sacrificar-se por ela, abandonando qualquer intimidade e mesmo todo o prazer que poderiam ter em estar sós por ocasião do seu aniversário de casamento.

Perante tal situação, é sempre preferível não mostrar espanto. É preciso compreender bem que tudo isso parece não apenas ser evidente para este tipo de famílias, como também necessário e útil. Elas são catalogadas de «engrenadas», o que significa que cada membro está estreitamente ligado ao outro como duas rodas dentadas, uma em contacto com a outra. Quando um elemento se mexe, os outros reagem imediatamente. Os mecanismos de protecção são, nestes casos, notáveis: os conflitos são sistematicamente evitados e qualquer intrusão é geralmente muito mal aceite. Não é um terapeuta que pode pretender dizer-lhes o que devem fazer e ainda menos permitir-se julgar o comportamento deles.

A bulimia ou a fusão total

Com a bulimia e a obesidade, mudamos de registo. Já não se trata de um controlo absoluto e manifesto do corpo. Bem pelo contrário, … (continua)