Sugestões de leitura para adultos – edições brasileiras

A Garota Que Você Deixou Para Trás

Jojo Moyes
Intrínseca, 2014

Jojo Moyes apresenta a comovente história de duas jovens separadas por quase um século no tempo,mas juntas em sua determinação de lutar por aquilo que amam – custe o que custar.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o jovem pintor francês Édouard Lefèvre é obrigado a se separar de sua esposa, Sophie, para lutar no front. Vivendo com os irmãos e os sobrinhos em sua pequena cidade natal, agora ocupada pelos soldados alemães, Sophie apega-se às lembranças do marido admirando um retrato seu pintado por Édouard. Quando o quadro chama a atenção do novo comandante alemão, Sophie arrisca tudo – a família, a reputação e a vida – na esperança de rever Édouard, agora prisioneiro de guerra.

Quase um século depois, na Londres dos anos 2000, a jovem viúva Liv Halston mora sozinha numa moderna casa com paredes de vidro. Ocupando lugar de destaque, um retrato de uma bela jovem, presente do seu marido pouco antes de sua morte prematura, a mantém ligada ao passado. Quando Liv finalmente parece disposta a voltar à vida, um encontro inesperado vai revelar o verdadeiro valor daquela pintura e sua tumultuada trajetória. Ao mergulhar na história da garota do quadro, Liv vê, mais uma vez, sua própria vida virar de cabeça para baixo. Tecido com habilidade, A garota que você deixou para trás alterna momentos tristes e alegres, sem descuidar dos meandros das grandes histórias de amor e da delicadeza dos finais felizes.


1A bibliotecária de Auschwitz

Antonio G. Iturbe
Nova Fronteira, 2013

Muitas histórias do horror e sofrimento testemunhados dentro dos campos de concentração nazistas são contadas e recontadas, já estão gravadas e arquivadas. É difícil, nesses relatos, encontrar atos de esperança e força diante de todo o mal registrado durante o Holocausto.

A Bibliotecária de Auschwitz é um livro diferente. É uma história verdadeira e cheia de detalhes a respeito de um professor judeu, Fredy Hirsh, que criou uma escola secreta dentro do bloco 31, no campo de concentração de Auschwitz, dedicando-se a lecionar para cerca de 500 crianças. Criou também uma biblioteca de poucos volumes com a ajuda de Dita Dorachova, uma menina judia de 14 anos que se arriscava para manter viva a esperança trazida pelo conhecimento e escondia os livros embaixo do vestido. É um registro de uma época sofrida da história, mas que também mostra a coragem de pessoas que não se renderam ao terror e se mantiveram firmes usando os livros como “arma”.


últimos-dias-de-nossos-pais-jOs últimos dias de nossos pais

Joël Dicker
Intrínseca, 2015

Após a frustração de ter tido o Exército britânico encurralado em Dunquerque, Winston Churchill tem uma ideia capaz de mudar o curso da guerra: a criação de uma nova seção do serviço secreto britânico, a SOE (Executiva de Operações Especiais), responsável por conduzir ações de sabotagem e se infiltrar nas linhas inimigas. Algo jamais feito na história. Na esperança de se juntar à Resistência, o jovem Paul-Émile deixa Paris e vai para Londres. Logo recrutado pela SOE, ele se integra a um grupo de franceses que se tornam seus companheiros de coração e de armas. Passando por formações e treinamentos intensos nos quatro cantos da Inglaterra, os selecionados voltarão para a França ocupada para contribuir na resistência. Mas a espionagem alemã está alerta… A existência da SOE por muito tempo foi mantida em segredo. Várias décadas após o fim das atrocidades da Segunda Guerra, Os últimos dias de nossos pais é um dos primeiros romances a abordar sua criação e a relembrar as verdadeiras relações entre a Resistência e a Inglaterra de Churchill. Dicker constrói um livro sobre amor, amizade e medo, com uma profunda reflexão sobre o ser humano e suas fraquezas.


Uma-Prova-do-CeuUma prova do céu

Dr. Eben Alexander

A jornada de um neurocirurgião à vida após a morte

Sextante, 2013

“Minha experiência mostrou que a morte não é o fim da consciência e que a existência humana continua no além-túmulo. E, mais importante ainda, ela se perpetua sob o olhar de um Deus que nos ama e que se importa com cada um de nós.

Cético, defensor da lógica científica e neurocirurgião há mais de 25 anos, o Dr. Eben Alexander viu sua vida virar do avesso quando passou por uma experiência que ele mesmo considerava impossível. Vítima de uma meningite bacteriana grave, ficou em coma por sete dias. Enquanto os médicos tentavam controlar a doença, algo extraordinário aconteceu.

Eben embarcou numa jornada por um mundo completamente estranho. Sem consciência da própria identidade, foi mergulhando cada vez mais fundo nessa realidade difusa, onde conheceu seres celestiais e fez descobertas transformadoras sobre a existência da vida após a morte e a profunda relação que todos nós temos com Deus.

Quando os médicos já pensavam em suspender seu tratamento, o inesperado aconteceu: seus olhos se abriram. Ele estava de volta. Mas nunca mais seria o mesmo. Aquela experiência o levou a questionar tudo em que acreditava até então. Afinal, como neurocirurgião, ele sabia que o que vivenciou não poderia ter sido uma mera fantasia produzida por seu cérebro, que estava praticamente destruído.

Analisando as evidências à luz dos conhecimentos científicos, o Dr. Eben decidiu compartilhar essa incrível história para mostrar que ciência e espiritualidade podem e devem andar juntas.

Narrado com o fascínio de um paciente que visitou o outro lado e com a objetividade de um médico que tenta comprovar a veracidade de sua experiência, este é um livro emocionante sobre a cura física e espiritual e a vida que se esconde nas diversas dimensões do Universo.”


Hereges

Leonardo Padura
Boitempo, 2015

O ponto de partida é um episódio real: a chegada ao porto de Havana do navio S.S. Saint Louis, em 1939, onde se escondiam 900 refugiados vindos da Alemanha. A embarcação passou vários dias à espera de uma autorização para o desembarque. No romance, o garoto Daniel Kaminsky e seu tio, aguardavam nas docas, trazendo um pequeno quadro de Rembrandt que pertencia à família desde o século XVII e que esperavam utilizar como moeda de troca para garantir o desembarque da família que estava no navio. No entanto, o plano fracassa, a autorização não é concedida, e o navio retorna à Alemanha, levando também a esperança do reencontro. Quase setenta anos depois, em 2007, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família.


o homemO Homem que Amava os Cachorros

Leonardo Padura
Boitempo, 2013

A história é narrada, no ano de 2004, pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava com seus cães, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski, seu assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo.

Esse ser obscuro, que Iván passa a denominar “o homem que amava os cachorros”, confia a ele histórias sobre Mercader, um amigo bastante próximo, de quem conhece detalhes íntimos. Diante das descobertas, o narrador reconstrói a trajetória de Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS, e a de Ramón Mercader, o homem que empunhou a picareta que o matou, um personagem sem voz na história e que recebeu, como militante comunista, uma única tarefa: eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.

As duas trajetórias ganham sentido pleno quando Iván projeta sobre elas sua própria experiência na Cuba moderna, seu desenvolvimento intelectual e seu relacionamento com “o homem que amava os cachorros”.


pintassilgoO pintassilgo

Donna Tartt
Companhia das Letras, 2014

Theo Decker, um nova-iorquino de treze anos, sobrevive milagrosamente a um acidente que mata sua mãe. Abandonado pelo pai, Theo é levado pela família de um amigo rico. Desnorteado em seu novo e estranho apartamento na Park Avenue, perseguido por colegas de escola com quem não consegue se comunicar e, acima de tudo, atormentado pela ausência da mãe, Theo se apega a uma importante lembrança dela: uma pequena, misteriosa e cativante pintura que acabará por arrastá-lo ao submundo da arte.

Já adulto, Theo circula com desenvoltura entre os salões nobres e o empoeirado labirinto da loja de antiguidades onde trabalha. Apaixonado e em transe, ele será lançado ao centro de uma perigosa conspiração.
O Pintassilgo é uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência, um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara sensibilidade as cruéis maquinações do destino.


homeroA odisseia de Homero

Gwen Cooper
Editora Sextante, 2010

Todo mundo que tem gatos sabe que eles são dotados de uma sensibilidade incrível e possuem uma forma peculiar de encarar a vida. Mas Homero tinha muito mais a ensinar.

Abandonado, cego e rejeitado, ele tinha tudo para ser amuado e medroso. Ninguém imaginaria que um gato sem os olhos – que precisaram ser retirados cirurgicamente para garantir sua sobrevivência – seria capaz de levar uma vida normal, com a alegria e a esperteza características dos felinos.

Contrariando todas as expectativas, Homero vivia como se seus olhos não lhe fizessem falta. Era bagunceiro, implicante, temperamental, divertido e dengoso como qualquer outro gato. Gwen Cooper fazia questão de afirmar que ele não era diferente. Mas ele era.

Diferente não por causa da falta de visão, mas por sua capacidade de fazer aflorar nas pessoas o que elas tinham de melhor. Parecia haver em seu espírito uma sabedoria oculta e uma energia latente que inspiravam todos à sua volta.

Homero se tornou o centro do mundo de sua dona. Foi se esforçando para garantir a segurança do seu gato que ela aprendeu a estabelecer a sua própria. Foi preocupando-se com a felicidade dele que Gwen percebeu quanto estava sozinha. E foi lhe oferecendo um amor incondicional que ela permitiu que esse sentimento entrasse em sua vida.

Mais do que um livro divertido e comovente sobre as aventuras de um gatinho, A odisseia de Homero é uma história de superação, de autoconhecimento, de transformação e de crescimento pessoal. Ela vai fazer você rir, se emocionar e compreender que, para conseguir o que queremos da vida, muitas vezes precisamos dar um salto no escuro, da mesma forma que Homero: confiando em nossos instintos e acreditando que sempre cairemos de pé.


O Jardim Secreto de Eliza

Kate Morton
Editora Rocco, 2009

O Jardim Secreto de Eliza – Em 1913, um navio chega à Austrália direto de Londres, trazendo com ele uma menina de quatro anos, absolutamente sozinha, sem um acompanhante adulto sequer. Com ela, apenas uma pequena mala com um livro de contos de fadas. O mistério de quem era a bela garota, que dizia não lembrar seu nome, e de como chegou ao porto, jamais foi desvendado. Em suas memórias ela trazia apenas a imagem de uma mulher que ela chamava de a dama ou a Autora e que dizia que viria buscá-la. Muitos anos depois, em 2005, na cidade australiana de Brisbane, a doce e reservada Cassandra herda de sua avó Nell uma casa na Inglaterra. Surpresa, ela descobre que a casa esconde as origens de sua avó, que foi uma vez a bela menina sem nome perdida no porto.

Enquanto acompanha a viagem de Cassandra para a Inglaterra em busca de suas origens, a autora revela uma trama paralela que se desenrola muitos anos antes do nascimento da menina, quando Nell vê seu mundo cair depois que seu pai revela, às vésperas de seu noivado, que ela não é sua filha verdadeira. A notícia a transforma numa mulher estranha, colecionadora de artigos antigos e raros e que vive numa casa em uma região afastada da Austrália. Seu exílio auto imposto, no entanto, é quebrado quando sua filha deixa a pequena Cassandra a seus cuidados. Revoltada com a filha por ter abandonado a menina, assim como aconteceu com ela quando criança, Nell acaba estreitando laços com a neta.

Um dia, porém, nos idos dos anos 1970, Nell, resolve finalmente reconstituir o caminho de volta a terra de onde veio: Londres. Lá, descobre muitas coisas sobre seu passado, incluindo as lembranças da moça que chamava de A Autora: Eliza Makepeace, uma travessa menina contadora de histórias que tinha sua própria cota de tragédias para viver na Inglaterra da virada do século XIX para o XX. Seria Eliza mãe de Nell? E por que ela a abandonou? Agora, é a vez de Cassandra revirar a pequena mala de segredos da avó e saber o que Nell conseguiu descobrir, se é que ela obteve sucesso em sua busca


Na terra da nuvem branca

Sarah Lark
Europa Editora , 2013

Governanta e professora de uma rica família em Londres, Helen Davenport anseia por um casamento, mas, sem pretendentes e já perto de completar 30 anos, sabe que suas possibilidades não são boas. Quando vê, na sua igreja, um anúncio de um fazendeiro na Nova Zelândia que procura uma mulher solteira e honrada para se casar, não pensa duas vezes. Após uma breve troca de correspondências com o pretendente, decide aceitar a proposta e emigrar.
Não muito longe, no País de Gales, Gwyneira Silkham, filha de um nobre e rico criador de ovelhas, está entediada com sua vida. Durante uma negociação de matrizes com um rico fazendeiro da Nova Zelândia, seu pai aceita o desafio para um jogo de cartas aparentemente inofensivo. Acaba apostando — e perdendo — a mão de sua filha em favor do filho do fazendeiro. Surpreendentemente, em vez de se revoltar, Gwyn vê na distante colônia a chance de uma vida vibrante e plena de aventuras.
Ambientado no século 19, durante o início da colonização inglesa na Nova Zelândia, o romance Na Terra da Nuvem Branca conta a história dessas duas corajosas mulheres que mudam radicalmente suas vidas e partem rumo ao desconhecido. Elas se encontram no navio, durante a longa e perigosa viagem, e começam a construir laços de uma duradoura amizade, que será decisiva na luta para a conquista de seus ideais.
Mesmo sendo uma história ficcional, a autora Sara Lark lança um olhar feminino sobre o momento histórico da colonização e a cultura dos nativos maoris. Destaca ainda a personalidade das mulheres e as dificuldades que enfrentam face às oportunidades que uma terra em formação oferece. E constrói uma saga envolvente e apaixonante.


A cidade do sol

Khaled Hosseini
Editora Nova Fronteira, 2013

Mariam tem 33 anos. Sua mãe morreu quando ela tinha 15 anos e Jalil, o homem que deveria ser seu pai, a deu em casamento a Rashid, um sapateiro de 45 anos. Ela sempre soube que seu destino era servir seu marido e dar-lhe muitos filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos.
Laila tem 14 anos. É filha de um professor que sempre lhe diz: “Você pode ser tudo o que quiser.” Ela vai à escola todos os dias, é considerada uma das melhores alunas do colégio e sempre soube que seu destino era muito maior do que casar e ter filhos. Mas as pessoas não controlam seus destinos. Confrontadas pela história, o que parecia impossível acontece: Mariam e Laila se encontram, absolutamente sós. E a partir desse momento, embora a história continue a decidir os destinos, uma outra história começa a ser contada, aquela que ensina que todos nós fazemos parte do “todo humano”, somos iguais na diferença, com nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.


Holocausto brasileiro
Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil

Daniela Arbex
Geração, 2014

Neste livro-reportagem fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.
Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças.


A resposta

Kathryn Stockett
Bertrand Brasil, 2011

A Resposta – Uma história de otimismo ambientada no Mississippi em 1962, durante a gestação do movimento dos direitos civis nos EUA.

Eugenia Skeeter Phelan acabou de se graduar na faculdade e está ansiosa para tornar-se escritora, mas encontra a resistência da mãe, que quer vê-la casada. Porém, o único emprego que consegue é como colunista de dicas domésticas do jornal local. É assim que ela se aproxima de Aibellen, a empregada de uma de suas amigas. Em contanto com ela, Skeeter começa a se lembrar da negra que a criou e, aconselhada a escrever sobre o que a incomoda, tem uma ideia perigosa: escrever um livro em que empregadas domésticas negras relatam o seu relacionamento com patroas brancas.

Mesmo com receio de prováveis retaliações, ela consegue a ajuda de Aibileen, empregada que já ajudou a criar 17 crianças brancas, mas chora a perda do próprio filho, e Minny, cozinheira de mão cheia que, por não levar desaforo para casa, já esteve por diversas vezes desempregada após bater boca com suas patroas. Uma história emocionante e estarrecedora onde a cor da pele das pessoas determina toda a sua vida. Um livro que, devido ao seu tema, chegou a ser recusado por quase sessenta editoras antes de ser publicado.

Advertisement

Tobias e o Anjo – Susanna Tamaro (sugestão de leitura)

Susanna Tamaro
Tobias e o Anjo
Lisboa, Editorial Presença

Marta é uma menina de oito anos que vive só… quer dizer, vive no quarto andar de um grande prédio, nuns subúrbios tristonhos com prédios todos iguais.
Também tem uma televisão, um papá e uma mamã. Só que qualquer destes três nunca parece disposto a escutá-la e muito menos a conversar com ela. Não tem irmãos, mas por sorte o avô vem sempre visitá-la e ensina-lhe muitas coisas.
Por exemplo, que existem por aí portas secretas que as pessoas não vêem porque andam sempre cheias de preocupações.
Marta imagina que há palavras-chave para abrir essas portas e encontrar os mundos maravilhosos de que fala o avô. Porém, para achar essas portas e descobrir as palavras, Marta tem de encontrar o seu próprio caminho…
Tudo começou naquele dia em que o avô não apareceu!

Tobias e o Anjo

Excerto

A voz das coisas

Quantas línguas existem no mundo?», perguntava-se Marta, naquela noite, a sós na cama. Há as línguas que as pessoas falam: francês, alemão, espanhol, chinês, italiano. Para indicar a mesma coisa, usa-se uma palavra diferente em cada país. Mas uma mesa continua a ser uma mesa, um relógio um relógio, uma maçã uma maçã. Apenas varia o som para chamar essas coisas.

Os cães também têm a sua língua. Quase todas as noites, Marta ouvia os seus uivos subir da rua e das varandas do prédio. O do segundo andar, por exemplo, zangava-se por tudo e por nada: bastava o eco de um latido para ele se atirar contra as grades, a rosnar. Era evidente que os cães se compreendiam entre si. Talvez até se compreendessem entre cães de países diferentes. Um cão francês podia conversar com um cão russo e um russo com um esquimó. Não precisavam de estudar línguas para falar uns com os outros.

O mesmo se passava entre gatos, pardais, condores, abutres, hienas, elefantes e láparos. Talvez que até as aranhas e os escorpiões estivessem em condições de se compreender.

Um dia, tinha visto na televisão um documentário sobre este assunto. Havia um aranho que estava apaixonado por uma aranha. A aranha era tão gorda e peluda que dava a impressão de ter uma peruca; dormitava no centro da teia e ele devia ir ter com ela. Às aranhas — explicava uma voz —, a boca só serve para comerem, não têm língua nem garganta, por isso «ele» não podia chamar a sua «ela». A única maneira de se fazer notar era transformar-se numa espécie de músico: com as patas anteriores, dedilhava os fios da teia como se fossem cordas de harpa. Pling plong, meu amor, pling plong, espera, aí vou eu.

Para os aranhos apaixonados, é muito importante ter o ritmo da música no sangue. Devem fazer pling plong e não, por exemplo, pling pling. De facto, basta um pequeníssimo sinal de vibração diferente para que a bela ara­nha, em vez de se voltar para o seu pretendente com um sorriso, lhe salte para cima e o devore num instante. Sim, porque pling pling, para uma aranha esfaimada, quer dizer precisamente isto: — Sou uma mosca e caí na armadilha, come-me, depressa.

No entanto, à parte estes tristes acidentes de percurso, também as aranhas conseguiam, de uma maneira ou de outra, comunicar entre si.

Uma vez, em pleno Inverno, Marta foi passear com o avô para um extenso parque, perto do seu bairro. A relva estava queimada pela geada e as árvores já tinham perdido as folhas. Soprava uma forte nortada e não havia ninguém por ali. A certa altura, o avô parou no meio de um pequeno grupo de carvalhos novos.

— Notas alguma coisa de estranho? — perguntou.

— Não. Ah, sim — respondeu ela —, conservam as folhas. Estão todas secas, mas ainda lá estão.

— Isso mesmo. Os carvalhos nunca deixam cair todas as folhas no Inverno. E sabes porquê?

Marta abanou a cabeça.

— Escuta — disse o avô.

Naquele momento, uma rajada de vento sacudiu os ramos, e dos ramos desceu um tinido seco e leve. Assemelhava-se muito ao barulho da cauda da cobra-cascavel, que tinha visto na TV.

— Ouviste? É a voz do carvalho, no Inverno. Se não fossem as folhas secas, seria muito fácil confundi-lo com um castanheiro-da-índia ou com um ácer. Cada árvore tem a sua própria voz. Só tens que aprender a escutá-la.

O Sol estava a pôr-se e eles encaminharam-se para a saída do parque. Devido ao frio, Marta já não sentia o nariz nem os pés: só a mão que dava ao avô se mantinha quente. De vez em quando, uma lata rolava diante deles, ao mesmo tempo que uns sacos de plástico rodopiavam no ar como medusas tontas.

— Avô! — gritou Marta. — As latas também falam?

— Sim, as latas e os sacos de plástico.

— E as flores?

— As flores também. As flores, as pedrinhas, as conchas…

— E os motores dos automóveis?

— Ah, esses vociferam. Já para não falar dos autocarros…

— E a roupa a secar?

— Também, Marta, também. Se ouvires os lençóis e as peúgas estendidas, podes aprender um poema completo…

Naquele dia, assim que voltaram para casa, Marta abraçou-se a uma perna do avô.

— Avô, mas tu sabes tudo!

O avô fez-lhe uma festa na cabeça.

— Talvez, meu pintainho, talvez.

Permaneceram assim algum tempo, em silêncio, enquanto o relógio de pêndulo da cozinha batia as cinco horas.

Agora, o relógio batia as três. Marta tinha experimentado contar carneiros, mas de nada lhe serviu. Em vez de carneiros prestes a saltar o tapume, via o avô. Apoiava os cotovelos à paliçada e sorria-lhe com doçura. Vestia o habitual casacão bege com gola de pele sintética e tinha os olhos um pouco tristes. Não trazia cachecol. O cachecol, tinha-o Marta nas mãos. O avô tinha-se esquecido dele da última vez que viera visitá-la.

Quanto tempo passara entretanto? Seis dias? Dez? Tinha tentado telefonar-lhe, mas ninguém respondia de casa dele. Não viera na terça-feira, nem na quinta. Eram os seus dias fixos. Semana sim, semana não, vinha também ao domingo.

Marta tinha pegado no cachecol e enrolara-o ao seu urso, como se fosse um sobretudo. Conservava o cheiro do avô. Cheiro a espuma de barbear, a autocarro e a fritos.

Pela janela aberta, entrava o uivo do cão do segundo andar. Ao uivo sobrepôs-se o alarme de um automóvel. Marta mudou de posição: por mais voltas que desse, a cama parecia-lhe feita de alfinetes.

Quatro horas, e o papá sem voltar. A mamã dormia com máscaras nos olhos. A senhora do andar de cima tinha posto a roupa a lavar. Levantou-se uma aragem e os lençóis inflavam como velas de um galeão. Flap flap strr, flap flap schee, sche. A voz do vento, a voz das ondas. Para onde ia partir aquele navio?

O avô tinha razão, cada coisa possui a sua própria voz. Mas também havia coisas sem voz, o futuro, por exemplo, ou as perguntas sem resposta. Havia tantas na sua cabeça! Ao adormecer, Marta viu-as: pareciam luzes a derramar-se numa margem distante. O galeão velejava em direcção oposta, rumo à grande noite silente de um mar sem faróis, de um céu sem estrelas.

Água – Bapsi Sidhwa (sugestão de leitura)

Bapsi Sidhwa
Água
Lisboa, Editorial Presença

Chuya, uma mulher-menina de oito anos, fica viúva de um homem de quarenta e seis, dois anos após o seu casamento e, por decisão da sogra, é deixada numa casa de viúvas, onde é obrigada a viver uma vida de penitência e de infelicidade. Essa casa é liderada por Madhumati, uma mulher sem escrúpulos que obriga as mais jovens a prostituir-se em troca de marijuana.
Este livro conta uma história passada em 1938, na Índia colonial, em pleno movimento de emancipação da mulher, liderado por Mahatma Gandhi.

 Água

Excerto

Madhumati alcançou a varanda a transpirar, respirando com dificuldade. Entrou pela porta das escadas e chamou Kalyani.

Kalyani apareceu à porta, a tremer de medo e deu de caras com Madhumati. O longo cabelo escuro caía-lhe húmido pelas costas.

Madhumati falou-lhe num tom baixo e enfurecido:

— A Chuyia diz que te vais casar…

Kalyani anuiu.

— Endoideceste? Ninguém se casará com uma viúva.

Kalyani falou com uma certeza serena.

— Ele vai fazê-lo..

Madhumati emitiu um sopro de desdém.

— Desavergonhada! Vais afundar-te e vais afundar-nos a todas! Seremos amaldiçoadas. Temos de viver em pureza, para morrer em pureza — explicou-lhe Madhumati, sem ter noção da hipocrisia de pregar tal coisa a uma jovem que era obrigada a prostituir-se contra a sua vontade.

Kalyani sofrera tempo demais, vivendo aquela vida dupla e agora, estava disposta a enfrentar Madhumati.

— Por que razão me enviaste então para a outra margem do rio? — perguntou, calmamente.

Madhumati sentia-se ultrajada por Kalyani contestar as suas atitudes.

— É pela nossa sobrevivência! É a nossa única forma de sobrevivência e ninguém tem o direito de a questionar! Nem mesmo Deus! — proferiu irada.

Antes que Kalyani se apercebesse do que lhe estava a acontecer, Madhumati agarrou-a pelos cabelos e arrastou-a até ao barsati que servia de arrecadação junto ao seu quarto. Retirando uma tesoura do interior do sari, cortou-lhe uma mecha de cabelo num movimento surpreendentemente rápido. Kalyam caiu de joelhos aturdida, demasiado entorpecida para resistir. Madhumati prosseguiu retalhando-lhe o resto do cabelo até lhe deixar apenas uns escassos tufos. Kalyani permaneceu imóvel, como um pássaro jovem caído do ninho.

Tendo terminado a sua missão destrutiva, Madhumati fechou a porta à rapariga encolhida de medo girando a chave na imensa fechadura. Prendeu a chave ao sari e voltou a sua atenção para os rostos atentos das viúvas reunidas no pátio lá em baixo.

Madhumati manteve-se na balaustrada de olhar alucinado, com as órbitas vermelhas e inflamadas anormalmente dilatadas.

— Teríamos ardido no inferno por causa dela. Salvei-vos a todas! — disse, justificando a brutalidade da sua atitude. — Vamos ver se a puta agora se casa.

As viúvas estavam ofegantes e sem fala, Shakuntala voltou-se para Chuyia que perguntou:

É verdade?

Shakuntala repreendeu-a.

— Fala baixo!

E dirigiram-se ambas, abatidas, até ao quarto de Shakuntala, deixando as outras viúvas a olhar estupidamente para a figura gigantesca de Madhumati descendo as escadas. Chuyia agarrou-lhe no sari.

Didi, vais deixar Kalyani sair, não vais? — implorou.

— A simples ideia de voltar a casar já é um pecado — replicou Shakuntala com os pensamentos em tumulto. O seu amor por Kalya opunha-se às suas profundas crenças religiosas.

— Porquê? — perguntou Chuyia, inocentemente.

— Pergunta a Deus — retorquiu Shakuntala asperamente, impaciente consigo mesma por duvidar daquilo que acreditava estar escrito nas escrituras.

Profundamente magoada, Chuyia desapareceu a correr sem uma palavra.

Os ombros de Shakuntala cederam ao cansaço. Não conseguia reunir energia suficiente para a chamar e lhe explicar que estava zangada com ela.

Pouco tempo depois, sentou-se na sua mesinha, folheando alguns textos religiosos, tentando encontrar passagens que mencionasse as leis que governavam a conduta e o estatuto das viúvas. De acordo com o Manusmriti, o texto sânscrito mais importante nas tradições ortodoxas, a cabeça de uma viúva é rapada, os seus ornamente removidos e ela deve viver num luto perpétuo. Deve respeitar jejum, não comer coisas «picantes» para não estimular a sua energia sexual, evitar ocasiões de bom agoiro por ser considerada mau agoiro (por ter provocado a morte do marido), permanecer solteira, devotada e leal à memória do marido.

O Vriddha Hirata posterior era mais explícito. Devia abster-se de mastigar noz de bétele, usar perfume, flores, ornamentos e poupas coloridas, retirar comida de um recipiente de bronze, tomar duas refeições por dia e aplicar colírio nos olhos. Só podia vestir uma veste branca, dominar os seus sentidos e a ira, e dormir no chão.

Com os pensamentos num turbilhão, o olhar de Shakuntala projectou-se através da janela. As viúvas escandalizadas estavam novamente reunidas em redor de Madhumati. Esta estava sentada no seu takth, com o couro cabeludo a transpirar, de rosto vermelho do esforço por ter subido e descido as escadas até ao barsati. Kunti estava inclinada sobre ela, limpando solicitamente a transpiração do pescoço e do ombro exposto, e Snehlata estava agachada junto ao takth, abanando lentamente a folha de palmeira que servia de leque. A força da monção estava a desvanecer-se, mas a atmosfera ainda estava muito húmida.

O que tinha acabado de ler apenas afirmava aquilo que ela conhecia e aceitava – não encontrou em parte alguma nada que pudesse redimir Kalyani. Voltar a casar condenaria a alma do marido ao inferno e amaldiçoaria os karmas de toda a sua família. Apesar da sua aceitação incondicional do Dharma Shastras que advoga que a viuvez é um castigo por uma existência pecaminosa no passado, a situação difícil de Kalyani veio abalar a sua fé na lei.

Fechou a cortina e afastou-se da janela. Abriu a esteira junto da janela e deitou-se, era algo que nunca fazia àquela hora do dia. As memórias da sua vida de antigamente, que reprimira ao longo dos anos como uma parte terminada da sua vida porque era pecado recordar, afloraram-lhe a consciência, deixando inundar-se por elas.

O nascimento de Shakuntala tinha sido uma surpresa para os pais na sua meia-idade avançada. Já tinham quatro filhos robustos e a filha foi recebida como a Deusa Lakshmi, precursora da prosperidade e da felicidade. A sua família era proprietária de muitas terras e o pai era uma figura respeitada na aldeia. Os irmãos idolatravam-na, envolvendo-a em todo o tipo de actividades que geralmente as raparigas na aldeia não tinham permissão para fazer. Ensinaram-lhe a ler e ela conseguia recitar as multiplicações até 20. Tinha uma mente aguçada e rapidamente começou a ler os livros que eles traziam para casa.

Os pais estavam decididos a arranjar-lhe um bom casamento numa família que a tratasse bem e que lhe permitisse fazer as coisas às quais estava habituada. Shakuntala permaneceu junto dos pais muito mais tempo do que aquilo que muitas famílias teriam considerado prudente. Quando os pais começavam a desesperar por pensarem nunca iriam conseguir encontrar um marido apropriado antes de a filha atingir a puberdade, ouviram falar de um jovem viúvo numa aldeia vizinha que estava pronto a casar outra vez. Tal como todas as jovens na aldeia, Shakuntala estava ansiosa por se casar e, aos 14 anos, a sua cabeça estava repleta de fantasias românticas.

Os horóscopos deles coincidiam e o casamento rapidamente foi acertado. Como de costume, a família da noiva assumiu todas as despesas e o pai presenteou o noivo com um belo dote que excedeu as expectativas da família.

Shakuntala fechou os olhos e, tal como Bua, visualizou o banquete de casamento: grandes pratos atestados de puris fritos e inchados, legumes condimentados, montinhos de arroz de açafrão aromáticos e toda a espécie de picles, sumos de fruta e seiva fresca da palmeira. Tabuleiros de doce de amêndoa e caju recortado em forma de losango e thalis de aço apinhados de laddoos reluzentes, cobertos com uma folha prateada que se evaporava na língua. Tal como Bua, podia sentir o sabor dos laddoos e sentir a água a crescer na boca. Sorriu, fazendo uma pequena prece de agradecimento pelo facto de Bua ter comido o seu laddoo antes de morrer.

Que coisa mais mesquinha de se negar a uma idosa, pensou Shakuntala, e depois a sua mente centrou-se numa série de mesquinharias que eram negadas às viúvas para que estas conservassem a sua pureza.

Que Deus a preservasse da percepção distorcida que se tinha da pureza, pensou. Mas se não tivesse sido a caridade dos irmãos, ela teria sido obrigada a prostituir-se, tal como Kalyani.

Os pensamentos de Shakuntala regressaram ao passado. O seu noivo era jovem, tinha apenas mais 13 anos do que ela. Embora tivesse sofrido muito com a morte da primeira mulher, quando passou um ano, ele descobriu que o seu coração não se tinha endurecido com a perda e estava pronto a abrir-se a Shakuntala.

No primeiro ano de casamento, o marido mostrou-se bastante paciente, e ela desabrochou de menina para uma bela mulher. Com o passar dos anos, foram-se apaixonando profundamente. Na esperança de que Shakuntala fosse o instrumento através do qual o filho pagaria a dívida aos antepassados reproduzindo filhos, a sogra tratava-a com benevolência e carinho. No entanto, à medida que os anos iam passando, a sogra começou a culpá-la por não ser capaz de gerar filhos, tornando-se cada vez mais detestável para a sua nora estéril. Apesar de a sua relação ser muito apaixonada e ardente, Shakuntala ficava decepcionada todos os meses perante a deprimente evidência da sua fertilidade falhada, ansiando desesperadamente por um filho. Ela tinha apenas 30 anos quando o marido começou a cuspir sangue, definhando diante dos seus olhos. Perto do fim, nem Shakuntala nem a sogra saíam da sua cabeceira. Nos curtos períodos de lucidez, entre momentos de delírio, o marido pegava-lhe na mão e apertava-a contra a sua cara: os seus olhos imploravam à mãe que tomasse conta dela quando ele fosse embora. O rosto da mãe ia-se endurecendo cada vez mais.

A boa sorte, que até então lhe regera a vida como uma espécie de talismã mágico, chegou ao fim com a morte do marido. Foi obrigada a ficar com a família do marido, com a sogra amargurada e rancorosa e, durante o ano que permaneceu junto deles, viveu num inferno terreno. No princípio, Shakuntala pensou que morreria de tristeza e não sabia como poderia viver sem o amor e a protecção do marido. A dor era ainda maior graças ao tratamento doentio que recebia dos sogros. Passara da condição de adorada à de maltratada e era olhada como uma coisa imunda. A cabeça foi rapada de modo a retirar o pecado e a poluição que havia no seu cabelo e para a marcar como um ser assexual que uma viúva tinha de ser. Ainda conseguia vislumbrar a fúria nos olhos da sogra quando esta lhe partiu as pulseiras de vidro e lhe arrancou o mangal-sutra do pescoço, iniciando os rituais de passagem para a viuvez. Viu-se despojada de todas as suas jóias e bens e só podia cobrir o corpo com um tecido branco. No fundo, ia morrendo de fome aos poucos, já que estava limitada a uma refeição por dia – uma refeição frugal de arroz sem condimentos e daals para purificar o seu corpo da luxúria. Tinha de dormir no chão. A sua única função útil – a de esposa e reprodutora de filhos desaparecera para sempre. Não só era responsabilizada pela morte do marido, como também era considerada uma ameaça para a família dele e, sobretudo, ao espírito do marido morto, pela sua condição feminina vital e potencial sexualidade.

Sentia que a vigiavam constantemente, com medo de que cometesse algum pecado que lhes trouxesse maldições e enviasse o marido para o inferno.

Um ano depois, Shakuntala soube que tinha de partir. Os seus irmãos trataram de tudo para que ela fosse para o ashram, em Rawalpur, e para que recebesse regularmente um pequeno montante. Os seus pais já tinham falecido e ela abençoou os irmãos nas suas orações. O dinheiro que recebia e, o facto de poder ler e escrever com facilidade, proporcionaram-lhe um estatuto independente no ashram. A família do marido ficou contente por se ver livre dela e não tivera qualquer contacto com eles durante 12 anos. Shakuntala tinha encontrado um lar no ashram e jamais o poderia abandonar.

Cartas de uma mãe – Catherine Dunne (sugestão de leitura)

Catherine Dunne
Cartas de uma mãe
Lisboa, Editorial Presença

Um intenso conflito familiar, dominado pelos inevitáveis jogos de poder que tantas vezes condicionam as relações afectivas mais profundas.
Alice e Beth, mãe e filha, protagonizam uma ligação ensombrada pelo silêncio ruidoso e agreste que há muito se instalou entre alas, e que ambas desejam, intimamente quebrar. Cabe a Alice, condenada por uma série de acidentes vasculares cerebrais e ciente de poder perder a qualquer momento a lucidez, de dar o primeiro passo. Quando o agravamento da doença deixa Alice em come, Beth retorna à casa materna para se reconciliar com o seu passado, com a mãe, consigo própria.

 

Cartas de uma mãe

Excerto

Beth espreitava pela janela do quarto, cheia de ansiedade. Laura estava atrasada. Insistira que apanharia um táxi no aeroporto, mas agora Beth estava preocupada. Não devia ter dado ouvidos à filha, devia ter ido buscá-la. Olhou para o relógio. Nove e vinte. A missa fúnebre era daí a quarenta minutos.

Ela e James tinham passado a maior parte da noite acordados, dormindo apenas um pouco entre as seis e as oito. Tinham trocado recordações de bicicletas e baloiços, de gelados e copos de limonada com gasosa. Lembrado as suas tarefas a descascar ervilhas e a colher framboesas na agradável sombra do jardim murado. Tinham também partilhado algumas das várias Alices que cada um conhecera: a dona de casa eficiente, de olhar sempre atento a tarefas inacabadas e língua afiada quando as encontrava; a mãe trabalhadora, que corria de um emprego para o outro, mas insistia em ver todos os trabalhos de casa deles, todos os dias; a mãe orgulhosa, para quem nada era mais importante do que boas notas na escola. E, depois, a avó babada, cega aos defeitos dos netos. Uma geração parecia ter bastado para suavizar a exigência de Alice, para limar as arestas das suas palavras. E tinham rido muito, com grande surpresa de Beth. Nunca pensara que um dia de funeral pudesse ser altura para risos. A conversa encorajara-os, preparara-os para enfrentarem o troço final, que Beth agora receava. Precisava de ter Laura ao seu lado na missa, queria toda a família à sua volta, até mesmo Olive. Aquele era um dia de união, não de divisões.

Chovia, naturalmente. A carrinha fúnebre devia vir buscá-los daí a um quarto de hora. Onde estava Laura? Beth preparava-se para telefonar para o aeroporto quando um táxi irrompeu pelo portão e travou: ruidosamente no caminho de gravilha. Finalmente!

Precipitou-se para a porta da frente, pronta a abraçar a filha. Ficou surpreendida ao ver dois vultos no alpendre. Abriu a porta, intrigada, sem saber o que pensar.

Laura lá estava, lavada em lágrimas mal viu a mãe. E ao seu lado, envolvendo os ombros da filha com um braço protector, estava Tony.

— Espero que não fosse preciso convite! — disse ele.

*

Beth fechou a porta do quarto atrás de si. Olhou para a rua iluminada por trás dos muros baixos do jardim da frente. Chovera todo o dia, implacavelmente. Mas, de certo modo, ela preferia assim: havia algo de insensível na ideia de o sol brilhar no dia do funeral de Alice. Correu os cortinados, tapando a claridade do candeeiro de rua que confortara tantas longas noites dos Invernos da sua infância.

Sentia fortemente a presença de Alice à sua volta. Não acreditava em fantasmas, o que sentia naquele quarto não era uma qualquer arrepiante inquietação do espírito, mas sim o calor luminoso do afecto e da aceitação. Afinal, fora ali que a mãe escrevera as suas cartas, ali que Alice tacteara em busca de algo para além dos anos de amargura e desconfiança. Beth sentou-se à mesma escrivaninha, querendo concluir a conversa que as cartas da mãe tinham começado. Lembrou-se de quando, em criança, atirava seixos para o laguinho do jardim das traseiras e ficava a ver como os círculos se iam alargando na superfície da água, até chegarem às bordas. Sempre gostara de visualizar o mesmo processo ao contrário: imaginava os círculos a ficarem cada vez mais pequenos, até alcançarem a imobilidade no centro da perturbação. Sentia que ela e Alice tinham acabado de ultrapassar os círculos exteriores com êxito. Agora, queria aproximar-se do centro, concluir o que quer que fosse que continuava a puxar por ela, a reclamar a sua atenção. Partiria em breve, muito em breve, e certas coisas não podiam esperar, coisas a que queria dedicar-se sozinha.

Mandara Laura sair com Gemma, aliviada por ver que os rostos muito pálidos e abatidos se tinham distendido logo após o fim das formalidades fúnebres. Tinham começado as duas a rir de tudo e de nada, provocando o riso uma na outra, reagindo à sua maneira à terrível pressão dos últimos dias. James e Tony tinham compreendido rapidamente o estado de espírito de Beth e saído juntos para uma cerveja. Beth ficara por sua conta.

Pôs-se em pé, afastou-se da escrivaninha e abriu as portas do guarda-fatos, tentando ver tudo como Alice devia ter visto. Era como se a sua percepção se tivesse alterado, como se estivesse a ver pelos olhos de outra pessoa. Na prateleira de cima, do lado direito, repousavam meia dúzia de álbuns de fotografias antiquados. Pegou num deles e percorreu-o rapidamente com a vista. Rostos, nomes, lugares que nada significavam para ela, até que, de repente, deparou com uma mulher jovem que só podia ser Alice. Observou a fotografia mais de perto. Um grupo de raparigas, todas enluvadas e de chapéu na cabeça, sorria-lhe de 1945. Levaria aqueles álbuns consigo, se James não se importasse. Gostaria de localizar Arthur Boyd e tinha um forte pressentimento de que seria ali que poderia encontrá-lo. E queria dedicar-se a tudo isso com vagar.

Depois, havia o famoso cesto de costura, sozinho na prateleira de baixo. Beth ajoelhou-se e abriu-o. A tampa de verga envernizada rangeu, como sempre fizera. Muito bem arrumados em pequenos compartimentos viam-se botões de camisa, fechos, colchetes antiquados, alfinetes de segurança. Beth sorriu: Alice guardava sempre tudo, até os pequenos alfinetes de segurança que prendiam os rótulos da lavandaria. Por baixo do primeiro tabuleiro encontravam-se pedaços de pano grosso, giz de alfaiate, uma fita métrica. Também levaria aquilo. Nunca fora grande coisa com a agulha, nada que se assemelhasse a Alice, mas gostava da sensação de proximidade que aqueles objectos estranhamente íntimos lhe proporcionavam. Embalá-los-ia com as coisas de última hora, na manhã seguinte.

Esticou-se para chegar à prateleira de cima e encontrou os dois molhos de fotografias a que Alice se referira na última carta. E ali, exactamente onde ela dissera, estava a fotografia deles quatro, tirada por um transeunte no Phoenix Park, naquele dia mágico de Maio de 1957. Uma rapariguinha, com os olhos franzidos por causa da luz, sorria para a câmara. James, de oito anos, dava-lhe a mão. Ladeavam-nos os pais, Alice e Jack, com um aspecto estranhamente formal. Jack usava camisa e gravata sob a sua camisola nova e Alice vestia um vestido e casaco — dificilmente o que se podia considerar roupa própria para um piquenique. Beth tinha quase a certeza de se lembrar do vestido que a mãe trazia. Tinha um aspecto estranhamente familiar. Até que percebeu: lembrava-se sim, aquele vestido fora transformado num casaco de Inverno para ela, no ano em que fora para a escola primária. Beth sentiu que a fotografia continha uma censura. Como teriam todos aprendido a ser tão perdulários, no espaço de uma única geração? Sorriu, contra vontade. Até estava a começar a pensar como Alice. Guardou o seu molho de fotografias no cesto de costura. Vê-las-ia mais tarde, em casa, com toda a calma. Já não havia pressa.

Percorreu a prateleira de cima mais uma vez, com a mão em arco, e os seus dedos embateram em qualquer coisa mesmo no fim do movimento, num objecto que fora empurrado para trás, encostado ao fundo do armário. Alice devia ter tido de se empoleirar numa cadeira para fazer aquilo. Beth esticou-se toda, nas pontas dos pés, e conseguiu finalmente agarrar o canto de uma caixa de cartão com a ponta dos dedos. Puxou e a caixa deslizou facilmente para a borda da prateleira.

Era grande e bastante pesada. Pegou nela e transportou-a para a escrivaninha. Fora invadida por uma aguda sensação de nervosismo. Que outras surpresas teria Alice preparado para ela? Quanto auto-conhecimento teria uma filha voluntariosa de adquirir numa única semana? Levantou cautelosamente a tampa. Lá dentro, embrulhado em papel de seda, como Alice tinha prometido, repousava Dolph. Riu alto, aliviada, e afastou as finas camadas de papel, nas quais se viam estranhas marcas pretas. Olhou mais de perto: Alice usara velhos moldes de costureiro para embalar o ursinho. Beth ouvia nitidamente as palavras, em maiúsculas, como Alice as pronunciaria: O QUE NÃO DESPERDIÇARES HOJE, NÃO TE FALTARÁ AMANHÃ. Mas elas tinham desperdiçado, não tinham? Pelo menos treze anos, que só agora tinham começado a recuperar.

Ao lado do ursinho estavam três pequenos estojos de jóias. Beth abriu primeiro o estojo azul-noite. Colado à tampa via-se o nome «Gemma» e sobre o forro de veludo repousavam um medalhão e uma corrente de ouro, perfeitamente polidos. Pô-lo de lado. O estojo seguinte era cor de vinho e a dobradiça lassa não segurava bem a tampa no lugar. Continha um pequeno solitário, com «Laura» escrito em maiúsculas num cartãozinho encaixado na tampa. Beth reconheceu o anel de Margaret. Era a escolha perfeita para Laura, cujas mãos deviam ser tão delicadas como as da bisavó. O último estojo era maior e mais achatado do que os outros. Continha uma pulseira de ouro, delicadamente gravada. Também ali havia um envelope dobrado, com a palavra «James» escrita em grandes letras. Não havia nada para Olive. Beth ficou surpreendida. Não precisava de ler o conteúdo daquele envelope para saber que Alice deixara essa decisão a James. Astuta, a sua velha mãe! Era reconfortante saber que, por muito devastadora que tivesse sido a fase final da sua doença, ela conseguira manter toda a sua lucidez e capacidade de julgamento até ao último minuto. Havia que dar graças por isso. Um tal atar de todas as pontas soltas era justamente o que Beth desejava para si mesma.

O último pacote estava embrulhado em papel pardo. Abriu-o cuidadosamente, cheia de curiosidade. Lá dentro estavam três livros, muito usados. Uma colectânea dos Biggles, pertencente a James (amanhã havia de o arreliar por causa daquelas leituras politicamente incorrectas!), O Burrinho do Cortador de Relva, de Patrícia Lynch, que ela lera e relera na sua infância até quase o saber de cor, e um exemplar muito antigo e muito gasto de O Patinho Feio. Onde teria Alice encontrado aquilo?

Os seus olhos encheram-se de lágrimas ao folhear as páginas tão conhecidas. A capa estava a desfazer-se e, quando virou as últimas folhas, algo deslizou para o tampo da escrivaninha. Outro envelope, com o seu nome escrito em letras finas. O coração bateu-lhe dolorosamente. Pousou o livro em cima da cama e abriu o envelope. Porque estaria ali? Porque não estava junto das outras cartas? Por um instante, Beth encheu-se de maus pressentimentos: e se não passasse de um amontoado de palavras sem nexo? E se Alice tivesse escrito aquilo quando já não estava em si? Retendo o fôlego, desdobrou cuidadosamente as folhas de papel. Foi inundada por uma imensa sensação de alívio ao ver a caligrafia cuidada da mãe. Respirou outra vez. Era uma carta a sério. A data chocou-a: apenas um dia antes do primeiro ataque, que assinalara o princípio daquele fim que a privara de tudo o que tinha importância para ela.

«Woodvale

6 de Setembro de 1999

Minha muito querida Elizabeth,

Acabei de chegar do almoço de domingo em casa de James e Olive. Foi um dia maravilhoso. Eoin e Shea estavam cá de visita, com as suas namoradas, e seguem para o oeste da Irlanda amanhã de manhã. Devo confessar que fiquei muito admirada com eles. Shea tem um sotaque americano muito cerrado. Ao fim de um ano? Será que só eu é que acho isso um disparate pegado? É tão parecido com a mãe… Seja como for, ambos parecem estar a sair-se muito bem, a ganhar «pipas de massa», como Shea diz. Eoin é mais calado e cada vez se parece mais com James. Disse-me: «A bolsa é um jogo de gente nova, avó; a pressão é terrível. Daqui a cinco anos, no máximo, quero ver-me de lá para fora.» As namoradas deles eram razoavelmente simpáticas, mas não as achei nada de especial. Longas cabeleiras louras e unhas pintadas. E não paravam de fumar! Julgava que os americanos eram demasiado instruídos em termos de saúde para fumar. Além disso, mal comeram e Olive tinha tido um trabalhão com aquele jantar. Talvez se sentissem um pouco deslocadas, já que estávamos lá todos, até o Keith, que conseguiu entrar para o curso que queria, na universidade, e a Gemma, que regressou há dez dias de um emprego de Verão em Londres.

Enquanto lá estava, com eles todos, fiquei impressionada ao ver como os tempos mudaram. Claro que já sabia disso, mas hoje tive a sensação de que aquele almoço podia estar a realizar-se noutro tempo e noutro lugar. Sentia-me muito desligada de todos, como se já não houvesse lugar para mim na minha própria vida. Parece-me que Olive e James conseguem deixar os filhos irem e virem de uma forma que eu jamais fui capaz. Será porque sempre se tiveram um ao outro, ou porque são melhores pais do que eu? Não consigo compreender como me enganei tanto. Passo o tempo a lembrar-me de ti e James na primeira infância, no máximo até aos doze anos. Depois disso, é como se houvesse um grande fosso.

Mal James me trouxe a casa, vim a correr para o teu quarto, porque queria procurar fotografias, diplomas, cartas — qualquer coisa dos tempos em que vocês, e especialmente tu, eram mais velhos. Não tenho nada. No entanto, sei que te saíste bem na escola, que sempre foste boa aluna. Tiveste boas classificações no Ciclo Liceal, e notas ainda melhores no Complementar. Mas não fiquei com nenhuma recordação desses êxitos. Levaste os diplomas contigo?

Hoje, ao ver a Gemma, lembrei-me dolorosamente do teu próprio Verão, no ano em que concluíste a escola. Estavas resolvida a partir, a voar com as tuas próprias asas em Londres. Mas eu vi isso de forma completamente diferente. Fiquei magoada por quereres afastar-te de mim e, diga-se em abono da verdade, com medo de ficar só. James tinha vinte e três anos, nessa altura, estava quase a começar o mestrado e eu tinha muito orgulho nele. Já andava com a Olive e eu sabia que era a sério. Quando acabaste os teus exames, fiquei satisfeitíssima: queria para ti o mesmo que quisera para James. Aprendera à minha custa quão importante é uma pessoa ser capaz de ganhar a sua vida, independentemente de ser homem ou mulher.

Mas, em vez da universidade, vi com horror como querias desaparecer numa grande cidade, com um rapaz que mal conhecias. Nunca me ocorrera que ele pudesse fazer parte de qualquer plano teu. Na minha imaginação, via-te na mesma situação em que já vira tantas outras antes de ti: grávida, o que seria o fim de quaisquer ambições que pudesses ter. Não queria isso para ti; queria que tivesses uma vida melhor, mais fácil e com mais conforto do que a vida de uma mãe solteira.

Porque não consegui dizer-te isso? Será que não falávamos havia tanto tempo que se tornara impossível dizer alguma coisa a que a outra prestasse atenção? Lamento isso, Elizabeth. Nem consigo dizer-te quanto lamento. Tu eras a jovem, eu era a adulta e era a mim que cabia a responsabilidade de proceder melhor. Se o tivesse feito, provavelmente não teríamos perdido quase treze anos. Treze anos! Parece incrível que nos tenhamos castigado uma à outra durante tanto tempo. Sei que vinhas a casa de vez em quando e tínhamos um acordo tácito em não mencionar aquilo que não podia ser mencionado. Essas visitas eram difíceis para ambas, não eram? Mas adaptámo-nos mais ou menos a essa rotina. Ficarei sempre grata a James por ter sido quem manteve um verdadeiro contacto contigo. Disse-lhe isso, nas minhas cartas. Ele fez com que viesses a todos os baptizados, em 76, 80 e 82, e eu sei que ele e Olive têm imensas fotografias dos seus bebés com a tia babada. Hoje pedi-lhas e ele prometeu trazer-mas no fim-de-semana. Tenho muita vontade de as ver, para preencher algumas dessas lacunas por mim mesma. Sinto uma grande tristeza por todo esse desperdício e só posso culpar-me a mim própria por isso.

O verdadeiro raio de sol chegou em 85, quando casaste com o Tony e tiveste a Laura, nesse mesmo ano. Gostei muito do Tony, achava que ele era bom para ti. Aliás, continuo a pensar o mesmo. E o teu casamento foi encantador, tão íntimo, só connosco, os dez. Lembras-te de quando me telefonaste a dizer que estavas grávida? Fiquei felicíssima — e comecei a sentir que afinal ainda tínhamos tempo, que o teu bebé nos aproximaria de novo. E aproximou, não foi? Tinha tanto gosto nas tuas visitas! A Laura era uma rapariguinha tão encantadora, fazia-me lembrar tanto de quando tu eras pequena! Senti que tínhamos finalmente uma verdadeira ligação e queria tratar esse laço com muito cuidado, não fazer nada que pudesse enfraquecê-lo. O Natal e o Verão passaram a ser épocas que eu esperava com prazer e sentia que podia mostrar-te, através da Laura, o quanto sempre te amara. Ao longo dos anos, fui tendo a sensação de que já não precisávamos de falar sobre aquilo que nos afastara. Só agora, pressentindo que talvez nunca mais te veja, sou obrigada a reconhecer quão enganada estava.

Sei que, quando leres estas cartas, é muito pouco provável que eu ainda consiga falar contigo. Talvez nem sequer te reconheça. Mas isso agora já não tem tanta importância, porque sinto que estás a ouvir-me, sinto que me perdoarás.

Com muito amor da tua mãe,

Alice».

Beth dobrou as folhas e repô-las no envelope. Meteu a carta entre as últimas páginas do Patinho Feio e enfiou o livro debaixo da almofada. Pegou nas caixas de jóias e no livro de James e levou-os para baixo, para a sala. Deixou-os na prateleira ao lado da lareira, onde tinha a certeza de que ele os encontraria. Falaria com ele de manhã.

De momento, tinha a sensação de estar a nadar em câmara lenta, deslocando-se com dificuldade por águas pesadas. A última carta de Alice deixara-a demasiado calma, quase vazia de emoções. Sabia que os círculos da sua tempestuosa relação se tinham afastado e aproximado de novo, que ela e Alice estavam agora no centro das coisas, tal como o seixo no centro do lago do jardim murado do pai. Em breve regressaria à sua outra vida, e teria tempo para estar sossegada, em silêncio, tempo para procurar e descobrir a filha e a mãe em que estava a tornar-se.

A criança que não queria falar – Torey Hayden (sugestão de leitura)

Torey Hayden
A criança que não queria falar
Lisboa, Editorial Presença

Esta é a história verídica e comovente da relação entre uma professora que ensina crianças com dificuldades mentais e emocionais, e a sua aluna Sheila, de seis anos, abandonada por uma mãe adolescente e que até então apenas conhecera um mundo onde fora severamente maltratada.

Excerto

A criança que não queria falar

CAPÍTULO 5

No dia seguinte, decidi que chegara a altura de Sheila participar. O autocarro que a trazia deixava-a em frente do liceu a dois quarteirões e, portanto, Anton fora buscá-la para a trazer até à nossa escola. Quando chegaram, Sheila despiu o casaco e dirigiu-se logo à sua cadeira.

Aproximei-me e sentei-me, explicando que nesse dia lhe seria pedido que fizesse algumas coisas. Examinei o horário do dia com ela e disse-lhe que esperava que se nos juntasse para todas as actividades como no anterior e que esperava igualmente que resolvesse alguns exercícios de cálculo para mim na hora da matemática. Acrescentei que nas tardes de quarta-feira cozinhávamos sempre e, portanto, queria que ela nos ajudasse a fazer bananas com chocolate. Era suposto que fizesse estas duas coisas.

Observou-me enquanto eu falava, com os olhos reflectindo a mesma desconfiança do dia anterior. Perguntei-lhe se compreendia o que eu desejava. Não respondeu.

Durante a discussão da manhã, Sheila juntou-se-nos quando lhe fiz o pedido com um olhar severo. Sentou-se aos meus pés sem fazer nada. O cálculo foi outra história. Eu planeara fazer umas contas simples. Portanto, tirei os cubos da gaveta e disse-lhe para que se aproximasse. Permaneceu no sítio onde estivera para a discussão da manhã.

— Sheila, chega aqui, por favor — pedi indicando-lhe a cadeira de que ela tanto gostava. — Vá lá.

Ela não se mexeu. Anton começou a preparar-se cautelosamente para a apanhar, se ela se esquivasse ante a minha aproximação. Ela apercebeu-se logo do nosso plano e entrou em pânico. Esta criança tinha a fobia da perseguição. Com um grito selvagem, pôs-se a correr, derrubando os colegas e os seus trabalhos, naquela fuga. Contudo, Anton estava muito perto e apanhou-a quase de imediato. Arranquei-a aos braços dele.

— Quando te agarramos, não é para te fazer mal, querida. Não percebes? — Sentei-me com ela, abraçando-a com força, pois ela debatia-se. Escutava-lhe a respiração ofegante e receosa.

— Calma, gatinha.

— Eh, malta — gritou Peter, encantado. — Agora, temos de portar-nos todos bem. — Aquelas pequenas cabeças inclinaram-se sobre os cadernos e Tyler levantou-se, solícita, para inspeccionar o trabalho de Susannah e Max.

Sheila retomou a gritaria, com o rosto afogueado. Mas não chorava. Agarrando-a no colo, espalhei os cubos. Alinhei-os, cuidadosamente, enquanto esperava que ela se acalmasse. — Ouve. Quero que contes uns cubos.

Ela gritou ainda mais alto.

— Conta três para mim. — Ela continuava a tentar soltar-se.

— Vou ajudar-te — prossegui, dirigindo a mão renitente para os cubos. — Um, dois, três. Agora, tenta tu.

Ela agarrou inesperadamente num cubo e atirou-o, com toda a força, pela sala. Num abrir e fechar de olhos, pegou num outro, que atingiu Tyler na testa. Tyler soltou um gemido.

Imobilizei o braço de Sheila contra ela e levantei-me, arrastando-a para o canto.

— Aqui não fazemos essas coisas. Ninguém se magoa uns aos outros. Quero que te sentes nesta cadeira até acalmares e poderes voltar a trabalhar — disse, ao mesmo tempo que fazia sinal a Anton para que se aproximasse. — Ajuda-a a ficar na cadeira, se for preciso.

Voltei para junto das outras crianças, esfreguei a testa dorida de Tyler e elogiei todos por se terem mantido ocupados. Colocando uma marca no placard para indicar a nossa aproximação do gelado de sexta-feira, instalei-me junto de Freddie e ajudei-o a empilhar os cubos. No canto, o diabo andava à solta. Sheila gritava selvaticamente, dando pontapés na parede com os ténis e balançando a cadeira. Anton mantinha um silêncio sombrio, conservando-a firmemente no sítio.

Durante todo tempo reservado ao cálculo, Sheila continuou a armar confusão. Quando o recreio já começara há meia hora, estava cansada de dar pontapés e de lutar. Aproximei-me.

— Estás pronta para vires fazer os exercícios comigo? — perguntei. Ela fitou-me e emitiu um grito furioso e sem palavras. Anton deixara de a agarrar, segurando apenas a cadeira, e fiz-lhe sinal para que se ocupasse dos outros. — Quando estiveres disposta para fazer os exercícios, podes vir. Até lá, quero-te nessa cadeira. — Em seguida, virei costas e afastei-me.

O facto de ficar completamente só sobressaltou-a por um instante e deixou de gritar. Quando tomou consciência de que nem Anton nem eu estávamos por perto para a manter na cadeira, levantou-se.

— Estás pronta para o cálculo? — inquiri do outro lado da sala, onde estava a ajudar Peter a construir uma auto-estrada com os cubos.

— Não! Não! Não! — gritou com uma expressão furiosa.

— Nesse caso, volta a sentar-te.

Guinchou de raiva e a sua repentina mudança de volume fez com que todos parassem. Contudo, ela manteve-se ao lado da cadeira.

— Mandei-te sentar, Sheila. Não podes levantar-te até estares pronta para fazeres os exercícios.

Durante o que me pareceu uma eternidade, gritou com tanta força que senti a cabeça a latejar. Depois, repentina e surpreendentemente, reinou a calma e fulminou-me com o olhar. Um ódio tão visível retirou-me a pouca autoconfiança que tinha em relação ao que estava a fazer.

— Senta-te nessa cadeira, Sheila.

Ela obedeceu. Virou a cadeira de forma a poder observar-me, mas sentou-se. Depois, retomou a gritaria. Emiti um profundo e íntimo suspiro de alívio.

— Sabes, Torey, acho que desta vez devíamos ganhar dois pontos por bom comportamento — declarou Peter, fitando-me. — Ela é difícil de ignorar.

— Acho que tens razão, Peter — anuí com um leve sorriso. — Isto vale dois pontos.

Sheila gritou e berrou durante todo o tempo das actividades. Havia uma hora e meia que continuava aquela barulheira. Batia com os pés no chão e balançava a cadeira. Puxava pela roupa e agitava os pulsos. Contudo, manteve-se na cadeira.

Quando chegou a hora do recreio, estava rouca e tudo o que vinha do canto eram leves grasnidos abafados. No entanto, a sua raiva não diminuíra e os grasnidos de fúria continuaram. Permaneci na sala, enquanto Anton levou os outros para o recreio. Tal aumentou a agitação de Sheila durante uns momentos. Emitiu mais alguns gritos e fez girar a cadeira em todos os sentidos. Estava, porém, a ficar cansada. No final do recreio, tinham deixado de se ouvir quaisquer sons vindos do canto. Sentia a cabeça a latejar.

Não repeti as condições para ela sair do canto. Achava que era inteligente bastante para as saber e não queria dar-lhe mais atenção do que aos outros. As crianças entraram, geladas e de faces afogueadas do recreio, cheias de histórias sobre o jogo da cabra-cega na neve com Anton, que fora sempre apanhado. O período de leitura iniciou-se sem novidade, cada um de nós entregue às suas tarefas, como se o montinho de carne sentado na cadeira, ao canto, não existisse.

Quase no final do período de leitura, senti um leve toque no meu ombro, quando estava a trabalhar com Max. Virei-me e deparei com Sheila, de pé, atrás de mim, a pele manchada de ansiedade, o rosto franzido com aquela expressão desconfiada, que os seus olhos tantas vezes reflectiam.

— Estás disposta a fazer os exercícios?

Premiu os lábios durante um momento e depois assentiu devagar com a cabeça.

— Muito bem. Vou pedir à Sarah que ajude o Max. Vai apanhar os cubos que atiraste ao chão e tira os outros do armário junto ao lava-louças.

Falei-lhe num tom casual e desprendido, como se fosse normal esperar que ela obedecesse, embora sentisse um aperto no coração. Ela fitou-me atentamente, mas em seguida foi fazer o que lhe pedira.

Sentámo-nos juntas na alcatifa e espalhei os cubos.

— Mostra-me três cubos.

Ela pegou em três com gestos cautelosos.

— Mostra-me dez.

De novo, dez cubos foram alinhados na alcatifa na minha frente.

— Boa menina. Conheces bem os números, verdade?

Ela ergueu o rosto com uma expressão ansiosa.

— Vou dificultar a tarefa. Conta-me vinte e sete. — Segundos depois, surgiram vinte e sete cubos.

— Sabes somar?

Ela não respondeu.

— Mostra-me quantos cubos são dois mais dois. — Quatro cubos surgiram sem hesitação. Observei-a durante um momento. — Que tal três mais cinco? — Ela alinhou oito cubos.

Ignorava se ela sabia mesmo as soluções, ou se as ia encontrando. Mas compreendia, sem dúvida, a mecânica por trás da adição. Hesitava quanto a ir buscar uma folha e lápis, dado conhecer a sua tendência para destruir papel. Não queria estragar a nossa frágil e recém-conquistada relação. Mas queria saber como é que ela resolvia os problemas. Portanto, decidi mudar para a subtracção, o que me daria mais indicações.

— Mostra-me três menos um.

Sheila alinhou rapidamente dois cubos. Sorri. Era óbvio que conhecia este problema sem ter de colocar três cubos e tirar um.

— Mostra seis menos quatro.

De novo, dois cubos.

— Eh! És muito esperta. Mas tenho um problema para ti em que vou apanhar-te. Mostra-me doze menos sete.

Sheila ergueu o rosto na minha direcção e um leve vestígio de sorriso brilhou-lhe nos olhos, embora não lhe chegasse aos lábios. Colocou um, dois, três, quatro, cinco cubos em cima uns dos outros. Fê-lo, sem sequer olhar para os cubos. «A diabinha», pensei. Onde quer que tivesse estado nestes últimos anos e o que quer que tivesse feito, também aprendera. Tinha capacidades superiores às de uma criança normal da sua idade. Não hesitara uma fracção de segundo, antes de colocar os cubos. O coração pulou-me de alegria ante a hipótese de ter uma criança inteligente debaixo de toda aquela revolta e sujidade.

Resolveu mais alguns exercícios antes de eu lhe dizer que chegava e ela podia largar os cubos. Agora, era o período de leitura e dissera-lhe, de manhã, que ela não tinha de participar nesta activi­dade. Levantei-me para me ocupar das outras crianças e Sheila levantou-se também. Foi atrás de mim, sem largar a caixa dos cubos.

— Podes largá-los, se quiseres, querida — disse, virando-me para ela. — Não precisas de andar com eles atrás de ti.

Sheila tinha outras intenções. Quando voltei a erguer a cabeça, ela estava na sua cadeira favorita no canto oposto da mesa com os cubos espalhados na sua frente. Manipulava-os, muito ocupada, fazendo algo, mas eu não sabia o quê.

O almoço pareceu deprimi-la novamente e Sheila regressou ao seu posto na cadeira. No entanto, quando chegou a hora de cozinhar, convencia-a facilmente a aproximar-se, estendendo-lhe uma banana num pau de chupa-chupa.

Todas as quartas-feiras preparávamos algum prato. Organizara esta actividade por várias razões. Para as crianças mais evoluídas, era um bom exercício de cálculo e leitura. Para todos, encorajava a actividade social, a conversa e trabalho de conjunto. Além de que cozinhar era divertido. Uma vez por mês, pegávamos numa receita favorita das crianças e esta tarde era bananas com chocolate, uma receita que consistia em enfiar uma banana num pau, mergulhá-la em chocolate, enrolá-la numa cobertura e pô-la a congelar.

Para simplificar as coisas, resolvera não experimentar uma receita nova no primeiro dia de Sheila e as bananas com chocolate eram um bom recurso. Quase todas as crianças conseguiam manejar os ingredientes sem ajuda. Até mesmo Susannah conseguia fazer tudo, sob a supervisão atenta de Max e Freddie. Havia, obviamente, chocolate por tudo o que era sítio e uma boa parte das coberturas era devorada antes de encontrarem uma banana onde a colocarem, mas passávamos momentos maravilhosos.

Sheila hesitou em juntar-se-nos, agarrando a banana com firmeza e olhando de lado os outros, que tagarelavam alegremente. Contudo, não ofereceu resistência e Whitney atraiu-a até junto do molho de chocolate, quando todos já haviam acabado. Depois de começar, Sheila absorveu-se por completo na tarefa e começou a tentar enrolar quatro coberturas diferentes na sua pegajosa banana.

Eu observava-a do canto oposto da mesa. Nunca falou, mas tornou-se visível que ela tinha ideias muito claras quanto a fazer que as coberturas colassem, voltando a mergulhar a banana no chocolate depois de a envolver em cada cobertura. As outras crianças começaram a parar uma a uma para a observar enquanto ela experimentava a sua ideia. As vozes transformaram-se num sussurro, à medida que a curiosidade levava a melhor. Enrolando a grande e pegajosa massa no prato com a última cobertura, ergueu-a com cuidado. Os seus olhos encontraram os meus e um sorriso estampou-se-lhe devagar no rosto e atravessou-o de um lado ao outro, mostrando os espaços onde lhe faltavam os dentes de baixo.

No final de cada dia tínhamos actividades que, à semelhança do tópico da manhã, se destinavam a unir-nos e a preparar-nos para o tempo de separação. Uma delas era a Caixa do Duende.

Eu adorava inventar histórias para contar às crianças e dissera-lhes, uma vez, no início do ano, que os duendes eram como fadas, mas viviam nas casas das pessoas e cuidavam das coisas, enquanto elas dormiam. Peter sugerira que talvez houvesse um duende na nossa sala que cuidava das nossas coisas e fazia companhia durante a noite a Benny, Charles e Onions, o coelho irascível. Tal deu azo a uma série de histórias sobre o nosso duende.

Assim, um dia, eu trouxe uma grande caixa de madeira e expliquei às crianças que era este o sítio onde o duende passaria a deixar mensagens. Garanti que ele nos vira a trabalhar e ficara muito satisfeito ao verificar como todos na sala se iam tornando bons e ponderados. Por conseguinte, sempre que assistisse a uma boa acção, deixaria uma mensagem na caixa.

No final de cada dia, eu lia, portanto, os bilhetes da Caixa do Duende. Passados uns dias, disse-lhes que o duende estava a ficar com cãibras e precisava de uma ajuda, porque havia tantos a praticar boas acções. Pedi aos miúdos que estivessem de olho nas boas acções dos outros, escrevessem um bilhete e o metessem na caixa, ou, caso não soubessem escrever, viessem ter comigo e eu escreveria por eles.

Foi assim que começou a funcionar um dos nossos mais populares e eficazes exercícios. Todas as noites havia cerca de trinta bilhetes das crianças sobre boas acções que observavam nos companheiros. Tal não só encorajava as crianças a observarem comportamentos positivos nos outros, mas também rivalizavam em bondade com a esperança de verem o seu nome aparecer na caixa ao fim do dia.

Alguns bilhetes eram tradicionais, mas outros denotavam especial perspicácia no elogio de uma criança devido a pequenos mas significativos actos, às vezes por coisas que nem eu havia notado. Por exemplo, Sarah foi elogiada por não ter usado um seu palavrão favorito durante uma discussão e Freddie foi elogiado por procurar um lenço de papel, em vez de se assoar à camisa.

Eu adorava abrir a caixa todas as noites, pois raramente contribuía para ela, à excepção de me certificar de que todos recebiam, pelo menos, um bilhete. A emoção de ver o que as crianças haviam observado era algo excitante. E confesso que também me agradava encontrar um bilhete que me fosse dirigido.

A leitura das mensagens, depois de cozinharmos na quarta–feira, foi particularmente agradável, porque, pela primeira vez, apareceu o nome de Sheila escrito com uma caligrafia que não era a minha. Sheila, que se mantinha sentada longe de nós, conservou a cabeça baixa, enquanto as outras crianças batiam palmas de satisfação com as suas mensagens. Contudo, aceitou prontamente os bilhetes, quando lhos entreguei.

Anton acompanhou as outras crianças até aos autocarros quando as aulas acabaram. Sentei-me à mesa para classificar uns papéis e actualizar uns gráficos de comportamento que estava a elaborar sobre algumas crianças.

Sheila fora à casa de banho para limpar os restos de banana com chocolate da cara. Já se mantinha lá há algum tempo e eu embrenhara-me no meu trabalho. Ouvi o som do autoclismo e ela saiu. Não levantei a cara, porque estava a completar o traçado de uma curva com um marcador e não queria cometer um erro. Sheila aproximou-se da mesa e observou-me por um momento. Depois, chegou-se mais, apoiando os cotovelos em cima da mesa e inclinando-se de forma a ficarmos apenas uns centímetros separadas. Ergui os olhos e fitei-a. Ela examinou atentamente o meu rosto.

— Por que é que as outras crianças não vão à sanita?

— O quê? — retorqui, surpreendida.

— Disse por que é que os outros, embora sejam crescidos, fazem nas calças e não na sanita?

— Bom. É uma coisa que ainda não aprenderam.

— Como assim? São grandes. Mais crescidos que eu.

— Bom, ainda não aprenderam. Mas estamos a trabalhar nisso. Todos estão a tentar.

Sheila baixou os olhos para o gráfico que eu estava a traçar. — Mas já deviam ter aprendido — insistiu. — O meu pai dava-me uma grande tareia se eu fizesse isso.

— Toda a gente é diferente e aqui ninguém apanha.

Ficou pensativa durante um longo momento e traçou um pequeno círculo na mesa com o dedo.

— Isto é uma sala de malucos, não é?

— Não propriamente, Sheila.

— O meu pai diz que sim. Diz que sou maluca e que me puseam numa aula para crianças malucas. Diz que isto aqui é uma sala para crianças malucas.

— Não propriamente.

— Não me interessa muito — retorquiu, depois de uma pausa com a testa franzida. — Este sítio é tão bom como qualquer outro onde estive antes. Não me interessa que seja uma sala de malucos.

Fiquei um pouco à toa, sem saber como negar o óbvio. Não esperara ver-me envolvida com uma das minhas crianças neste tipo de discussão. A maioria não era coerente bastante para ter essa percepção nem suficientemente corajosa para o afirmar.

— Tu seres maluca? — perguntou Sheila, coçando a cabeça e olhando-me com um ar pensativo.

— Espero que não. — Ri-me.

— Como é que fazes isto?

— O quê? Trabalhar aqui? Porque gosto muito de meninos e meninas e acho que ensinar é divertido.

— Como é que estás com crianças malucas?

— Porque gosto. Ser louco não é mau. E apenas diferente, nada mais.

Sheila abanou a cabeça sem sorrir e endireitou-se.

— Acho que também seres maluca — concluiu.

Cada palavra é uma semente – Susanna Tamaro (sugestão de leitura)

Susanna Tamaro
Cada palavra é uma semente
Lisboa, Editorial Presença

Acreditando que a escrita deve propagar a semente da inquietação, Susanna Tamaro aborda neste livro, sempre numa atitude de espanto e de humildade, o grande mistério da vida humana. Uma viagem espiritual, embaladora, que nos confronta e nos inspira através do realismo e da sensibilidade da prosa envolvente a que Susanna Tamaro já nos habituou.

Cada palavra é uma semente

Excerto

O meu pai era uma pessoa bastante especial. Vivia num pequeno quarto com uma varanda que dava para a gravilha de uma linha férrea. Já estava reformado há alguns anos e sentia-se feliz. Não sei o que fazia o dia todo, não tinha amigos, não convivia com ninguém. Sentia-se vaidoso por poder comprar o passe social a preço reduzido. «Sabes — dizia-me ele —, por esta quantia, por esta modesta quantia, posso viajar dia e noite, nos meios de transporte que quiser.»

Acho que passava a maior parte do seu tempo a andar nos autocarros e nos comboios citadinos.

Por mais do que uma vez, fui encontrá-lo em lugares impensáveis, muito afastados da casa onde vivia. O passo era sempre o mesmo, mãos atrás das costas, ar absorto. E quando eu lhe perguntava: «O que é que andas a fazer por estes lados?», respondia invariavelmente: «Vim dar uma volta.»

Por vezes, eram os amigos que me diziam onde ele estava. «Vi-o perto do entroncamento… no túmulo de Nero… no fundo da Aurelia… no átrio da Stazione Tiburtina… «Estava sozinho?» «Claro.» «O que é que estava a fazer?» «A passear.»

À noite, voltava para casa e desligava o telefone, ou talvez, mais simplesmente, evitava atender. Penso que já só havia duas ou três pessoas que soubessem o seu número, mas isso não tinha importância. Não queria ser incomodado, não queria que ninguém fosse lá a casa, ser convidado, para lhe dar cabo do seu tempo.

Na varanda, tinha uma bicicleta já velha; não era um desportista, mas tinha problemas de coração. Por isso, à noite, pedalava. Pedalava e via passar os comboios. De vez em quando, telefonava para me dizer: «Sabes, já começam a aparecer os primeiros pirilampos, vejo-os reluzir entre dois comboios…» Ou então: «Há uma gata que teve gatinhos, dois ruivos e um cinzento. Quando volta da caça, vão a correr ao encontro dela, todos contentes, de cauda levantada.»

O meu pai chegava sempre a horas aos nossos encontros, mas não tinha o sentido do tempo. Olhava para os outros — aqueles a quem o Principezinho chama «os adultos» — com um espanto mal disfarçado. Para onde iam eles a correr? Porque têm tanta pressa? Não conseguia entender.

Já numa idade mais do que adulta, começou a estudar chinês. Descobrira no taoísmo a repercussão perfeita do seu ser. «Pratica o não agir. Tenta não fazer nada. Saboreia o que não tem sabor. Considera o pequeno como grande, o pouco como muito.»

O meu pai não tinha o sentido do tempo, mas, apesar disso, foi ele, juntamente com a minha mãe, quem me deu o meu tempo. Deu-me o tempo, o meu tempo, e deu-me o seu não-tempo, a indiferença total pelo desenrolar das coisas.

Também chego sempre a horas aos encontros, mas abro as cartas uns meses depois de as receber e respondo, se me lembrar, passados uns anos. Quando o telefone toca, nem o ouço. Se digo a alguém «telefono-te amanhã», é certo e sabido que telefonarei passado um mês, não por maldade, desleixo ou arrogância, mas porque também vivo numa espécie de presente eterno. No meu tempo interior, um mês, uma semana, um dia, valem o mesmo.

Quanto tempo demorei a reparar no tempo? Não muito. Devia ter uns sete anos. Lembro-me de uma tarde cinzenta e ventosa, o vento sul entrava por baixo da janela e esfriava o quarto. Eu estava a meter os livros na pasta, para o dia seguinte. De repente, pensei: este dia já passou e nunca mais voltará. Tudo o que vi, senti, sofri e ouvi desapareceu para sempre. Cada pôr do Sol é um pequeno passo para a morte.

Foi a partir de então que comecei a ver de uma forma diferente cada pessoa que encontrava. Havia a pessoa e, a seu lado, um pequeno poço. Esse poço ficava perto da cama e cada entardecer engolia o dia que tinha passado. Havia poços quase vazios, como o meu e o dos meus irmãos, e poços já cheios, como os dos avós. Os poços quase cheios faziam-me chorar.

A partir daí, a ansiedade foi a minha fiel companheira. Sentia-me como um ramo que a chuva atirara para a água de um rio lamacento que ia correndo lentamente para um sítio qualquer, a paisagem não era muito diferente da que vi muitas vezes do comboio, entre Trieste e Veneza. Neblina, casas, campos de milho, ca­nais, choupos e campanários. Neblina, casas e campos de milho. De vez em quando, uma figura escura, de bicicleta.

Nunca tinha pedido para descer aquele rio e não tinha qualquer possibilidade de sair dele, navegava como navegavam os outros todos, mas também com um sentimento de grande impotência.

O que era a vida? Levantar de manhã, ir à casa de banho, ir para a escola, comer, fazer os trabalhos de casa e ir para a cama, para recomeçar, no dia seguinte, a mesma série de sequências ridículas. Haveria de crescer e, em vez de ir para a escola, iria para o trabalho e essa seria a única diferença substancial. Depois, o trabalho também acabaria e os meus cabelos ficariam brancos, as pernas começariam a fraquejar e eu ficaria muito tempo parada diante das passadeiras para peões, antes de atravessar a rua. Depois, as pernas deixariam de aguentar com o meu peso e deitar-me-iam no caixão como, durante tantos anos, me tinha deitado na minha cama. Fim do tédio, fim da repetição, fim de tudo o resto.

Era para isso que as pessoas vinham ao mundo? E o que era a vida senão um monótono desperdício de tempo e de energia?

Nessa altura, como é natural, não sabia nada do Big Bang e do espaço, dos cem milhões de galáxias que giram connosco no cosmos, nem das relações que ligam o espaço ao tempo, a massa à energia Todavia, tinha percebido uma coisa absolutamente fundamental, isto é, que o tempo é como uma seta, sai do arco e vai parar no alvo e nunca pode fazer o percurso inverso. Pelo menos, não para nós, seres humanos e animais e plantas. Para nós que, de uma forma ou de outra, respiramos.

Para os eléctrodos e as partículas fundamentais, tudo muda, não têm relógios, nem encontros marcados, não se apaixonam, nem serão avós, e também não imaginam que a morte existe. Para eles, o passado e o futuro são a mesma coisa.

Para nós, não. Para as criaturas — para todas as criaturas — só há um caminho e uma única direcção. É daí que nasce o espanto, o horror vacui que senti na infância e hoje sente qualquer pessoa que pare, ao menos por um instante, para reflectir.

A pergunta acerca do tempo é, acima de tudo, uma pergunta acerca do sentido. Porquê? Para quem? Para quê?

Tenho um temperamento marcadamente terrestre. Entre olhar para as alturas e olhar para o chão, sempre preferi olhar para o chão. Compreendo mais coisas ao ver uma formiga a transportar uma semente do que ao estudar as fórmulas matemáticas que definem o trajecto das estrelas.

Na memória de todas as culturas, antes do mundo, havia o caos. A certa altura — que talvez ainda não fosse altura nenhuma porque o tempo não existia — houve uma coisa muito pequena que explodiu, gerando uma coisa grande.

Na língua chinesa, o que exprime o caos primogénito — um caos que, naturalmente, não é caos, mas apenas uma ordem diferente da que conhecemos — é o ideograma hun tun..

O meu pai tinha estudado chinês e, durante um certo tempo, eu estudei a caligrafia chinesa. Tinha uma professora minuciosa e silenciosa, mas que, diante das folhas brancas, se transformava e brandia o pincel com energia e graça, como uma dança. Gostava de repetir: «Céu, pai, terra mãe, nós muito pequenos, muito, muito pequenos.»

Os ideogramas não são gatafunhos incompreensíveis, são representações de microcosmos e do macrocosmo.

O Hun Tun, o caos que antecede a criação, é formado por dois ideogramas. O ideograma Hun que representa um homem e, por baixo dele, o Sol, um Sol abaixo do horizonte, ainda prisioneiro das trevas. Pelo contrário, o ideograma Tun representa uma pequena planta que tenta criar raízes. Em ambos os ideogramas, está presente o signo da água. A água é, portanto, a fonte da vida, foi aí que todo o mundo que conhecemos começou a criar raízes. E é também aí, na água do ventre materno, que a vida de cada criatura inicia o seu percurso de crescimento.

Existir no tempo é, acima de tudo, criar raízes.

Um dos livros que leio com maior paixão é o livro da evolução, a vida que houve antes de nós. A grande seta que permitiu o disparo da seta mais pequena, a da nossa existência individual. Uma seta lançada por uma criança e uma seta disparada por um gigante, ambas apontadas para o mesmo alvo.

Eu não posso transformar-me em lémure, tal como um carvalho não pode transformar-se em alga unicelular. No entanto, num determinado momento, a alga começou a imaginar dentro de si o carvalho.

Aconteceu há cerca de quatrocentos milhões de anos, no devónico [Quarto período do Paleozóico, em que apareceram os primeiros vertebrados terrestres e as primeiras plantas vasculares. (NT)] Até essa altura, as plantas tinham vivido e tinham-se propagado apenas horizontalmente.

Todavia, o sonho gera a inquietação e, de repente, tudo o que era cómodo e natural começa a ficar acanhado. Porque não explorar também outros espaços? Porque não tentar atingir a grande estrela que enche de luz o espaço circundante?

Para isso, não se pode estar parado, a flutuar. Necessita-se de um sistema diferente de transporte dos alimentos. É assim que se formam novas células, células muito compridas, capazes de transportar a água para o topo, e outras capazes de voltar a trazer a linfa elaborada para baixo. Assim se desenvolve uma espécie de tecido celular com uma estrutura semelhante à medula, no centro. No meio, há ar, e ar significa respiração. Células com clorofila rodeiam o tecido vascular e a planta cobre-se de pequenos botões, os estornas. Botões que se abrem e fecham para conterem ou libertarem vapor. O vapor sobe até ao céu e o céu restitui-o sob a forma de chuva.

E é nessa altura que a terra dá início ao grande processo da respiração.

Para falar verdade, até há poucos anos, não prestava grande atenção à vida das plantas. Privilegiava o estudo dos animais porque os animais têm um olhar. Só com o tempo, aprofundando alguns pensamentos, é que fui reparando na grande afinidade que existe entre o nosso destino e o destino do mundo vegetal.

Entre nós e uma planta, a diferença não é muito grande. Tanto nós como elas somos feitos de tecido vascular, temos uma medula que nos mantém direitos e nos faz ter, crescendo, uma posição erecta. Tanto nós como elas, para podermos continuar a viver, precisamos da dose de alimento adequada.

Criar raízes, alimentar-se, crescer.

Enquanto os animais crescem na horizontal, nós e as plantas somos seres verticais. Elas aguentam o peso da ramagem, nós, o embaraçoso peso da cabeça.

As plantas demoraram alguns milhares de anos a mudar de estado. Desenvolvendo-se em altura, tinham resolvido vários problemas, mas ainda havia muitos por resolver. O da propagação, por exemplo. Antes do nascimento das sementes, o ovo fecundado não tinha qualquer tipo de protecção, bastava uma mínima mudança de clima para gastar o seu potencial de crescimento.

Por conseguinte, as sementes foram a outra grande revolução silenciosa.

A semente tem tudo no seu interior, pode ficar protegida no ovário, ou transformar-se em fruto e ir parar à barriga de uma pessoa, pode cair ao chão e ficar adormecida durante meses, ou mesmo anos, à espera das condições propícias para crescer, ou pode agarrar-se ao pêlo de um animal e andar a vaguear pelo mundo.

Há sementes que explodem, como a da impatiens, ou voam ligeiras, como o dente-de-leão, e outras que ficam paradas no ar como máquinas de Leonardo.

As sementes são potencialidade, uma potencialidade em prudente espera. Primeiro, não agem, e, quando agem, têm um projecto. A margarida converte-se em margarida, a genciana converte-se em genciana.

As plantas crescem para a luz e nós também crescemos para a Luz, embora muitas vezes façamos tudo para o ignorar.

Olhando à minha volta, tenho muitas vezes a impressão de que, para muitas pessoas, o tempo da vida se parece com um grande armário cheio de gavetas que elas têm de encher o mais depressa possível.

O tempo, com a sua vacuidade, gera ansiedades dificilmente controláveis.

«Não, hoje, não, amanhã, também não. Talvez na semana que vem, mas não sei. É difícil conseguir arranjar tempo.»

Quantas vezes ouvimos conversas deste género?

Estamos no tempo, mas não temos tempo.

Temos de correr, andar, fazer coisas, ver pessoas, adquirir talentos cada vez mais novos para calar o rumor dos dias, dos meses, dos anos que vão passando e que não podemos deter de forma alguma.

Depois, um instante antes de morrermos, talvez vejamos num lampejo a nossa vida e, ao vê-la, aperceber-nos-emos de que os únicos instantes verdadeiramente nossos, verdadeiramente cheios, foram aqueles em que pudemos ter «perdido tempo» para contemplar uma flor, a forma de uma árvore, ou acariciar a cabeça de uma criança que ia a passar ao nosso lado.

Na língua chinesa, a ausência da acção é definida pelo ideograma Xu. Neste ideograma, não há um homem deitado numa rede, há sopros que se movem entre eles, sem gerarem conflitos, numa harmonia perfeita.

A ausência de acção é o movimento perfeito, o movimento do homem que acolheu dentro de si não a arrogância do saber, mas a humildade da sabedoria.

Não agir é estar-se sempre pronto. Pronto para a morte e para a vida. Pronto para a chamada.

«Aqui estou eu, envia-me a mim!», diz o profeta Isaías.

Não diz: «Irei amanhã» ou «Podias ter-me chamado ontem.»

Não, diz: «Aqui estou eu!»

Viver esta dimensão significa, antes de mais, perceber que o nosso tempo é como uma fatia de gelado. O seu destino é ser consumido, ou derreter-se.

Ao passo que o verdadeiro tempo, ou seja, o gelado inteiro, permanece no congelador.

Existia antes e continua a existir, depois de a nossa porção ter terminado.

Para se perceber o tempo, para se perceber o significado mais profundo, em vez de o interpretarmos, teríamos de nos despojar.

Despojarmo-nos do eu, mais do que de qualquer outra coisa.

Eu quero, eu faço, eu compreendo, eu sou.

Despojarmo-nos e esperar.

Esperar e ouvir.

Assim, a pouco e pouco, iremos reparando que este tempo, este tempo que nos torna ansiosos, este tempo em que vamos acumulando coisas a fazer e a dizer, é, na realidade, um tempo que não difere muito da corrida de uma formiga, um tempo ligeiro, breve, curto. O verdadeiro tempo não é esse.

É o tempo do mistério e da transcendência.

É o tempo em que a cada semente será revelado o seu projecto. Um tempo que nos envolve e nos ultrapassa. Um tempo sem tempo, sem madrugadas, nem crepúsculos, sem aniversários, nem funerais.

É um tempo que nos antecede e nos segue, mas é também um tempo que nos acompanha ao longo dos dias, ou melhor, que irrompe nos dias, salvando-nos da deriva.

É o tempo da humildade, da descida às raízes.

O tempo da escuta, da escuta que se transforma em diálogo.

É o tempo do acolhimento e do reconhecimento.

É o tempo da semente que se transforma em rebento e do rebento que se transforma em planta.

É o tempo da planta que transforma a energia do crescimento na beleza inútil da flor e que, um momento antes de murchar e deixar cair as sementes, repara com espanto que aquilo a que, até esse momento, chamara Luz, era, de facto, Amor.

Quando ando pelas ruas de Roma, de noite e de dia, tenho muitas vezes a impressão de que estou a ver o meu pai.

Não era ele, aquela figura de perfil, no autocarro meio vazio? Aquele casaco que acabava de dobrar a esquina não era o seu?

De tempos a tempos, paro e ouço-o suspirar. Suspirava muito. Suspirava como se sentisse sempre um peso no coração.

As suas longas e intermináveis caminhadas talvez fossem uma tentativa para se libertar desse peso.

Caminhando sem parar, talvez andasse à procura de uma coisa qualquer que, de repente, lhe tornasse tudo claro.

Caminhava para fugir, para fugir de si mesmo, do seu passado, da sua solidão.

E talvez caminhasse também com a esperança desesperada de que lhe aparecesse, de repente, o rosto do Outro.

Porque uma semente pode estar parada na terra durante meses, durante anos, mas, nessa obscura permanência, nunca deixa de desejar a água, de esperar por ela.

Espera pela água e pela força que lhe permita romper o tegumento e começar a subir para as alturas, para o universo da luz e da respiração. Para descobrir finalmente a forma que, desde o início, tinha sido chamada a assumir no mundo.

Pouco antes de morrer, o meu pai tentou escrever-me um bilhete. Não conseguiu.

Na folha, só ficou um ponto.

O que terá querido dizer?

Perdão? Medo?

Ou seria paz?

Nunca saberei, pelo menos neste tempo.

No mistério deste tempo-seta, lançado para as trevas do cosmos justamente pela explosão de um ponto.

Uma viagem espiritual – Nicholas Sparks (sugestão de leitura)

Billy Milles; Nicholas Sparks
Uma viagem espiritual
Lisboa, Editorial Presença

David nunca esqueceria aquele Verão. Era então um rapazinho, que acabara de perder a sua irmã. Depois da morte da mãe, anos antes, ela era a fonte da sua alegria de viver. E agora que a perdera, o jovem índio mergulhara num desespero sombrio, e o seu pai começara a inquietar-se. Tinham sido anos muito duros, aqueles… felizmente, àquela família índia, discriminada pelos novos americanos, restava ainda o legado das suas tradições ancestrais. O pai viu o pesar que consumia o filho e compreendeu. Entregou-lhe o rolo de pele pintado à mão, gasto pelos anos. Daquelas imagens e símbolos emanava um poder misterioso. Foi esse o ponto de partida para uma estranha viagem, que mudou para sempre a vida de David. Continuar a ler

O mundo encantado de Beatrix Potter – Richard Maltby, Jr. (sugestão de leitura)

Richard Maltby, Jr.
O mundo encantado de Beatrix Potter
Porto, Civilização Editora

A sua imaginação e o seu talento para desenhar eram o único escape de Beatrix Potter a uma rotina dura. Mas a publicação do seu conto infantil A História de Pedrito Coelho empurrou-a para um novo mundo, onde, pela primeira vez, ela experimentou o sucesso, a independência e, o mais inesperado de tudo, o amor.

 

Excerto

 O mundo encantado de Beatrix Potter

Capítulo Cinco

… E os seus nomes eram Flopsi, Mopsi, Rabinho-de-Algodão e Pedrito.

 As palavras tinham entrado na cabeça de Beatrix, quando era criança, e nunca mais saíram. Lembrou-se delas, anos mais tarde, quando estava a escrever uma carta a Noel Moore, o filho de uma antiga preceptora. Noel estava doente, e ocorreu-lhe a ideia de que ele podia ficar animado se incluísse uma pequena história acompanhada de algumas figuras. Voltou a recordar-se das palavras na altura em que, no seu estúdio, as escreveu, com uma caligrafia perfeita, numa chapa a acompanhar os seus desenhos finais para entregar a F. Warne &. C.ª. E, agora, as palavras estavam num manuscrito, no escritório de um verdadeiro editor, enquanto Beatrix Potter mostrava as suas novas pinturas a cores a Norman Warne.

“… Agora, meus queridos”, disse a Senhora Coelho, uma manhã, “podam andar pelos campas ou descer o caminho, mas não entrem na horta do Senhor Gregário. O vosso pai teve lá um acidente; a mulher do Senhor Gregário meteu-o num empadão…”

Sem o perceber, cada vez que acabava uma nova página, dava consigo a imaginar a reacção de Norman Warne. Será que exclamava: “Encantador!” e pousava a mão na face? O seu rosto abrir-se-ia num sorriso descontraído?

Agora, no escritório, com o livro dela na mão, ele reagia com todo o encantamento que ela tinha imaginado. Virava as páginas lentamente, comentando, arquejando, surpreendendo-se, chamando os empregados para virem ver.

Beatrix, de pé a seu lado enquanto ele lia, teve de súbito consciência de quão perto estava dele, consciência do calor que vinha do seu fato de tweed, consciência do aroma fresco e agradável a hamamélis. Levantou os olhos e reparou numa pequena faixa do seu pescoço entre o cabelo bem cortado e o colarinho. Mister Warne. Repetiu as palavras para si mesma. Mister Warne.

Pedrito, que era muito traquinas, correu logo para a horta do Senhor Gregário, e meteu-se por baixo do portão!…

Alguns dias mais tarde, Mr Warne e Miss Potter, no interior de uma carruagem e na companhia de Miss Wiggin, atravessavam o Sudeste de Londres até junto de um sombrio edifício de tijolo, na Swan Street, onde uma rua estreita e atravancada os conduziu até à porta de uma fábrica. Miss Wiggin corria atrás deles, ofegante. No interior, Norman levou Beatrix através de uma coxia, ladeada de estrondosas impressoras, até uma máquina em particular que tinha sido designada para ela. Norman fez sinal ao impressor que podia começar.

Beatrix sentiu um frémito de exaltação quando viu o ajudante de impressão empurrar o cilindro sobre a chapa de metal. O impressor colocou uma folha de papel sobre a matriz, baixou um tampo para comprimir bem o papel, levantou o tampo, estendeu o braço, pegou na folha de papel por um dos cantos e cuidadosamente retirou-a da chapa. Mostrou-a a Beatrix.

– Ah, não! – exclamou ela.

O azul estava escuro e pesado. Olhou para Norman.

– Demasiado escuro – disse este para o impressor. – Tente de novo.

O ajudante limpou a chapa com álcool, acrescentou alguma tinta branca e misturou um novo tom de azul. Beatrix e Norman esperavam ofegantes. Miss Wiggin, sentada numa cadeira perto dali, esperava simplesmente. O ajudante voltou a colocar tinta na chapa e o impressor pôs uma nova folha de papel.

– Meu Deus, não! – exclamou Beatrix.

– Tente outra vez – disse Norman para o impressor.

Mais uma vez o álcool, a mistura das tintas, o passar do rolo, a prensagem, e, a seguir:

– Não! – disse Beatrix, desapontada. – Ainda está…

Norman acenou com a cabeça para o impressor, cuja afabilidade se ia extinguindo.

mas ao virar o bordo de um canteiro de pepinos, quem havia ele de encontrar senão o Senhor Gregório!

O dia prosseguiu. O ajudante de impressão continuou a acrescentar tinta branca à azul, mas cada mistura só conseguia aclarar a cor minimamente.

– Meu caro senhor – disse Norman finalmente, dirigindo-se ao impressor. – Deixe-nos olhar para a chapa pintada a aguarela. Veja. O azul, aqui, é muito mais atenuado e claro.

O ajudante e o impressor olharam para a aguarela, juntaram-se e, com uma irritação mal disfarçada, decidiram pôr de parte o conjunto total de tinta. Iriam começar tudo de novo, anunciaram, desta vez com a tinta branca a que iriam juntar a azul. Uma prova de cor foi apresentada a Beatrix.

– Muito melhor, mas agora está demasiado… – disse ela.

– Está muito aproximada – acrescentou, tentando parecer optimista.

O impressor acrescentou mais uns salpicos de índigo. Perder um dia inteiro a correr atrás dos caprichos de uma mulher! “As mulheres não deviam ser autorizadas a entrar no local de trabalho”, pensou ele. “São demasiado emotivas” Os seus pensamentos transpareceram no rosto. Olhou para Norman que simplesmente acenou com a cabeça, de modo firme, para que ele prosseguisse. O impressor tentou novamente.

Pedrito estava ofegante e a tremer de medo, e não tinha a menor ideia de qual o caminho a seguir…

Norman fez o impressor tentar mais duas vezes. À medida que ele ia ficando cada vez mais decidido, Beatrix teve uma sensação súbita e inesperada. De quê? De conforto! De segurança? Estavam a tomar conta dela! Beatrix orgulhava-se da sua independência. Raramente pedia ajuda, preferindo resolver os problemas que aparecessem por si própria. Com os pais a envelhecerem, no n.º 2 de Bolton Gardens, passou a tomar cada vez mais decisões até que, agora, era ela que, de facto, governava a casa. Era ela que lidava com os pedreiros e jardineiros e canalizadores – e sentia satisfação a fazê-lo. Mas aqui, de pé, no meio de poeirentos feixes da luz do dia, no interior de uma tipografia ruidosa, enfrentando um operário que, a cada minuto que passava, ia ficando cada vez menos cordial, Beatrix sentiu um relaxamento curioso pela presença de um homem que, de modo agradável, e ainda com total firmeza, tinha assumido o controlo da situação. De vez em quando, Norman olhava para ela, e Beatrix sentiu subitamente que era… compreendida. Em toda a sua vida, teria havido alguém que a tivesse compreendido?

O impressor exasperado mostrou outra folha.

– Sim – disse ela.

– Óptimo! – declarou Norman para o homem. Houve um suspiro de alívio à volta. – Excelente trabalho, senhor – continuou ele, de um modo tão sincero que o impressor se esqueceu de que estava zangado. Norman sorriu uma vez mais. – Agora, vamos ver os vermelhos.

O Senhor Gregório viu-o de relance no canto, mas Pedrito não se importou. Esgueirou-se por debaixo do portão e, finalmente, estava a salvo no meio do bosque, do lado de fora…

Mais tarde nessa semana, Beatrix e Norman encontravam-se na tipografia, enquanto as páginas iam saindo, uma a uma, do rolo da impressora para serem levantadas sobre uma plataforma de madeira, darem uma reviravolta no ar e serem depositadas numa caixa pelo verso da folha. Dentro da caixa estava a totalidade do seu livro, impresso dos dois lados de cada folha, em magníficas cores suaves. Beatrix e Norman sorriram. Miss Wiggin observava à distância, aborrecida até à exaustão.

Lamento dizer que o Pedrito não esteve muito bem durante a noite. A mãe meteu-o na cama, fez um chá de camomila e deu uma dose ao Pedrito! “Uma colher de sopa tomada ao deitar.” … Mas Flopsi, Mopsi e Rabinho-de-Algodão comeram pão, leite e amoras ao jantar.

Beatrix e Norman olharam para esta última página do livro, que era agora uma maqueta encadernada, e então folhearam de trás para a frente. Aí as imagens eram: Gregório quase a apanhar Pedrito com um crivo de jardim, o Pedrito a puxar o casaco preso pelos botões na rede de uma groselheira, o Pedrito a perder os sapatos no meio das batatas. Finalmente havia a página de rosto com o título: A História do Pedrito Coelho, de Beatrix Potter.

Beatrix pegou no livro acabado. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Ficou atrapalhada e limpou as lágrimas. Olhou para Norman e os seus olhos encontraram-se.

Foi só um instante, mas para Beatrix pareceu uma eternidade, tão comprida que teve de desviar o olhar.

– Miss Potter – disse Norman. – Interrogo-me se… não quero ser, hum… a minha família… os outros Warne… gostariam muito…

O diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi – Hélène Berr (sugestão de leitura)

Hélène Berr
Diário – O diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi
Alfragide, Publicações D. Quixote

 

Nascida em 1921 no seio de uma abastada família francesa de origem judia, Hélène Berr estudou Literatura Inglesa na Sorbonne. Erudita e de trato refinado, tinha por hábito reunir-se com os amigos e juntos tocavam, no violino, pecas de compositores como Beethoven, Schubert e Bach.

A 8 de Março de 1943 é capturada e, posteriormente, deportada de Drancy para o campo de concentração de Auschwitz. Nas páginas deste Diário, escrito entre 1942-1944, Hélène descreve como a ocupação nazi foi progressivamente transformando a sua vida num «Horror, Horror, Horror…».

O Diário é um documento comovente de uma densidade excepcional, não só pelo contexto como pela firmeza de carácter e capacidade de resistência da autora face à adversidade das circunstâncias. Hélène morreu de tifo, em Abril de 1944, com 24 anos, pouco antes da libertação do campo de Bergen-Belsen. Anne Frank morrera semanas antes, também de tifo, no mesmo campo. Talvez por isso, Hélène seja considerada a Anne Frank francesa.

 

Diário 

Excerto

1943

Quarta-feira, 25 de Agosto de 1943

Há dez meses que terminei este diário. Esta tarde tiro-o da gaveta para que a Mamã o leve para lugar seguro. Mais uma vez obrigaram-me a dizer que não ficaria em casa no fim-de-semana.

Quase um ano passou, e Drancy, as deportações, os sofrimentos continuam. Muitos acontecimentos se passaram: Denise casou-se; Jean partiu para Espanha sem que o tenha podido ver; todas as minhas amigas do escritório foram presas, e só por um acaso extraordinário eu não estava lá nesse dia; Nicole está noiva de Jean-Paul; Odile voltou; um ano já! As razões para ter esperança são imensas. Mas tornei-me muito circunspecta, e não posso esquecer os sofrimentos. O que se terá passado quando retomar este diário?

 

***

10 de Outubro

Recomeço este diário esta tarde, após um ano de interrupção. Porquê?

Hoje, ao voltar de casa de Georges e Robert, fui bruscamente dominada por uma impressão: a de que é necessário que eu escreva a realidade. Apenas este regresso da Rue Margueritte fora um mundo de factos e pensamentos, de imagens e reflexões. Aquilo de que se faz um livro. E, de súbito, percebi quanto um livro, no fundo, era banal… Quero eu dizer: que outra coisa há num livro que não seja a realidade? O que falta aos homens para poderem escrever é o espírito de observação e a largueza de vistas; não faltando isso, toda a gente poderia escrever livros.

(…)

E no entanto há mil razões que me impedem de escrever e que me importunam neste preciso momento, e me entravarão ainda amanhã e nos outros dias.

Primeiro, uma espécie de preguiça que será dura de vencer. Escrever, e escrever como eu quero, isto é, com uma sinceridade completa, nunca pensando que outros irão ler a fim de não falsear a própria atitude, escrever toda a realidade e as coisas trágicas que vivemos dando-lhe toda a nudez da sua gravidade, sem a deformar pelas palavras, é uma tarefa muito difícil e que exige um esforço constante.

(…)

Depois há também o orgulho. E isso eu não quero. A ideia de que se possa escrever para os outros, para receber os elogios dos outros, causa-me horror.

Talvez haja ainda o sentimento de que «os outros» não nos compreendem a fundo, que eles nos sujam, nos mutilam, e que nos deixamos aviltar como uma mercadoria.

Inutilidade?

Por momentos, também o sentido da inutilidade de tudo isso me paralisa. Outras vezes duvido, e digo a mim própria que este sentido da inutilidade não é senão uma forma de inércia e de preguiça, porque em face de todos estes raciocínios se levanta uma grande razão que, se me convenço da sua validade, tornar-se-á decisiva: tenho um dever a cumprir ao escrever, porque é preciso que os outros saibam. A cada hora do dia repete-se a dolorosa experiência que consiste em nos apercebermos de que os outros não sabem, que não imaginam sequer os padecimentos de outros homens, e o mal que alguns infligem a outros. E sempre tento fazer esse penoso esforço de narrar. Porque é um dever, talvez o único que posso cumprir. Há homens que sabem e que fecham os olhos; a esses não chegarei a convencê-los, já que são duros e egoístas, e eu não tenho autoridade. Mas os outros, os que não sabem e que provavelmente têm suficiente coração para compreender, sobre esses eu devo agir.

Porque, como se curará a humanidade de outra forma senão começando por descobrir toda a sua podridão? Como se purificará o mundo de outra forma, senão fazendo-o compreender a extensão do mal que comete? Tudo é uma questão de compreensão. É esta verdade que me angustia e me atormenta. Não é pela guerra que se vingarão os padecimentos: o sangue chama o sangue, os homens ancoram-se na sua malvadez e cegueira. Se se chegasse a fazer compreender aos homens maus o mal que fazem, se se conseguisse dar-lhes a visão imparcial e completa que deveria ser a glória do ser humano! Demasiadas vezes discuti este tema com os que me rodeiam, com os meus pais, que têm sem dúvida mais experiência do que eu. Só Françoise partilhava as minhas ideias. A mais pequena lembrança de Françoise enche o meu coração de tristeza.

Esta tarde, ao chegar a casa, pensava nela, na maneira como nos entendíamos. Com ela sentia-me viver, um mundo de possibilidades maravilhosas abria-se-me à frente no momento em que ela foi arrancada de mim. Até ao presente, foi sempre assim: os que me pareciam ser desse mundo – o único onde me teria podido desenvolver – foram-me arrebatados antes que dele pudesse ter gozado. Desde então tenho-me censurado; reflecti e pensei que talvez fosse porque não soubesse conhecer os que estavam comigo que os lamentava só depois de partirem. Desde este último desgosto, voltei-me mais para os meus pais e falo mais com eles, e creio que um bom domínio está também aí a abrir-se.

Será, pois preciso que eu escreva, para poder mais tarde mostrar aos homens o que foi esta época. Sei que muitos terão lições maiores a dar e factos mais terríveis a revelar. Penso em todos os deportados, em todos os que jazem nas prisões, em todos os que tentaram a grande experiência da partida. Mas isso não deve levar-me a cometer uma cobardia: cada um na sua pequena esfera pode fazer qualquer coisa. E se pode fazê-lo, deve fazê-lo.

Somente, não tenho tempo de escrever um livro. Não tenho tempo, nem tenho a tranquilidade de espírito necessária. E não tenho, sem dúvida, o distanciamento que é requerido. Tudo o que posso fazer é anotar os factos aqui, os quais ajudarão mais tarde a minha memória se quiser narrar, ou se quiser escrever.

Além disso, há uma hora que escrevo, apercebo-me de que é um alívio, e estou decidida a pôr nestas páginas tudo o que estiver na minha cabeça e no meu coração. Agora termino, para ir acabar o serão com a Mamã.

As cinco pessoas que encontramos no céu – Mitch Albom (sugestão de leitura)

Mitch Albom
As cinco pessoas que encontramos no céu
Lisboa, Bertrand Editora, Lda.

Eddie é um veterano da Segunda Guerra Mundial que sente que a sua vida não tem qualquer sentido nem importância, e lamenta o facto de não ter vivido mais intensamente.
No dia do seu 83º aniversário, morre num acidente trágico ao salvar a vida de uma criança. A última coisa que sente é duas mãozinhas a segurar as suas – e depois o silêncio. É então que tudo começa.

As cinco pessoas que encontramos no céu

Excerto

Todos os pais prejudicam os filhos. É inevitável. A juventude, como um vidro cristalino, absorve as impressões do quem a manuseia. Alguns pais deixam manchas, outros provocam brechas, alguns estilhaçam por completo a infância em ínfimos cacos, sem reparação possível.

Os estragos causados pelo pai de Eddie foram, no início os estragos da negligência. Quando era bebé, Eddie raramente ia para o colo do pai e, em criança, costumava ser agarrado pelo braço mais com irritação do que com amor. A mãe de Eddie dava-lhe carinho; o pai encarregava-se da disciplina.

Aos sábados, o pai de Eddie levava-o ao cais. Eddie saía de casa com visões de carrosséis e pedaços de algodão doce, mas, passada uma hora, o pai encontrava uma cara conhecida e dizia: «Olhas-me pelo miúdo?» Até o pai voltar, geralmente; ao fim da tarde, frequentemente embriagado, Eddie ficava à guarda de um acrobata ou de um domador de animais.

Ainda assim, durante horas incontáveis da sua juventude na marginal, Eddie esperava pela atenção do pai, sentado nas balaustradas ou empoleirado, em cima de caixas de ferramentas, na oficina. Muitas vezes, dizia «Eu posso ajudar, eu possa ajudar!», mas a única tarefa que lhe confiavam era rastejar para debaixo da roda-gigante, de manhã, antes de o parque abrir para apanhar as moedas que tinham caído dos bolsos dos clientes na noite anterior.

Pelo menos quatro noites por semana, o pai jogava às cartas. A mesa tinha dinheiro, garrafas, cigarros e regras. A regra de Eddie era simples: não incomodes. Uma vez, tentou pôr-se ao lado do pai e olhar para as cartas, mas o velho pousou o charuto e rebentou como um trovão, dando um estalo na cara de Eddie com as costas da mão. «Pára de respirar por cima do meu ombro!», disse. Eddie desfez-se em lágrimas e a mãe puxou-o para si, lançando um olhar fulminante ao marido. Eddie nunca mais se aproximou.

Noutras noites, em que o jogo de cartas corria mal e as garrafas estavam vazias e a mãe já dormia, o pai levava os seus trovões para o quarto de Eddie e Joe. Vasculhava os poucos brinquedos, atirando-os contra a parede. Depois, obrigava os filhos a deitarem-se de barriga para baixo, na cama, enquanto ele tirava o cinto e lhes batia, aos gritos de que andavam a esbanjar o seu dinheiro em porcarias. Eddie costumava rezar para que a mãe acordasse, mas, mesmo quando ela o fazia, o pai avisava-a para «não se meter». Vê-la no corredor, agarrada ao roupão e tão indefesa como ele, piorava ainda mais a situação. As mãos que tocavam o vidro da infância de Eddie eram, então, duras, calejadas e vermelhas de raiva, e ele passou os seus anos mais tenros a levar murros, estalos e chicotadas. Esse foi o segundo estrago, depois da negligência. O estrago da violência. Atingiu proporções tais que Eddie conseguia adivinhar, pelo soar dos passos no corredor, a força com que ia ser espancado.

Ao longo desse tempo todo, apesar de tudo, Eddie adorava secretamente o pai, porque os filhos adoram os pais mesmo quando eles se portam da pior maneira possível. Antes de poder dedicar-se a Deus ou a uma mulher, um rapaz dedica-se ao pai, mesmo que não faça sentido, mesmo que não haja explicação para tal.

 

E, de vez em quando, como que para alimentar as brasas mais fracas de uma fogueira, o pai de Eddie deixava uma rugia de orgulho estalar o verniz do seu desinteresse. No campo de basebol, junto do pátio da escola da Avenida 14, o pai postava-se atrás da vedação a ver Eddie jogar. Se Eddie lançava a bola para a parte mais distante do campo, o pai fazia um sinal de assentimento com a cabeça e, quando ele o fazia, Edd corria de base em base. Outras vezes, quando Eddie voltava para casa depois de uma briga de beco, o pai reparava nos punhos arranhados ou no lábio cortado. Perguntava «Em que estado ficou o outro tipo?» e Eddie dizia que o tinha amassado bem. Também isto recebia a aprovação do pai. Quando Eddie atacou os miúdos que estavam a chagar o irmão — os «rufias», como lhes chamava a mãe —, Joe ficou envergonhado e escondeu-se no quarto, mas o pai de Eddie disse: «Não lhe ligues. Tu é que és forte. Tens de tomar conta do teu irmão. Não deixes que ninguém lhe toque.»

Quando Eddie começou o liceu, imitava o horário de Verão do pai, levantando-se antes de raiar o Sol e trabalhando no parque até ao cair da noite. No inicio, limitava-se a ocupar-se das diversões mais simples, manobrando as alavancas dos travões, fazendo os carrinhos parar suavemente. Anos depois, foi trabalhar para a oficina. O pai de Eddie testava-o com problemas de manutenção. Dava-lhe um volante estragado e dizia: «Conserta-o». Apontava para uma corrente enredada e dizia» «Conserta-a». Entregava-lhe um pára-choques enferrujado e um pedaço de lixa e dizia: «Conserta». E de todas as vezes, depois de terminada a sua tarefa, Eddie levava o objecto ao pai e dizia: «Está consertado».

À noite, reuniam-se à volta da mesa do jantar, a mãe rechonchuda e transpirada, a cozinhar ao fogão, o irmão, Joe, a falar pelos cotovelos, com os cabelos e a pele a cheirarem a água do mar. Joe tornara-se um bom nadador e o seu emprego de Verão era trabalhar na piscina de Ruby Pier. Joe falava sobre todas as pessoas que por lá via, os seus fatos-de-banho, o seu dinheiro. O pai de Eddie não ficava impressionado. Uma vez, Eddie ouviu-o falar com a mãe acerca de Joe. «Aquele», disse ele, «só tem resistência para a água.»

Ainda assim, Eddie tinha inveja da maneira como o irmão aparecia ao jantar, tão bronzeado e limpo. As unhas de Eddie, como as do seu pai, estavam manchadas de gordura e, à mesa do jantar, Eddie limpava-as com a unha do polegar, tentando retirar a sujidade. Apanhou o pai a observá-lo, uma vez, e o velho sorriu.

— Mostra que tiveste um dia de trabalho duro — disse ele, e mostrou as suas próprias unhas sujas, antes de enrolar os dedos à volta de um copo de cerveja.

Nessa altura — já um adolescente bem constituído — Eddie limitava-se a fazer que sim com a cabeça. Sem tomar consciência disso, iniciara um ritual de sinalização com o pai, abdicando de palavras ou de afecto físico. Tudo devia ser feito internamente. Sabiam o que sentiam e ponto final. Recusa de afecto. Os estragos estavam feitos.

 

E, então, uma noite, deixaram de falar. Foi depois da guerra, quando Eddie teve alta do hospital e tirou o gesso da perna e voltou para o apartamento da família, na Avenida Beachwood. O pai tinha estado a beber no pub do bairro e, quando voltou para casa, tarde, deparou com Eddie a dormir no sofá. As trevas do combate tinham mudado Eddie. Não saía de casa. Raramente falava, mesmo com Marguerite. Passava horas a olhar pela janela da cozinha, a ver o carrossel, a esfregar o joelho ferido. A mãe sussurrava que «ele precisa de tempo para recuperar), mas, a cada dia que passava, o pai estava cada vez mais agitado. Não compreendia o conceito de depressão. Para ele, era sinal de fraqueza.

— Levanta-te — gritou, proferindo as palavras com dificuldade — e arranja um emprego.

Eddie mexeu-se ligeiramente. O pai voltou a gritar.

— Levanta-te… e arranja um emprego!

O velho estava trôpego, mas aproximou-se de Eddie e deu-lhe um empurrão.

— Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te… e… ARRANJA UM EMPREGO!

Eddie apoiou-se nos cotovelos.

— Levanta-te e arranja um emprego! Levanta-te e…

— CHEGA! — gritou Eddie, pondo-se de pé e ignorando a explosão de dor no joelho. Lançou um olhar fulminante ao pai, o seu rosto a escassos centímetros do dele. Sentiu o hálito a álcool e cigarros.

O velho olhou para a perna de Eddie. Baixou a voz e grunhiu:

— Vês? Não… estás… assim… tão ferido.

Recuou um passo e fez menção de lhe dar um murro, mas Eddie moveu-se instintivamente e agarrou o braço do pai em pleno ar. O velho arregalou os olhos. Era a primeira vez que Eddie se defendia, a primeira vez que fazia qualquer coisa para impedir uma sova, em vez de aguentá-la como se a merecesse O pai baixou os olhos para o seu próprio punho cerrado, suspenso no ar, as suas narinas adejaram, os dentes rangeram e ele recuou, cambaleante, e soltou o braço das garras de Eddie. Fitou Eddie com os olhos de um homem que vê um comboio a afastar-se.

Nunca mais voltou a falar com o filho.

Esta foi a marca final no vidro de Eddie. O silêncio. Assombrou os seus restantes anos de vida. O seu pai remeteu-se ao silêncio quando Eddie saiu de casa e foi morar para o seu próprio apartamento, remeteu-se ao silêncio quando Eddie arranjou emprego como motorista de táxi, silêncio no casamento de Eddie, silêncio quando Eddie vinha visitar a mãe. Ela implorava, chorava e suplicava para que o marido mudasse de ideias, para que deixasse o rancor para trás, mas o pai de Eddie limitava-se a dizer, por entre os maxilares cerrados, o mesmo que dizia a todas as outras pessoas que lhe faziam o mesmo pedido: «O rapaz levantou-me a mão». E assunto encerrado.

Todos os pais prejudicam os filhos. Esta foi a sua vida juntos. Negligência. Violência. Silêncio. E, agora, algures para lá da morte, Eddie deixou-se cair contra uma parede de aço inoxidável e afundou-se num banco de neve, novamente ferido pela recusa de um homem cujo amor, quase inexplicavelmente, ele ainda desejava, um homem que o ignorava, até no Céu. O seu pai. Os estragos estavam feitos.

A folha do limoeiro – Memórias – Mónica Baldaque (sugestão de leitura)

Mónica Baldaque
A folha do limoeiro – Memórias
Porto, Asa Editores, 2001

Vivemos rodeados de vozes. E não são apenas vozes de pessoas. Tudo tem voz. O vento, a chuva, as folhas das árvores; uma cidade, uma rua, uma casa. As próprias recordações têm uma voz. São companhias, são laços fortes com os encontros que constroem os cenários da nossa vida. Se nos dedicarmos a ouvir as vozes que nos acompanham, sentimos necessidade de as fixar, e de partilhar com elas a nossa própria voz. Ou assim, em tom de memórias escritas ou pintadas. Ou de tantas outras maneiras que vocês descobrirão.

Laura, sou eu, é percorro aqui o tempo de um ano de infância, passado entre o Porto e o Douro. E anoto atmosferas, sentimentos, toda uma forma de ver rolar os dias, como se os espreitasse sempre por detrás de um cortinado…

Acompanha-me ao longo do texto a folha do limoeiro, pela qual eu bebia a água gelada da mina, que corria brilhante e rápida, sobre o musgo e uma terra macia e dourada como um pó de arroz. Simbolizando a água da vida, a fonte da juventude eterna. Três vozes principais se encontram aqui.

A primeira voz é a de minha avó Laura. Uma voz do não-dito, que esteve presente até aos 97 anos, às vezes já refugiada no esquecimento, outras vezes na memória.

A segunda voz é a de minha mãe, Agustina. Uma voz que é um dom, de um tempo que é propriedade sua. Uma vida de belas palavras, entre nuvens, brumas e ventos, num percurso circular, sem fim.

A terceira voz é a minha: Laura, que murmura encontros e memórias de três gerações.

Uma mulher rebelde – Ayaan Hirsi Ali (sugestão de leitura)

Ayaan Hirsi Ali
Uma mulher rebelde
Lisboa, Editorial Presença

Desde o seu nascimento em Mogadísio, Somália, em 1969, até ao momento em que consegue fugir para a Europa, Ayaan Hirsi Ali foi vítima de muitas das violências que todos os dias são praticadas sobre milhões de mulheres em todo o mundo islâmico, mas a sua inteligência acutilante e o seu espírito independente e combativo trouxeram-na até ao Ocidente e fizeram-na chegar a membro do parlamento holandês, sem nunca esquecer a luta pelos direitos das mulheres e de outros grupos tiranizados pela cultura muçulmana.

(excertos)

Tal como em muitos outros países da África e do Médio Oriente, «purificam-se» as rapariguinhas amputando-as dos órgãos genitais. Não há outra maneira de descrever este procedimento, feito normalmente por volta dos cinco anos. Uma vez cortado o clitóris e retalhados ou nivelados os lábios do sexo – em algumas regiões, por compaixão, limitam-se a retalhá-los e picá-los – toda a zona é cosida, de maneira que, muitas vezes, a pele sacarificada da rapariguinha forma, ao cicatrizar, uma espécie de grosso cinto de castidade. É deixado apenas um pequeno orifício para a urina sair. Apenas uma penetração violenta pode rasgar a cicatriz; é o que acontece aquando da primeira relação sexual.

A mutilação sexual das mulheres é anterior ao Islão. Nem todos os povos muçulmanos a fazem, e há algumas comunidades não muçulmanas que a praticam. Na Somália, porém, onde todas as raparigas praticamente são vítimas desta prática, a excisão é sistematicamente feita em nome do Islão. Uma rapariga não excisada será possuída pelos demónios, sucumbirá ao vício, tornar-se-á uma prostituta e, depois da morte, uma alma penada. Os imãs nunca desaconselham esta prática já que, na sua opinião, ela faz que as raparigas se mantenham puras.

Muitas raparigas morrem em consequência da excisão ou das infecções que provoca. Há outras complicações que podem deixar sequelas penosas, por vezes definitivas. O meu pai era um homem moderno e que considerava esta prática bárbara, tendo insistido sempre em que as suas filhas não fossem submetidas a ela. Neste particular, era um homem que estava muito à frente do seu tempo. Mahad, aos seis anos, também não tinha sido circuncidado, mas talvez por outras razões.

Pouco depois da minha primeira briga na madrassa, a minha avó decidiu que era altura de sermos todos submetidos à purificação ritual. O nosso pai estava na cadeia, a nossa mãe andava em viagem, mas felizmente estava lá a avó para velar pelo respeito das tradições ancestrais.

Depois de ter feito os preparativos, a avó andou toda a semana numa excelente disposição. Foi instalada uma mesa especial no seu quarto e, durante toda a semana, recebemos as visitas das tias, conhecidas e desconhecidas. Quando chegou o grande dia, eu não estava com medo, apenas com curiosidade. Não fazia ideia do que ia acontecer, sabia apenas que era um dia de festa e que, os três, íamos ser purificados. Depois disso, já ninguém poderia chamar-me kintirleey.(1)

Mahad foi o primeiro. Mandaram-me sair do quarto, mas eu espreitei por um buraco da porta. O meu irmão estava deitado no chão, com a cabeça e os braços pousados nos joelhos da avó. Entre as pernas de Mahad, que duas mulheres mantinham abertas, estava ajoelhado um homem que eu nunca tinha visto.

Estava calor no quarto, pairava no ar um cheiro a suor e a incenso. A avó sussurrava ao ouvido de Mahad: «Não chores, não manches a honra da tua mãe. Estas mulheres vão contar tudo o que viram. Cerra os dentes.» Mahad não emitia qualquer som, mas as lágrimas corriam-lhe pela cara crispada de dor.

Eu não via o que o homem lhe estava a fazer, mas vi-lhe as mãos cheias de sangue e tive muito medo.

Era a minha vez. A avó aproximou-se de mim e disse: «Vão tirar-vos esse kintir comprido, e então, tu e a tua irmã, ficareis puras.» A julgar pelas palavras e pelos gestos da avó, esse vergonhoso kintir entre as minhas pernas, o meu clitóris, cresceria tanto que me balançaria nas pernas a cada passo que desse. Pegou em mim e, com uma mão firme, colocou-me na mesma posição que Mahad. Duas mulheres abriram-me as pernas. O homem, provavelmente um circuncisor itinerante do clã dos ferreiros, pegou numa tesoura. Com a outra mão, pôs-se a apalpar e a puxar o que eu tinha entre as pernas, como a minha avó quando ordenhava uma cabra. «Cá está ele, o kintir, cá está», disse uma mulher.

Vi então as lâminas a baixarem entre as minhas pernas e o homem cortou-me os pequenos lábios e o clitóris. Ouvi um som, como o do golpe do talhante quando retira a gordura da carne. Senti uma dor fulgurante, indescritível, e desatei a gritar. Tinham ainda de me coser: lembro-me da agulha comprida e embotada com que o homem furava os meus lábios ensanguentados, dos meus gritos de angústia e dor, das palavras da minha avó. «Isto é só uma vez na vida, Ayaan. Sê forte, ele está quase a acabar.» O homem acabou, cortou o fio com os dentes.

É tudo do que me lembro.

Lembro-me disto e também dos gritos de gelar o sangue de Haweya, que foi a última. Embora fosse mais pequena do que nós — tinha quatro anos, eu tinha cinco, Mahad seis — , deve ter-se debatido mais, ou talvez as mulheres já estivessem cansadas de nos segurarem, por isso agarravam-na com menos firmeza: foi assim que ficou cheia de cortes nas coxas. Ficou com as cicatrizes para o resto da vida.

Adormeci e só acordei ao cair da noite. Tinham-me atado as pernas para impedir que eu me mexesse e para facilitar a cicatrização. Sentia a bexiga a pontos de rebentar, mas já tentara urinar e a dor era insuportável. Coberta de sangue e suor, sacudida por calafrios, o meu sofrimento não acabava. No dia seguinte, a minha avó conseguiu que eu fizesse umas gotas. A dor era inimaginável. Quando estava deitada, era muito forte, mas, quando urinava tornava-se tão intensa como no momento em que tinha sido retalhada.

A nossa convalescença durou cerca de duas semanas. A avó estava sempre à nossa cabeceira, inesperadamente meiga e afectuosa, acorrendo a cada grito de angústia, a cada gemido, mesmo durante a noite. Depois de cada passagem dolorosa pela casa de banho, lavava-nos cuidadosamente as feridas com água morna e fazia-nos os pensos com panos embebidos num líquido roxo. Depois voltava a atar-nos as pernas e dizia-nos para ficarmos completamente imóveis, senão as feridas abrir-se-iam e seria necessário chamar o senhor para que ele voltasse a coser-nos.

Ao fim de uma semana, o homem veio examinar-nos. Achou que Mahad e eu cicatrizávamos bem, mas que Haweya, pelo contrário, tinha rasgado os pontos de sutura de tanto se debater nos braços da avó e quando urinava. Era preciso voltar a cosê-la. Lembro-me dos seus gritos quando o homem o fez: era uma agonia para ela. Aquilo foi uma tortura para nós os três, mas Haweya foi sem dúvida quem mais sofreu.

Mahad já andava a pé, completamente curado, quando o homem voltou para tirar os pontos. Mais uma vez, magoou-me muito. Começava por soltar os fios com uma pinça de depilação, depois arrancava-os com puxões secos. A avó e duas outras mulheres tiveram de me segurar. Depois disto fiquei mesmo com uma grande cicatriz entre as coxas, que me doía se me mexesse muito, mas, pelo menos, não voltaram a atar-me as pernas e não tinha de ficar deitada todo o dia sem me mexer.

Urna semana depois foi a vez de Haweya. Foram precisas quatro mulheres para a segurarem. Dessa vez eu estava dentro do quarto e nunca mais esquecerei a expressão de pânico na sua cara e os gritos lancinantes que ela soltava, lutando com todas as suas forças para manter as pernas fechadas.

A partir de então, Haweya nunca mais foi a mesma. Ficou várias semanas doente, com febre, perdeu muito peso, enfraqueceu. À noite tinha pesadelos horríveis e, durante o dia, isolava-se, tornando-se cada vez mais solitária. A minha irmãzinha, que dantes era traquina e alegre, passava horas sem fazer nada, de olhar perdido. Depois daquela operação, começámos todos a fazer xixi na cama, e Mahad ainda durante muito tempo.

(1) que tem clítoris

**

Neelie tinha previsto ir ver o filho, que vivia em S. Francisco, e foi lá que nos encontrámos. Eu disse-lhe que pensava ficar nos Estados Unidos para fazer um doutoramento. Falámos de política. Ela ouviu-me a falar do século das Luzes, de John Stuart Mill, da jaula que a opressão das mulheres representava, depois olhou-me com um ar decidido e disse: «Você não é socialista. Você é das nossas.»

Nellie disse-me ainda que os meus sonhos de estudos universitários não passavam de uma quimera; nunca levavam a lado nenhum. Por mais entusiasmo que a minha tese de doutoramento suscitasse, acabaria no fundo de uma gaveta sem fazer avançar um milímetro que fosse a causa das muçulmanas. O mais importante era eu expor perante os responsáveis políticos a realidade vivida por essas mulheres e assegurar-me de que as leis existentes – sobre a igualdade entre os sexos, por exemplo – eram concretamente aplicadas. O meu combate situava-se ao nível da acção, não das ideias. Devia apresentar-me às eleições e entrar para o Parlamento, onde teria um verdadeiro impacte sobre a emancipação das mulheres muçulmanas e sobre a integração dos imigrantes.

Passei a noite a pensar no que Neelie me dissera. Eu estava a tentar chegar aonde? A três coisas: primeiro, que a Holanda acordasse e cessasse de tolerar a opressão das mulheres muçulmanas no seu solo; o governo deveria tomar medidas para as proteger e para castigar os seus opressores. Segundo, queria suscitar na comunidade muçulmana um debate sobre a reforma de alguns aspectos do Islão que permitissem aos seus membros fazer perguntas e criticar as suas crenças. Isso apenas poderia acontecer no Ocidente, onde os muçulmanos tinham a liberdade de se exprimir.

Terceiro: queria que as mulheres muçulmanas compreendessem até que ponto o seu sofrimento era inaceitável. Queria ajudá-las a dotarem-se de um vocabulário de resistência. Inspirava-me em Mary Wollstonecrait, a pioneira feminista que, simplesmente, disse às mulheres que a sua capacidade de raciocínio valia tanto como a dos homens e que mereciam ter os mesmos direitos. Mesmo depois de ter publicado A Vindication of the Rights of Women, passou-se mais de um século antes que as sufragistas pudessem desfilar nas ruas exigindo o direito ao voto. Sabia que a libertação das mulheres muçulmanas das suas grilhetas mentais levaria muito tempo ainda. Não esperava ser imediata e maciçamente seguida pelas mulheres muçulmanas. Quando as mulheres estão tão condicionadas à humildade, já não têm praticamente inteligência própria e, infelizmente, são incapazes de se organizar e de exprimir as suas opiniões.

Quando eu estava no grupo de reflexão do Partido do Trabalho, tentando fazer passar estas minhas ideias, acusavam-me sempre de não ter estatísticas que as apoiassem. Na verdade, porém, não existiam números. Quando tentava saber quantas raparigas tinham sido mortas pelos pais por questões de honra, na Holanda, os funcionários do Ministério da Justiça respondiam-me: «Não temos registos de mortes ocorridas com base nessa categoria de motivação. Isso significaria estigmatizar um grupo social.» O Estado registava o número de homicídios ligados à droga, mas não os crimes de honra porque os funcionários se recusavam a reconhecer que tais crimes eram cometidos efectiva e regularmente.

Nem sequer a Amnistia Internacional tinha qualquer estatística respeitante às mulheres vítimas de crimes de honra no mundo. O número de homens presos e torturados era conhecido, mas não o das mulheres flageladas em público por adultério. Era um assunto que não lhes interessava.

Decidi que, se viesse a ser membro do Parlamento, me poria como missão sagrada efectuar um recenseamento destes crimes. Queria que, de cada vez que um homem matasse a filha porque ela tinha um namorado qualquer em qualquer parte, isso fosse registado. Queria que todas as violências domésticas – incluindo a violação e o incesto – fossem registadas e classificadas no respectivo grupo étnico e que se pudesse calcular quantas rapariguinhas tinham sido excisadas por ano nas mesas de cozinha holandesas. Eu sabia que estes números, uma vez conhecidos, criariam uma onda de choque no país. E desacreditariam definitivamente a atitude complacente dos relativistas que afirmavam a igualdade entre todas as culturas. Já ninguém teria a desculpa de não saber.
Se eu estivesse no Parlamento, poderia transformar as minhas convicções em actos, e não apenas falar sobre elas. E Neelie tinha razão: mesmo eu considerasse o Partido do Trabalho como o meu partido – e apesar da minha lealdade para com Paul Kalma e Job Cohen – algumas das suas ideias não se me adequavam. A finalidade da social-democracia era defender os grupos, não os indivíduos. O Partido Liberal, talvez mais duro, baseava a sua filosofia nos valores da liberdade individual. Sentir-me-ia ali mais à vontade.

Além disso, na política, eu era – e continuo a ser – uma mulher de uma só causa. Estou convicta, também, de que essa causa será para a nossa sociedade e para o nosso planeta o principal problema a resolver no século XXI. Todas as sociedades ainda dominadas pelo Islão oprimem as mulheres ou atrasam o seu desenvolvimento. Quase todas estas sociedades são pobres e se debatem com conflitos e guerras, ao passo que as sociedades que respeitam os direitos das mulheres e a sua liberdade são prósperas e vivem em paz.

Pegadas na Areia – Margeret Fishback Powers (sugestão de leitura)

Margeret Fishback Powers
Pegadas na Areia
Alfragilde, Estrela Polar

O poema “Pegadas na Areia” foi escrito em 1964 por Margeret Fishback, uma jovem que procurava orientação numa encruzilhada da sua vida.
A criação do poema, a sua perda subsequente e a sua espantosa redescoberta estão interligados com a história do encontro de Margeret com o seu actual marido Paul e os desafios e alegrias da sua vida em conjunto.

(excerto)

Dificuldades e provações

“… nas horas de provação e de sofrimento. Nunca.
Quando viste na areia apenas um par de pegadas
foi porque Eu te carreguei ao colo.”

A decisão estava tomada. Acabavam-se, para a família Powers, as andanças pelos Estados Unidos a fazer espectáculos de magia em cenários laicos. Há muito tempo que eu rezava por deixarmos a vida tipo Hollywood que levávamos há demasiados anos. Uma batalha verbal, travada numa auto-estrada de Los Angeles, enquanto tentávamos abrir caminho no trânsito de sexta-feira à noite, precipitou a decisão. Continuar a ler

Um Amigo Invulgar – L. S. Mathews (sugestão de leitura)

L. S. Mathews
Um Amigo Invulgar
Lisboa, Editorial Presença

Não sabemos se Tigre é rapaz ou rapariga, porque a história é contada pela própria criança que a vive e ela não se lembrou de deixara clara essa questão. Sabemos que tem 11 anos e acompanhou os pais na sua missão como voluntários numa organização humanitária, para virem ajudar as pessoas deste país onde havia guerra. Tigre só se lembra desta pequena aldeia, e dá-nos a conhecer o seu mundo com uma limpidez quase táctil. Sabemos que é um país devastado, onde existe fome, doença e as pessoas carecem de tudo, um país, além disso, assolado pela seca extrema e por chuvas torrenciais que transformam a poeira em lama pardacenta. Um dia, numa poça de lama deixada pela chuva, Tigre encontra um lindíssimo peixe de escamas irisadas. Quando os pais lhe anunciam que têm de partir numa perigosa jornada pelas montanhas, para fugir aos soldados que se aproximam, Tigre sabe que não poderá deixar para trás o seu amigo peixe. Uma história invulgar, generosa, contada com a magia de um sonho, que poderá ser apreciada de muitas maneiras, conforme o olhar de quem a lê.

Continuar a ler

Sugestões de leitura para adultos – edições portuguesas

o olhar de sophie jojo moyesO olhar de Sophie

Jojo Moyes
Porto Editora, 2014

Somme, 1916. Sophie vive numa vila ocupada pelo exército alemão, tentando sobreviver às privações e brutalidade impostas pelo invasor, enquanto aguarda notícias do marido, Edouard Lefèvre, um pintor impressionista, que se encontra a lutar na Frente. Quando o comandante alemão vê o retrato de Sophie pintado por Edouard, nasce uma perigosa obsessão que leva Sophie a arriscar tudo – a família, a reputação e a vida.
Quase um século depois, o retrato de Sophie encontra-se pendurado numa parede da casa de Liv Halston, em Londres. Entretanto, Liv conhece o homem que a faz recuperar a vontade de viver, após anos de profundo luto pela morte prematura do marido. Mas não tardará que Liv sofra uma nova desilusão – o quadro que possui é agora reclamado pelos herdeiros, e Paul, o homem por quem se apaixonou, está encarregado de investigar o seu paradeiro…
Até onde estará Liv disposta a ir para salvar este quadro? Será o retrato de Sophie assim tão importante que justifique perder tudo de novo?


comércioUm comércio respeitável

Philippa Gregory
Porto Editora, 2013

1787. Bristol é uma cidade em franco crescimento, uma cidade onde o poder atrai os que estão dispostos a correr riscos. Josiah Cole, um homem de negócios que se dedica ao comércio de escravos, decide arriscar tudo para fazer parte da comunidade que detém o poder na cidade. No entanto, para isso, Cole vai precisar de capital e de uma esposa bem relacionada que lhe abra as portas necessárias. Casar com Frances Scott é uma solução conveniente para ambas as partes. Ao trocar as suas relações sociais pela proteção de Cole, Frances descobre que a sua vida e riqueza dependem do comércio respeitável do açúcar, rum e escravos…
Em Um Comércio Respeitável, Philippa Gregory oferece-nos um retrato vívido e impressionante de uma época complexa onde imperam a ganância e a crueldade que devastaram todo um continente.


1A bibliotecária de Auschwitz

Antonio G. Iturbe
Agir, 2014

Minuciosamente documentado, e tendo como base o testemunho de Dita Dorachova, a jovem bibliotecária checa do Bloco 31, este livro conta a história inacreditável, mas verídica, de uma jovem de 14 anos que arriscou a vida para manter viva a magia dos livro, ao esconder dos nazis durante anos a sua pequena biblioteca, de apenas oito volumes, no campo de extermínio de Auschwitz.
Sobre a lama negra de Auschwitz, que tudo engole, Fredy Hirsch ergueu uma escola. Num lugar onde os livros são proibidos, a jovem Dita esconde debaixo do vestido os frágeis volumes da biblioteca pública mais pequena, recôndita e clandestina que jamais existiu.
No meio do horror, Dita dá-nos uma maravilhosa lição de coragem: não se rende e nunca perde a vontade de viver nem de ler, porque, mesmo naquele terrível campo de extermínio nazi, «abrir um livro é como entrar para um comboio que nos leva de férias».
Um romance comovente: uma história maravilhosa, pungente e diferente de tudo o que já leu sobre o Holocausto e de que poucos têm conhecimento.


OsUltimosDiasDosNossosPaisOs últimos dias dos nossos pais

Joël Dicker
Agir, 2014

Em 1940, Winston Churchill desenha um plano que mudará o curso da guerra: criar uma nova unidade nos serviços secretos — Special Operations Executive (SOE) — que leve a cabo ações de sabotagem a partir do interior das linhas inimigas, uma estratégia jamais vista.
Meses mais tarde, o jovem Paul-Émile parte de Paris rumo a Londres com a esperança de se juntar à Resistência. O SOE não tarda a recrutá-lo, bem como a um grupo de jovens voluntários. Depois de um treino brutal, os poucos eleitos para integrar a nova unidade são enviados para a França ocupada com a missão de treinar forças de resistência. Aí conhecerão o amor, o medo, a coragem e a amizade.
Mas, no Continente, a contra espionagem alemã ameaça toda a operação e o destino dos jovens militares…
Os últimos dias dos nossos pais é um livro profundamente humano e uma verdadeira homenagem à coragem e à lealdade.


Uma-Prova-do-CeuUma prova do céu

Dr. Eben Alexander
O testemunho de um neurocirurgião sobre a vida para além da morte
Lua de Papel, 2013

Em novembro de 2008, um reputado neurocirurgião americano contraiu uma espécie rara de meningite. Levado de urgência para o hospital, entrou em coma. Durante sete dias esteve em morte cerebral. Quando a equipa clínica discutia já a hipótese de desligar a máquina, deu-se o primeiro milagre: o médico despertou.
O segundo milagre, só viríamos a conhecê-lo em Uma Prova do Céu. Nos sete dias em que esteve cerebralmente morto, o neurocirurgião viajou até um território inexplorado – a vida depois da morte. O cético cientista, que durante anos negara a existência de Deus, viu-se confrontado com uma experiência transcendente que lhe deixou marcas profundas. Ao sétimo dia, quando emergiu do coma, soube que a sua vida nunca mais seria a mesma.
Autor de mais de 200 artigos científicos, percebeu que a ciência e o divino podem viver lado a lado. E que, como neurocirurgião, iria continuar a investigar os segredos do cérebro, mas agora munido da certeza de que a vida continua depois da morte.


HeregesHereges

Leonardo Padura
Porto Editora, 2015

Em 1939, o S.S. Saint Louis, onde viajavam novecentos judeus fugidos da Alemanha, passou vários dias ancorado no porto de Havana à espera de autorização para desembarcar. Um rapaz, Daniel Kaminsky, e o tio aguardam no cais a saída dos familiares, confiantes de que estes tentariam os oficiais havaneses com o tesouro que traziam escondido: uma pequena tela de Rembrandt, na posse dos Kaminsky desde o século XVII. Mas o plano fracassou e o transatlântico regressou à Europa, levando consigo qualquer esperança de reencontro e condenando muitos dos seus passageiros.
Volvidos largos anos, em 2007, quando essa tela vai a leilão em Londres, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para descobrir o que aconteceu com o quadro e com a sua família. Só um homem como o investigador Mario Conde o poderá ajudar. Elías descobre então que o pai vivia atormentado por um crime, e que esse quadro, uma imagem de Cristo, teve como modelo outro judeu, que quis trabalhar no atelier de Rembrandt e aprender a pintar com o mestre.
Hereges é um romance absorvente sobre uma saga judaica que chega até aos nossos dias e que vem confirmar o autor como um dos narradores mais ambiciosos e internacionais da língua espanhola.


O Homem que gostava de cãesO homem que gostava de cães

Leonardo Padura
Porto Editora, 2015

Em 2004, com a morte da mulher, Iván, um aspirante a escritor, relembra um episódio que lhe aconteceu em 1977, quando conheceu um homem enigmático que passeava pela praia acompanhado de dois galgos russos. Após vários encontros, «o homem que gostava de cães» começou a confidenciar-lhe relatos singulares sobre o assassino de Trótski, Ramón Mercader, de quem conhecia pormenores muito íntimos. Graças a essas confidências, Iván irá reconstituir a trajetória de Liev Davídovitch Bronstein, mais conhecido por Trótski, e de Ramón Mercader, e de como se tornaram vítima e verdugo de um dos crimes mais reveladores do século XX.
Através de uma escrita poderosa sobre duas testemunhas ambíguas e convincentes, Leonardo Padura traça um retrato histórico das consequências da mentira ideológica e do seu poder destrutivo sobre a utopia mais importante do século XX.


pintassilgoO pintassilgo

Donna Tartt
Editorial Presença, 2015

Theo Decker, um adolescente de 13 anos, vive em Nova Iorque com a mãe, com quem partilha uma relação muito próxima e que é a figura parental única, após a separação dos pais pouco antes do trágico acontecimento que dá início a este romance. Theo sobrevive inexplicavelmente ao acidente em que a mãe morre, no dia em que visitavam o Metropolitan Museum. Abandonado pelo pai, Theo é levado para casa da família de um amigo rico. Mas Theo tem dificuldade em se adaptar à sua nova vida em Park Avenue, e sente uma dor profunda pela falta da mãe. É neste contexto que uma pequena e misteriosa pintura que ela lhe tinha mostrado no dia em que morreu se vai impondo a Theo como uma obsessão. E será essa pintura que finalmente, já adulto, o conduzirá a entrar no submundo do crime.
O Pintassilgo é um livro poderoso sobre amor e perda, sobrevivência e capacidade de nos reinventarmos, uma brilhante odisseia através da América dos nossos dias, onde o suspense e a arte são dois elementos decisivos para prender o leitor.


odisseiahomerA odisseia de Homer

Gwen Cooper
Pergaminho, 2011

A última coisa que Gwen Cooper queria era adotar outro gato. Já tinha duas gatas, para não falar de um emprego em que lhe pagavam uma miséria, e estava a tentar recuperar de uma separação difícil. Até que a veterinária das suas gatas ligou para lhe falar de um gatinho de três semanas, abandonado e maltratado, cujos olhos tiveram de ser retirados cirurgicamente. Gwen era a sua última esperança de encontrar um lar. Foi amor à primeira vista. O gatinho era uma bola de pêlo mínima, preta e assustada e, mesmo tendo consciência das dificuldades que ele enfrentaria por causa da sua cegueira, Gwen decidiu adotá-lo — e ele tornou-se os olhos pelos quais ela passaria a ver o mundo.
Batizado de «Homer» — uma homenagem ao poeta grego supostamente cego, criador da Odisseia e do seu herói, Ulisses — este gatinho cresceu até se tornar um animal forte, confiante, cheio de entusiasmo e com uma vontade inesgotável de brincar! Mas foi a lealdade inabalável de Homer, com sua capacidade ilimitada de amar e o seu exemplo de força, superação e coragem, que levou Gwen a mudar a sua vida. E, quando conheceu o homem com quem viria a casar, Gwen percebeu que Homer lhe tinha ensinado a lição mais importante da vida: que o amor não é algo que possa ser visto com o olhar.


O jardim dos segredos

Kate Morton
Porto Editora, 2014

Uma criança perdida: em 1913 uma criança é encontrada só, num barco que se dirigia à Austrália. Uma mulher misteriosa prometera tomar conta dela, mas desapareceu sem deixar rasto.
Um terrível segredo: no seu 21.º aniversário, Nell Andrews descobre algo que mudará a sua vida para sempre. Décadas depois, embarca em busca da verdade, numa demanda que a conduz até à costa da Cornualha e à bela e misteriosa Mansão Blackhurst.
Uma herança misteriosa: aquando do falecimento de Nell, a neta, Cassandra, depara-se com uma herança surpreendente. A Casa da Falésia e o seu jardim abandonado são famosos nas redondezas pelos segredos que ocultam — segredos sobre a família Mountrachet e a sua governanta, Eliza Makepeace, uma escritora de obscuros contos de fadas. É aqui que Cassandra irá por fim desvelar a verdade sobre a família e resolver o mistério de uma pequena criança perdida.
Um livro marcante, que aborda com mestria a complexidade dos sentimentos humanos.


No país da nuvem branca

Sarah Lark
Marcador, 2014

Londres, 1852. Duas raparigas empreendem uma viagem de barco rumo à Nova Zelândia e tornam-se amigas. Trata-se, para ambas, do início de uma nova vida como futuras esposas de dois homens que conhecem apenas por correspondência. É o começo de uma nova vida com homens que não conhecem. Gwyneira, de origem nobre, está prometida ao filho de um magnata da criação de ovelhas, enquanto Helen, uma jovem precetora, parte para se casar com um fazendeiro. Procuram encontrar a felicidade num país que promete ser o paraíso. No entanto, as ilusões de ambas depressa se esfumam, principalmente quando descobrem que a sua amizade está em perigo porque os maridos são inimigos.
Gwyneira e Helen são mais fortes do que acreditavam ser e rompem com os preconceitos e as restrições da sociedade onde vivem, mas serão capazes de alcançar o amor e a felicidade do outro lado do mundo?
Um romance cativante sobre o amor e o ódio, a confiança e a inimizade, e sobre duas famílias cujo destino está indissoluvelmente unido.


um presenteUm presente muito especial

Joanne Huist Smith
Nascente, 2014

Depois da morte inesperada do marido, Joanne sente-se incapaz de retomar a sua vida e de ser o exemplo de força que os seus filhos, Ben, Nick e Megan, precisam mais do que nunca. Com a aproximação da quadra natalícia, tudo parece ainda mais duro de suportar.
Mas, 12 dias antes do Natal, um presente é deixado misteriosamente à porta de casa, acompanhado de um cartão com a assinatura «Os vossos verdadeiros amigos». No dia a seguir, um novo presente, no dia seguinte mais um presente, e assim acontece, até à véspera de Natal.
Estes 12 presentes irão tornar-se uma dádiva de grandeza incomparável e acabam por dar origem a um milagre: a reaproximação entre mãe e filhos e o fortalecimento dos seus laços de amor.
Uma história que aquece o coração e que mostra como simples atos de bondade são capazes de transformar um momento doloroso num caminho de força e amor.


Enquanto houver estrelas no céu

Kristin Harmel
Porto Editora, 2014

Desde sempre, Rose, ao entardecer, olhava o céu em busca da estrela da tarde. Era aquela estrela, agora que a sua memória estava a abandoná-la, que lhe permitia recordar-se de quem era e de onde vinha; que a transportava para os seus dezassete anos, para uma confeitaria nas margens do Sena. Ninguém conhecia a sua história nem sequer a sua neta, Hope. Num dos seus raros momentos de lucidez sente que é importante falar-lhe de um passado longínquo, que manteve em segredo durante setenta anos e que em breve ficará perdido para sempre. Munida de uma lista de nomes e de fragmentos de uma vida, Hope parte para Paris em busca de respostas.
Para Hope esta será também uma viagem de descoberta: de tradições religiosas há muito diluídas, de histórias vividas numa Paris ocupada onde o amor sobrevive e, sobretudo, da sua capacidade de recomeçar e acreditar em si mesma.

Kristin Harmel escreve com tamanha perspicácia e emoção que as personagens que criou permanecem com o leitor muito depois de este terminar o livro.


Mil sóis resplandecentes

Khaled Hosseini
Presença, 2008

Mil Sóis Resplandecentes é um romance pleno de sensibilidade, que tem como pano de fundo as convulsões sociopolíticas que abalaram o Afeganistão nas últimas três décadas.

Mariam e Laila são duas mulheres que a guerra e a morte obrigam a partilhar um marido comum e cuja coragem lhes permitirá lutar pela sua felicidade num cenário impiedoso.

Uma obra inesquecível que evoca o que há de mais intrínseco em todos os seres humanos: o direito ao amor, a um lar e à integridade, e que reflete sobre as relações humanas face à impunidade e às atitudes de tirania.


Não odiarei

Izzeldin Abuelaish
Planeta, 2012

O doutor Izzeldin Abuelaish — agora conhecido com o “Médico de Gaza” — tornou-se conhecido em todo o mundo na sequência de uma terrível tragédia: a 16 de Janeiro de 2009, bombardeiros israelitas atingiram a sua casa na Faixa de Gaza, matando três das filhas e a sobrinha.
Médico palestiniano formado em Harvard, nascido e criado num campo de refugiados na Faixa de Gaza, Abuelaish tem, ao longo de quase toda a sua vida, cruzado as linhas que dividem israelitas e palestinianos, na qualidade de médico que assiste as vítimas de ambos os lados do conflito; como humanista, tem também pugnado pelos direitos das mulheres a melhor saúde e educação, e pelo desenvolvimento no Médio Oriente.
Como pai de três filhas mortas por soldados israelitas, a sua reação a esta tragédia fez notícia e valeu-lhe prémios humanitários em todo o mundo. Em vez de procurar vingança ou de se abandonar ao ódio, tem apelado ao entendimento entre os povos da região, sendo a sua esperança mais profunda a de que as filhas venham a ser “o último sacrifício no caminho para a paz entre palestinianos e israelitas.”


Holocausto Brasileiro
Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil

Daniela Arbex
Guerra e Paz editores, 2014

Em Holocausto Brasileiro, a premiada jornalista de investigação Daniela Arbex resgata do esquecimento esta chocante e macabra história do século XX brasileiro: um genocídio feito pelas mãos do Estado, com a conivência de médicos, funcionários e população, que roubou a dignidade e a vida a 60.000 pessoas.
Bebiam água do esgoto. Comiam ratos. Morriam ao frio e à fome. Eram exterminados com electrochoques tão fortes, que toda a cidade ficava sem luz, por sobrecarga da rede. Os bebés eram roubados às mães logo à nascença. Nos períodos de maior lotação, morriam 16 pessoas por dia dentro dos muros do Colônia. Ao morrer, davam lucro. Os cadáveres eram vendidos às faculdades de medicina. Quando o número de corpos excedia a procura, eram decompostos em ácido, no pátio, diante dos pacientes. Os ossos eram comercializados. Nada ali se perdia. Excepto a vida.
É a essas 60.000 pessoas que Daniela Arbex devolve agora o rosto e a identidade, num relato que recupera o testemunho dos poucos sobreviventes e dá voz aos milhares que já não podem contar a sua própria história. O hospício de Colônia só foi transformado em verdadeiro Centro Hospitalar Psiquiátrico em 1980.


ettyEtty Hillesum: Uma vida transformada

Patrick Woodhouse
Paulinas, 2011

A 9 de março de 1941, uma judia holandesa de 27 anos de idade, chamada Etty Hillesum — que vivia na cidade de Amesterdão, ocupada pelo inimigo — escreveu a sua primeira entrada num diário, que se tornou um dos mais notáveis documentos surgidos do Holocausto nazi. Ao longo dos seguintes dois anos e meio, uma jovem mulher insegura, caótica e perturbada foi transformada numa pessoa que inspirava todos aqueles com quem partilhava o sofrimento do campo de trânsito de Westerbork e com quem viria a perecer em Auschwitz.
Através dos seus diários e cartas, ela continua a ser alguém de profundamente inspirador: uma jovem extraordinariamente viva e expressiva, que viveu uma espiritualidade de esperança no período mais sombrio do século XX.
Etty Hillesum: uma vida transformada explora a vida e os escritos de Etty, revelando-a como uma figura assombrosamente contemporânea.


as serviçaisAs serviçais

Kathryn Stockett
Saída de Emergência, 2013

Skeeter tem vinte e dois anos e acaba de regressar da universidade. Pode ter uma licenciatura, mas estamos em 1962, no Mississípi, e a sua mãe só a irá deixar em paz quando a vir com uma aliança no dedo. Provavelmente a jovem encontraria conforto junto da sua adorada Constantine, a empregada negra que a criou, mas esta foi embora e ninguém lhe diz para onde.
Aibileen é uma empregada negra que criou dezassete crianças brancas. Mas desde que o seu próprio filho morreu, algo mudou dentro de si. Quem a conhece sabe que tem um grande coração e uma história ainda maior para contar. Minny, a melhor amiga de Aibileen, é a mulher com a língua mais afiada do Mississípi. Cozinha divinamente, mas tem sérias dificuldades em manter o emprego… até ao momento em que encontra uma nova e insólita patroa.
Estas três personagens extraordinárias vão cruzar-se e iniciar um projeto clandestino que as vai colocar a todas em perigo. E porquê? Porque estão a sufocar com as barreiras que definem a sua cidade, o seu tempo e as suas vidas.

O Gatinho Ximi – Albertina Pinela

O Gatinho Ximi

  

Certo dia o gatinho Ximi, aborrecido da casa e do quintal, resolveu conhecer terras distantes.

Então, depois de ter escrito um bilhete de despedida, deu brilho ao pêlo, bebeu água, blá, blá para aqui, blá, blá para acolá, e saiu sorrateiramente.

À frente da casa apanhou o transporte dos gatos. Nesse transporte viajavam outros gatos, mas não deu conversa, ocupado a saborear as ideias e o conforto do assento. Não era por natureza egoísta, porém acabava de tomar uma decisão importante e só ela o ocupava.

A viagem foi longa até à grande floresta escolhida. Lá tinha a certeza de encontrar bichos de muitas famílias e fazer amigos entre os linces de quem esperava saudações amigáveis. O seu maior desejo era conhecer o território dos linces e viver como um deles.

Havia árvores gigantes e os pequenos arbustos dificultavam-lhe a passagem. Habituado a todos os mimos, sentia que não era fácil penetrar na natureza profunda e fazer, de repente, amigos.

A certa altura, perto de um riacho, sentou-se para descansar. Alguém o picou e fez reagir:

— O que vem a ser isso? — disse.

Então uma pequena lagartixa, com olhos muito abertos, cumprimentou-o.

— Sou eu, não quis incomodar-te, foi sem querer. Vais ter de te habituar a estas pequenas surpresas.

— Não te vi. Onde estavas quando cheguei?

— Estava a tomar o meu banho de sol entretida com o canto variável dos pássaros.

— Já reparei. De onde eu venho ouvia discos sucessivos, diferentes. Era só escolher e ligar a música.

— Aqui não precisamos de fazer isso. Numa floresta murmura a folhagem, o vento, o sol, a chuva, os troncos, tudo é música distinta e harmoniosa — respondeu a lagartixa.

— Tenho vindo a observar isso mesmo. Mas onde estão as famílias dos animais? Devo andar muito distraído para quase só ter visto a passarada.

— Não estás, não. É normal numa floresta densa ser assim. Muitos estão camuflados, ficam quietinhos, da cor natural do meio, e só lentamente se reconhecem.

A lagartixa fez um pequeno gesto e logo ali apareceu um camaleão, um coelhinho anão, uma raposinha infantil, um gafanhoto, um grilo, uma joaninha, uma salamandra.

— Realmente! Mas na minha aventura existiam apenas animais nobres, ágeis, possantes, junto dos quais a minha vida seria de perfeita liberdade e sonho.

— Disseste animais nobres? Na minha opinião todos os animais são nobres.

— Queria dizer grandes. Não leves a mal.

— Estás a dar os primeiros passos neste lugar imenso. Se caminhares mais um pouco ouvirás urros e guinchos, às vezes também há tempestades.

— Ai sim? — miou o gato. — Estou no começo da aventura e a ideia treme. Alguma coisa parece querer voltar ao princípio.

— Mais à frente moram os linces. Verás como são parecidos contigo — interrompeu a lagartixa.

— Sabes, há qualquer coisa que vou ter de corrigir.

E o gatinho Ximi contou que, apesar de muito estimado, se sentia prisioneiro. A dúvida de entrar assim sem mais nem menos numa família selvagem, livre, livre, livre, não correspondia muito ao que tinha imaginado.

— Dá-me ideia que dessa maneira não vai ser fácil. Deves esforçar-te por conseguir o que desejas, apesar de, a meu ver, teres começado mal. Devias ter feito projectos sérios, pedir conselho e só depois tomarias a decisão da partida.

— Agora o feito, feito. Vou tentar remediar, ser determinado, e decidir.

— Podes contar comigo — disse a lagartixa.

E lá foram para a zona dos linces, que ficaram todos alvoroçados. Um deles aproximou-se e disse:

— Tu não és um gato montês. Se fosses já estarias num lugar mais alto, fugidio, desconfiado. Pareces manso e dócil. De onde vens?

— Venho da cidade, de uma vida luxuosa onde me serviam comida comprada especialmente para mim.

— E deixaste tudo isso?

— Deixei. O meu sonho de todas as noites era a liberdade.

Com ele trepava de árvore em árvore, corria sem ter medo de chocarem muros.

— Pois é. Por aqui podes não encontrar muros, podes até encontrar coisas maravilhosas, deslumbramentos. Por exemplo, eu fico quietinho a ouvir nascer as flores — disse o lince.

— Que bonito! Deves ser muito sensível à beleza.

— Sim, é verdade. A alma leva-me num sonho lindo. E agora, regressando à realidade, deste conta que aqui funciona a lei da selva?

— Quase me assustas!

— Aqui, animais comem outros animais e tu és presa fácil, indefesa. Vai tomando os teus cuidados porque as coisas muitas vezes não são o que parecem.

— Quase me assustas — repetiu o gato ainda mais amedrontado e olhando bem nos olhos do lince.

— Vem, descansa nesse tapete fofo enquanto conversamos.

— Eu sou o gato Ximi.

— Eu sou o lince Amarílis. O meu nome veio de uma flor. Por isso acho que sou protegido por elas. Há quem diga ser protegido por estrelas ou por anjos do céu.

— A minha dona, a Luciana, dizia que era um anjo ou a Lua e que na Lua via Deus.

— Por falares nisso. Queres um conselho de amigo? Regressa. A Luciana deve ser amorosa e está à tua espera. Trepa à árvore alta do quintal, ouve os pardais, sempre mais que muitos na cidade, aos bandos, as flores do jardim e de vez em quando faz uma viagem nem que seja imaginária.

— Tens razão. Porém, tenho encontrado bons amigos e esta será, tenho a certeza, uma aventura inesquecível.

— Conta comigo — disse o lince.

— E comigo, e comigo, e comigo — responderam em coro outros animais.

O lince Amarílis visitou com o gatinho Ximi os lugares mágicos da floresta.

Tudo correu bem porque o lince Amarílis e os animais seus amigos conheciam tudo, palmo a palmo, eram cautelosos e conheciam os melhores esconderijos, quer nas árvores, onde Ximi entretanto tinha aprendido a trepar, quer nas fendas da terra. À hora da partida a lagartixa, a raposinha inocente, o gafanhoto, os papagaios, um javali com os filhos todos, a coruja quase de olhos fechados, apareceram emocionados de alegria e amizade. No dorso do lince, joaninhas partiam e chegavam.

— Dá beijinhos à Luciana. Pergunta-lhe se quer mais animais de estimação.

— Ximi, Ximi, ó meu gatinho Ximi! Vens para ficar? — perguntava Luciana correndo em direcção à paragem.

— Obrigada, Luciana. És meiga, amiga e generosa!

— Sê bem-vindo. Desejo que sejas feliz e principalmente que te sintas livre onde quer que estejas.

 

Albertina Pinela
Às vezes a ternura vem assim…
Lisboa, Petrus Editores, 2006

O Mito do Amor – M. Scott Peck

M. Scott Peck
O Caminho Menos Percorrido
Cascais, Sinais de Fogo, 2000

 

A VIDA É DIFÍCIL.

Com esta frase inicial, M. Scott Peck revoluciona a maneira como vivemos, e isto é tão verdadeiro hoje como o era quando foi escrito, há vinte anos. Neste guia de como enfrentar e resolver os nosso problemas – e viver o sofrimento das mudanças – aprendemos que é possível conseguir serenidade e plenitude na nossa vida.

 

Excerto

 

O Mito do Amor Romântico

Para servir assim tão bem para nos apanhar no casamento, a experiência de se apaixonar tem provavelmente como uma das suas características a ilusão de que a experiência irá durar sempre. Esta ilusão é fomentada na nossa cultura pelo mito vulgarmente cultivado do amor romântico, que tem as suas origens nas nossas histórias infantis favoritas, em que o príncipe e a princesa, uma vez unidos, vivem felizes para sempre. O mito do amor romântico diz-nos, com efeito, que para cada rapaz no mundo há uma rapariga que “foi feita para ele” e vice-versa. Além disso, o mito implica que há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher para um homem e que isso foi predeterminado “nas estrelas”.

Quando conhecemos a pessoa a quem estamos destinados, o reconhecimento advém do facto de nos apaixonarmos. Encontrámos a pessoa a quem os céus nos tinham destinado, e uma vez que a união é perfeita, seremos capazes de satisfazer as necessidades um do outro para sempre, e portanto viver felizes para sempre em perfeita união e harmonia. Se acontecer, no entanto, não satisfazermos ou não irmos de encontro a todas as necessidades um do outro surgem atritos e desapaixonamo-nos. Está claro que cometemos um erro terrível, interpretámos as estrelas erradamente, não nos entendemos com o nosso único par perfeito, o que pensámos ser amor não era amor real ou “verdadeiro”, e não há nada a fazer quanto à situação a não ser viver infelizes para sempre ou obter o divórcio.

Embora eu pense que, de um modo geral, os grandes mitos são grandes precisamente porque representam e incorporam grandes verdades universais (serão explorados vários destes mitos mais adiante neste livro), o mito do amor romântico é uma terrível mentira. Talvez seja uma mentira necessária por assegurar a sobrevivência da espécie, por estimular e validar convenientemente a experiência de nos apaixonarmos que nos leva ao casamento. Mas, como psiquiatra, o meu coração chora quase todos os dias pela horrível confusão e sofrimento que este mito gera. Milhões de pessoas desperdiçam enormes quantidades de energia tentando desesperada e futilmente fazer com que a realidade das suas vidas se ajuste à irrealidade do mito.

A Sra. A submete-se absurdamente ao marido devido a um sentimento de culpa. “Eu não amava verdadeiramente o meu marido quando nos casámos,” diz ela. “Fingia que sim. Acho que o enganei para se casar comigo, portanto não tenho o direito de me queixar dele, e devo-lhe fazer tudo o que ele quiser.” O Sr. B lamenta: “Estou arrependido de não me ter casado com a Menina C. Penso que poderíamos ter tido um bom casamento. Mas não me sentia perdidamente apaixonado por ela, portanto parti do princípio que ela não era a pessoa certa para mim.” A Sra. D, casada há dois anos, fica gravemente deprimida sem causa aparente e começa a fazer terapia, afirmando: “Não sei o que se passa de errado. Tenho tudo o que preciso, incluindo um bom casamento.” Só meses mais tarde consegue aceitar o facto de se ter desapaixonado do marido, mas que isso não significa que tenha cometido um horrível erro. O Sr. E, também casado há dois anos, começa a sofrer de dores de cabeça intensas à noite e não acredita que sejam psicossomáticas. “A minha vida doméstica corre bem. Amo tanto a minha mulher como no dia em que casei com ela. Ela é tudo o que eu sempre quis.” Mas as dores de cabeça continuaram até que, um ano mais tarde, conseguiu admitir, “Ela dá-me cabo da cabeça porque está sempre a querer, querer, querer coisas sem se preocupar com o meu orde­nado,” e foi então capaz de a confrontar com a sua extravagância. O Sr. e a Sra. F reconhecem que deixaram de estar apaixonados e passam a fazer-se infelizes um ao outro por mútua infidelidade galopante à medida que procuram o “verdadeiro amor”, sem se aperceberem que o seu próprio reconhecimento podia marcar o início da obra do seu casamento em vez do fim.

Mesmo quando os casais reconhecem que a lua-de-mel terminou, que já não estão romanticamente apaixonados um pelo outro e ainda conseguem empenhar-se na sua relação, continuam a agarrar-se ao mito e tentam adaptar-lhe as suas vidas. “Apesar de já não estarmos apaixonados, se agirmos por força de vontade como se estivéssemos apaixonados, pode ser que o amor romântico regresse às nossas vidas,” segundo o seu raciocínio. Estes casais privilegiam o estar juntos. Quando iniciam a terapia de grupo para casais (que é o cenário em que a minha mulher e eu e os nossos colegas mais próximos exercemos o aconselhamento matrimonial mais crítico), sentam-se juntos, falam um pelo outro, defendem os defeitos um do outro e tentam apresentar ao resto do grupo uma frente unida, acredi­tando que esta unidade seja um sinal de saúde relativa do seu casamento e um pré-requisito para a sua melhoria.

Mais cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo, temos que dizer à maior parte dos casais que estão demasiado casados, demasiado próximos, e que têm de estabelecer alguma distância psicológica entre si antes de começarem a tratar construtivamente os seus problemas. Por vezes, é mesmo necessário separá-los fisicamente, dando-lhes instruções para se sentarem longe um do outro no círculo do grupo. Repetidamente, temos que dizer, “Deixe a Mary falar por si própria, John” e “O John é capaz de se defender, Mary, é suficientemente forte.”

Por fim, se continuam na terapia, todos os casais aprendem que a verdadeira aceitação da sua própria individualidade e da do outro e a independência são as únicas fundações sobre as quais se pode basear um casa­mento adulto e o verdadeiro amor pode crescer.

Tanto, Tanto! – Trish Cooke

Trish Cooke
Tanto, Tanto!
Lisboa, Ana Paula Faria – Editora, 2006

 

Estavam ali os dois, sem fazer nada,
a mamã e o bebé,
sem fazerem mesmo nada…

 

Quando, de repente…
TRRIM, TRRIM!
“Olá! Olá!”

 

A mamã olhou para a porta,
o bebé olhou para a mamã.
Era a…

 

Tia, a tia Biba!
Com os braços muito, muito abertos
e um sorriso muito, muito grande, disse:

 

“Ai, que bebé tão gostosol
Eu quero abraçá-lo,
eu quero abraçar este bebé,
eu quero abraçá-lo
Tanto, tanto !”

 

E ela sentou o bebé
nos joelhos
para brincar ao cavalinho;
– balancé; balancé; dá cá este pé -,
e depois contou-lhe um conto.
“Ai que bom, ai que bom que é!”

 

Estavam ali os três, sem fazer nada,
a mamã, o bebé e a tia Biba,
sem fazerem mesmo nada…

 

Quando, de repente…
TRRIM! TRRIM!
“Olá! Olá!”

 

A mamã olhou para a porta,
a tia Biba olhou para o bebé,
o bebé olhou para a mamã.
Era o…

 

Tio, o tio Didi!
O tio Didi entrou porta dentro.
Com as sobrancelhas muito arregaladas
e os lábios muito redondinhos,
como se fosse dar um beijinho, disse:

 

“Ai, que bebé tão gostoso!
Eu quero beijá-lo,
eu quero beijar este bebé,
eu quero beijá-lo
TANTO, TANTO!”

 

E, com o bebé às cavalitas,
saltou e saltou de novo, sacudindo-o
Ao dar uma viravolta,
por pouco o bebé não caiu.
“Ai, ai!”

 

Estavam ali os quatro, sem fazer nada,
a mamã e o bebé e
a tia Biba e o tio Didi,
sem fazerem mesmo nada…

 

Quando, de repente…
TRRIM! TRRIM!
“Olá, olá!”

 

A mamã olhou para a porta,
o tio Didi olhou para a tia Biba,
a tia Biba olhou para o bebé,
e o bebé para a mamã.

 

Era a…

 

Naná,
a Naná e a Vovó.
A Naná e a Vovó entraram.
Cada uma com a sua malinha,
e o seu guarda-chuva
pendurados nos braços, disseram:

 

“Ai, que bebé tão gostoso!
Eu quero apertá-lo,
eu quero apertar este bebé,
eu quero apertá-lo
TANTO, TANTO!”

 

E elas deram-lhe abraços
e muito carinho.
Fizeram-no sentir tão bem,
cantando e dançando,
que, depois de tanta alegria,
ele quase sentiu vontade de dormir.
“Chuiuuu…”

 

Estavam ali os seis, sem fazer nada,
a mamã e o bebé e a tia Biba
e o tio Didi e a Naná
e a Vovó,
sem fazerem mesmo nada…

 

Quando, de repente…
TRRIM! TRRIM!
“Ei, ’tá-se, ’tá-se!”

 

A mamã olhou para o bebé,
a Naná olhou para a Vovó,
a Vovó olhou para o tio Didi,
o tio Didi olhou para a tia Biba,
e a tia Biba para o bebé.

 

Era o…

 

Primo, o primo Cá-Cá
(e o primo Rui Grandalhão).
O primo Cá-Cá entrou
e fez rodopiar o boné,
às voltas e às voltas,
e imitou um cavalo a galope,
upa lá-lá, upa lá-lá. E disse:

 

“Ei, ’tá-se, ’tá-se!
Eu quero andar à luta com ele,
eu quero lutar com este bebé,
eu quero brincar com ele
TANTO, TANTO!”

 

E eles lutaram e andaram à bulha.
O primeiro empurrão foi do primo,
coisa que o bebé devolveu.
Ele deu um beliscão ao bebé,
o bebé deu-lhe uma valente palmada.
E, então, foi uma risada total!
“Ah! Ah! Eh! Eh!”

 

E a casa estava cheia, cheia, a transbordar.
E ali ficaram sentados…
à espera do próximo
TRRIM! TRRIM!

 

Esperaram e esperaram
mas ele nunca mais aparecia.
“Por aí, está tudo bem?”, perguntou a mãe.

 

O bebé e o primo voltaram a andar à bulha.
A Naná e a Vovó tiraram das suas malinhas
os baralhos de cartas e começaram a jogar.
O tio Didi não parava de baralhar o jogo.
A tia Biba pôs música – muito alto, mas que alto!
“Que banzé vai por aqui!”, disse a mãe.

 

Estavam ali, sem fazer nada,
a mamã e o bebé,
a tia Biba e o tio Didi,
a Naná e a Vovó,
o primo Cá-cá e o primo Rui Grandalhão,
sem fazerem mesmo nada…

 

Quando, de repente…
TRRIM! TRRIM!
“Cheguei!”, alguém disse.

 

E todos esqueceram o que estavam a fazer.
A mamã pegou no bebé ao colo
e foram todos esperar à porta…

 

“Surpresa!” disseram todos,
e a mamã acrescentou,
“PARABÉNS, PAPÁ!”
e todos se juntaram como numa roda.

 

Então o Papá acariciou a cara do bebé
e com a sua barba fez-lhe cócegas.
A mamã ia trazendo todas as coisas boas
que tinha preparado…

 

Que festa tão divertida!!

 

E quando chegou a hora de
se irem embora,
já estavam todos cansados…
Mas o bebé ainda queria brincar..
Só mais um minuto…
“Não!”, disse a mãe.
E foi pô-lo na cama,
mas…

 

…o bebé continuou a brincar.
Nem o seu ursinho o fazia esquecer
as palavras que tinha ouvido:

 

“Eu quero abraçá-lo
TANTO, TANTO!”
“Eu quero beijá-lo
TANTO, TANTO!”
“Eu quero apertá-lo
TANTO, TANTO!”
“Eu quero lutar com ele
TANTO, TANTO!”

 

E sabem porquê?
Porque todos o amavam…
TANTO, TANTO!

A Árvore – Sophia de Mello Breyner

A Árvore

Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina.

Os japoneses têm um grande amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho.

Assim, o povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e bem formada.

E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens perfumadas.

Assim foi durante várias gerações.

Mas, com o passar do tempo, surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem, ninguém era capaz de arranjar uma boa solução.

Porque, ao longo dos anos, a árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da ilha ficava sempre à sombra.

De maneira que metade das casas, das ruas, das hortas e dos jardins nunca apanhava sol.

E, na metade ensombrada, as casas estavam a ficar húmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava sempre pálida e constipada.

E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia também a perturbação.

As pessoas gemiam:

— Que havemos de fazer? Que havemos de fazer?

* * *

Até que foi decidido a população reunir-se toda em conselho para examinar bem o problema e decidir o remédio que devia dar-lhe.

Discutiram durante muitos dias e, depois de todos terem falado, chegou-se à triste conclusão de que era preciso cortar a árvore.

Houve choros, lamentações, gemidos.

A árvore era bela, antiga e venerável. Fazê-la desaparecer era um acto que não só entristecia os habitantes da ilha mas que também os assustava.

Mas não havia outro remédio e quase todos acabaram por concordar com o corte.

No lugar onde antes ela se erguia, plantaram um pequeno bosque de cerejeiras, pois as cerejeiras nunca crescem muito.

* * *

Abater a árvore foi difícil e toda a gente teve de ajudar.

Mas, depois de cortada, ela ocupava tanto espaço que a ilha ficou quase sem lugar para mais nada. Por isso começaram a desfazê-la: primeiro cortaram os ramos e as pernadas e a sua madeira foi distribuída entre todos, para que cada um pudesse fabricar alguma coisa que lhe lembrasse a árvore tão amada.

Alguns fabricaram pequenas mesas, outros, varandas para as suas casas, outros, caixilhos para os biombos, outros, caixas, tabuleiros, tigelas, colheres, pentes e ganchos para as mulheres espetarem no cabelo.

No fim ficou só o enorme e grosso tronco nu, deitado através da ilha.

Então começaram a chegar viajantes e armadores que queriam aquela óptima madeira para fabricar barcos.

Mas a população não quis. Reuniram todos outra vez em conselho e decretaram:

— Os habitantes desta ilha não querem separar-se da sua árvore que, antes de crescer demais, lhes deu tanta alegria. Vamos nós próprios construir o nosso barco.

E assim foi. Depois da chuva do Outono, deixaram o tronco secar durante longos meses e, logo que viram que a madeira já estava bem seca, meteram mãos à obra.

E, como são um povo muito inteligente, os japoneses, que trabalham muito bem, muito depressa, com muito esmero e são óptimos carpinteiros, construíram rapidamente uma grande e linda barca toda esculpida e pintada de muitas cores.

Então houve uma grande festa e a barca foi lançada ao mar.

À noite houve fogo de vista e em todas as ruas e praças se acenderam balões de papel, azuis, amarelos e vermelhos.

* * *

D’aí em diante a vida do povo daquela terra passou a ter uma vida muito mais animada e variada e quase todos se tornaram muito mais ricos.

Antes, como a ilha era tão pequena, os seus habitantes só possuíam pequenos barcos de pesca e só podiam navegar até às ilhas vizinhas.

Quando alguém precisava de ir mais longe tinha que arranjar um lugar em certos barcos maiores que de vez em quando por ali passavam.

Agora tudo tinha mudado. Agora, graças à grande barca, navegavam constantemente de ilha em ilha davam grandes passeios pelo mar e faziam óptimos negócios.

Às vezes nas noites calmas de Verão ou de Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até ao largo ver a lua cheia sobre o mar. Ou então rondavam a ilha junto à costa, até ao extremo sul, para irem ali admirar os recortes negros dos rochedos sobre a claridade clara e azulada do luar.

Depois, no Inverno seguinte comentavam estes passeios, comparavam tudo o que tinham visto, discutiam qual fora a mais bela noite, a mais bela paisagem.

* * *

Entretanto, à medida que o tempo ia passando, as cerejeiras que tinham plantado iam crescendo e embelezando.

Por isso a gente da ilha passou a celebrar, todos os anos, a festa da cerejeira em flor.

Quando acabava o Inverno e começava a surgir a Primavera tudo se animava.

Os pedreiros, os tanoeiros e os carpinteiros vinham trabalhar para o ar livre e riam e cantavam enquanto esculpiam, serravam, martelavam.

Havia grande azáfama e pelas ruas passavam pessoas muito apressadas: iam a correr às lojas de tecidos comprar kimonos de Primavera para vestirem quando chegasse o dia em que já pudessem ir admirar o primeiro desabrochar das flores.

E nas ruas, nos jardins, nos campos, os marmeleiros, as macieiras, as cerejeiras já estavam carregadas de botões fechados.

No centro da povoação aparecia então o macaco amestrado, vestido com um casaquinho azul e acompanhado pelo seu dono. E em redor juntavam-se as crianças e adultos para admirarem as habilidades do animal sábio.

E as crianças ficavam mudas de espanto quando aparecia um grande leão de papel que vinha pela rua fora num andar baloiçado, acompanhado por dois homens vestidos com kimonos amarelos. Passavam por todas as ruas e por fim paravam debaixo dos ramos das cerejeiras.

Então os homens do kimono amarelo começavam a rufar os tambores e o leão começava a dançar. E um dos homens cantava:

Já dança o leão
Debaixo da cerejeira
Ao som dos tambores
O seu bailar faz abrir
Mais depressa as flores

E, no dia seguinte, nos ramos das cerejeiras, as pequenas flores cor de rosa estavam todas abertas.

* * *

Assim, durante muitos anos, a vida naquela ilha correu com muita alegria e animação.

Mas apesar dessa alegria, apesar dos bons negócios e dos grandes passeios, todos se lembravam com saudade da velha árvore.

— Como era alta e bela! — diziam.

— Como a sua sombra era perfumada!

— Como era doce e leve o sussurrar da brisa nas suas folhas!

— Como a sua copa era redonda e bem formada!

— Como as suas folhas eram verdes e bem desenhadas!

— Como era tão suave a frescura debaixo dos seus ramos, nas manhãs de Verão!

E, assim, entre palavras e pensamentos, a árvore nunca era esquecida.

* * *

E os anos foram passando.

Até que os marinheiros e os calafates descobriram que estava a acontecer uma grande desgraça:

A madeira da quilha da grande barca tinha começado a apodrecer.

— Ai de nós! — choravam os habitantes. — Não vamos dar mais passeios pelo mar. Nas noites de lua cheia, não vamos visitar mais as outras ilhas, não vamos fazer mais negócios.

Mas os comerciantes sossegaram-nos.

— Durante estes anos — disseram eles — graças à nossa grande barca, andámos a navegar de ilha em ilha, de porto em porto, a comprar e a vender, e fizemos negócios tão bons que juntamos muito dinheiro. Por isso, como aqui não há outra árvore enorme, e as árvores que agora temos fazem muita falta se forem cortadas, estamos dispostos a ir às outras ilhas comprar boa madeira. E todos juntos podemos construir outra grande barca.

A população aplaudiu o discurso e concordou com o projecto e daí a poucos meses a barca nova ficou pronta e logo a puseram a flutuar.

Então, a barca velha foi arrastada para a praia. O povo cercou-a em silêncio com grande tristeza, e os carpinteiros e os calafates examinaram-na tábua por tábua.

A madeira do casco, do convés e dos bancos estava quase toda semi-apodrecida e só servia para queimar. Mas o mastro grande, que tinha sido tirado do cerne da velha árvore, continuava são e bem conservado.

— Temos que fazer com este mastro alguma coisa que nos lembre a nossa árvore antiga e a nossa barca — disse o chefe da ilha.

Depois de muito pensar resolveram fazer uma biwa, que é uma espécie de guitarra japonesa.

Quando a obra ficou pronta, a população reuniu-se na praça principal e sentaram-se em silêncio em redor do melhor músico da ilha para ouvirem o som da biwa.

Mas, mal os dedos do músico fizeram soar as cordas, de dentro da biwa ergueu-se uma voz que cantou:

A árvore antiga
Que cantou na brisa
Tornou-se cantiga

Então, todos compreenderam que a memória da árvore nunca mais se perderia, nunca mais deixaria de os proteger, porque os poemas passam de geração em geração e são fiéis ao seu povo.

Sophia de Mello Breyner Andresen
A Árvore
Porto, Liv. Figueirinhas, 1987

Um novo mundo – Eckhart Tolle (sugestão de leitura)

Eckhart Tolle: Um novo mundo
Lisboa, Editora Pergaminho, 2006

 img395

Na sequência do best-seller internacional O Poder do Agora, Eckhart Tolle apresenta aos leitores uma abordagem franca do estado presente da evolução espiritual da humanidade. Trata-se, segundo o autor, de um estado comparável a uma loucura colectiva, derivada da identificação com a mente egóica. Contudo, é precisamente neste momento da sua história que a humanidade tem a oportunidade única de criar um mundo novo, mais são e dedicado ao amor. Mas isso implica uma profunda transformação interior, uma passagem do ego a uma forma totalmente nova de consciência. Ao longo destas páginas, Tolle revela, com o seu estilo profundo mas acessível, os passos necessários para cada um de nós preparar tal transformação.

 

Excertos

O anel perdido

Quando comecei a exercer a profissão de conselheiro e professor espiritual, visitava duas vezes por semana uma senhora que tinha um cancro, que estava já disseminado por todo o corpo. Ela era professora, tinha cerca de quarenta e cinco anos e os médicos não lhe tinham vaticinado mais do que alguns meses de vida. Por vezes, trocávamos algumas palavras durante as visitas, mas a maior parte do tempo ficávamos sentados em silêncio e, à medida que as sessões foram decorrendo, ela teve os seus primeiros vislumbres da paz que se encontrava dentro de si, cuja existência desconhecia na sua atribulada vida de professora.

Contudo, um dia encontrei-a num estado de grande aflição e irritação. «O que é que aconteceu?», perguntei-lhe eu. O seu anel de diamantes, com um valor monetário e sentimental bastante elevado, havia desaparecido, e ela tinha a certeza de que fora roubado pela mulher que vinha cuidar dela todos os dias durante algumas horas. Afirmou que não compreendia como é que alguém era capaz de ser tão insensível e cruel ao ponto de lhe fazer uma coisa daquelas. Perguntou-me se deveria confrontar a mulher ou se seria melhor chamar imediatamente a polícia. Eu respondi-lhe que não a podia aconselhar, mas pedi-lhe para pensar na importância que o anel ou outra coisa qualquer tinha para ela nesta altura da sua vida. «Não está a perceber», retorquiu ela, «este anel era da minha avó. Eu usava-o todos os dias, até que adoeci e as minhas mãos incharam muito. Para mim significa mais do que apenas um anel. Como posso não ficar aborrecida?»

A rapidez da resposta, a raiva e o tom defensivo que se adivinhava na sua voz eram indícios de que ela ainda não se tinha tornado suficientemente presente para olhar para dentro de si própria, para se libertar da sua reacção relativamente ao sucedido e observar ambos. A raiva e a postura defensiva eram sinais de que o ego continuava a falar através dela. Então, eu disse-lhe: «Vou fazer-lhe algumas perguntas, mas em vez de responder logo, veja se consegue encontrar as respostas dentro de si mesma. Vou fazer uma pequena pausa após cada pergunta. Quando a resposta surgir, pode não vir necessariamente sob a forma de palavras.» Ela declarou que estava pronta para ouvir as perguntas, que fiz em seguida: «Tem consciência de que um dia vai ter de se desprender do anel, talvez dentro em breve? De quanto tempo mais precisa até estar pronta para se desprender dele? Vai passar a ser menos do que aquilo que é quando o fizer? Quem você é ficou diminuído pela perda?» Ela manteve-se em silêncio durante alguns minutos após a última pergunta.

Quando recomeçou a falar, tinha um sorriso no rosto e parecia estar em paz. «A última pergunta permitiu-me perceber algo importante. Primeiro, fui à minha mente à procura de uma resposta e ela disse-me: “Sim, é claro que ficaste diminuída.” Depois, perguntei novamente a mim própria: “A pessoa que eu sou ficou diminuída?” Desta vez, tentei sentir em vez de pensar na resposta. E, de repente, fui capaz de sentir o meu Eu Sou. Nunca tinha sentido isto. Se consigo sentir o Eu Sou de uma maneira tão forte, então quem eu sou não foi nada diminuído. Ainda o sinto agora, é algo pacífico, mas muito vivo.»

«Essa é a alegria do Ser», esclareci eu. «Só somos capazes de a sentir quando saímos da nossa cabeça. O Ser tem de ser sentido, não pode ser pensado. O ego não conhece essa alegria porque consiste apenas em pensamentos. Na realidade, o anel estava na sua cabeça como um pensamento que você confundiu com a percepção do Eu Sou. Pensou que o Eu Sou, ou parte dele, estava no anel.»

«O que quer que seja que o ego procure e ao qual se agarre é um substituto para o Ser que o ego não é capaz de sentir. Você pode dar valor às coisas e gostar delas, mas sempre que se apegar a elas, vai saber que é o ego que se apega. Você nunca fica realmente apegada a uma coisa, mas a um pensamento que contém as palavras “eu”, “meu” ou “minha”. Sempre que aceitar totalmente uma perda, está a ir para além do ego, e quem você é, o Eu Sou que personifica a própria consciência, vem à tona.»

Ela replicou: «Agora compreendo algo que Jesus disse e que antes nunca fez muito sentido para mim: “Se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa.”»

«Exactamente», observei eu. «Não quer dizer que não devemos pôr trancas à porta. Só quer dizer que, por vezes, não nos apegar-mos às coisas é um acto de poder muito maior do que defendê-las ou agarrarmo-nos a elas.»

Nas suas últimas semanas de vida, à medida que o seu corpo ia ficando mais fraco, ela tornou-se cada vez mais radiosa, como se a luz brilhasse através dela. Deu muitos dos seus haveres, alguns deles à mulher que julgava ter-lhe roubado o anel, e sempre que se desprendia de alguma coisa, a sua alegria aumentava. Quando a mãe dela me telefonou a informar de que ela tinha falecido, também me disse que, após a sua morte, o anel fora encontrado no armário dos medicamentos, na casa de banho. Teria a mulher devolvido o anel ou teria ele estado sempre lá? Nunca saberemos. Mas pelo menos uma coisa sabemos: a vida dar-nos-á a experiência mais útil para a evolução da nossa consciência. Como sabemos que esta é a experiência de que precisamos? Porque esta é a experiência que estamos a ter neste momento.

Então está errado termos orgulho dos nossos bens ou sentirmo-nos melindrados em relação às pessoas que têm mais do que nós? De todo. Essa sensação de orgulho, essa necessidade de sobressair, a aparente elevação do nosso eu através das palavras «mais do que» e a sua inferiorização através de «menos do que» não estão certos nem errados – fazem parte do ego. O ego não está errado; apenas é inconsciente. Quando observar o ego que se encontra dentro de si, começará a ir para além dele. Não leve o ego demasiado a sério. Quando detectar um comportamento egóico seu, sorria. E possível que, por vezes, até se ria à gargalhada. Como pode a Humanidade ter-se deixado levar por isto durante tanto tempo? Acima de tudo, saiba que o ego não é pessoal. Não é quem você é. Se considerar o ego um problema pessoal, estará a alimentá-lo.

(…)

Em defesa de uma ilusão

Não há dúvida de que os factos existem. Se dissermos «A velocidade da luz é maior do que a velocidade do som» e outra pessoa disser que é o oposto, é claro que nós temos razão e a outra pessoa está errada. Basta observar que o relâmpago vem antes do trovão para confirmar este facto. Não só temos razão, como sabemos que temos razão. Estará o ego envolvido nisto? Possivelmente, mas não necessariamente. Se nos limitarmos a constatar o que sabemos ser verdade, o ego não está de todo envolvido, pois não existe qualquer identificação. Identificação com o quê? Com a mente e com uma posição mental. Porém, tal identificação pode facilmente infiltrar-se. Se dermos por nós a afirmar «Acredita, eu sei» ou «Porque é que nunca acreditas em mim?», isto significa que o ego já se infiltrou. Está escondido nas palavrinhas «eu» e «mim». A simples afirmação «A luz é mais rápida do que o som», embora verdadeira, está agora ao serviço da ilusão, do ego. Foi contaminada por urna falsa noção de «eu»; foi personalizada, transformada numa posição mental. O «eu» sente-se diminuído ou ofendido porque alguém não acredita no que «eu» disse.

O ego transforma tudo numa questão pessoal. A emoção surge, assim como a atitude defensiva, e talvez até mesmo a agressão. Estaremos a defender a verdade? Não, a verdade, em qualquer caso, não precisa de defensores. Nem a luz nem o som se importam com que nós ou as outras pessoas pensam. Estamos a defender-nos ou melhor, estamos a defender a ilusão de nós próprios, o substituto criado pela mente. Seria ainda mais correcto afirmar que a são se está a defender a si própria. Se até o domínio claro e evidente dos factos pode ser colocado ao serviço da distorção e da ilusão egóica, quanto mais o domínio menos óbvio das opiniões, dos pontos de vista e dos juízos de valor, todos eles formas de pensamento que podem ser facilmente impregnadas de uma noção de identidade.

Todos os egos confundem opiniões e pontos de vista com factos. Além disso, não são capazes de fazer a distinção entre um acontecimento e a sua própria reacção a esse acontecimento. Todos os egos são peritos na percepção selectiva e na interpretação distorcida. Só a consciência — e não o pensamento — consegue distinguir entre um facto e uma opinião. Só através da consciência somos capazes de ver que esta é a situação e que esta é a ira que sentimos em relação a ela e, em seguida, de perceber que há outras formas de agir nessa situação, outras formas de a analisar e de lidar com ela. Só através da consciência somos capazes de compreender a totalidade da situação ou da pessoa e de não adoptar uma perspectiva limitada.

A janela e a montanha – A. Torrado

 

A janela e a montanha

A janela abria para a frente, para fora, para o ar lavado da montanha.

Quem dormisse naquele quarto, ao saltar da cama, de manhã, abria a janela de dois batentes como se estivesse a respirar fundo. Enchia os pulmões de ar e os olhos de claridade. Era o primeiro exercício de ginástica.

Podia ficar por aqui, de cotovelos sobre o parapeito, a apreciar a paisagem. Ou podia voltar para dentro, com um pequeno arrepio de prazer.

Continuar a ler

Canção para Dirceu – António Torrado

António Torrado
O coração das coisas
Porto, Edições Asa, 2004

Canção para Dirceu

Nós morávamos num rés-do-chão com quintal, ali para os lados da Granja das Malvas, à beira da cidade nova. Morávamos, mas já não moramos.

Deram em construir prédios de muitos andares, onde dantes só havia hortas e casinhas baixas, como a nossa, e vai daí a Granja das Malvas, cimentada e alcatroada, ficou irreconhecível. Parece que já nem assim se chama.

A nossa velha casa foi abaixo. A mim custou-me, principalmente por causa do quintal, que tinha um tanque ao fundo, meia dúzia de árvores de fruto e uma latada ferrugenta. Não andaria muito estimado o nosso quintal, confesso, mas sinto-lhe a falta.

Viemos estrear um desses apartamentos, que anunciam nos jornais. Para mudar de ares, nós, que sempre tínhamos vivido rente ao chão, escolhemos um sétimo andar com vista para o rio. É o que nos vale.
A mesma opinião não terá o Dirceu. Descontando a Marília, coitada, que nem tempo teve para se habituar às alcatifas da casa nova, o Dirceu foi o que mais se ressentiu com a troca.

Dirceu e Marília, o nosso casal de cágados, que o infortúnio separou, acompanharam com indiferença os preparativos da mudança, supondo talvez que todos podiam abandonar o rés-do-chão do quintal menos eles. Sempre se tinham arrastado por ali, sobre as velhas tábuas e o musgo dos canteiros, e nem sequer imaginavam que o mundo pudesse ser maior do que um quintal sombrio.

Quando os meteram num caixote, juntamente com sapatos fora de uso, embrulhados em papéis velhos, devem ter ficado chocados com a desconsideração, o que se entende.

Um par de cágados de nodosa casca, um nobre casal, sempre muito juntinhos ambos, obrigados a ter por companhia botas velhas e sapatões estalados era uma vergonha irreparável. Se as primas tartarugas, de casta e casca seculares soubessem da desfeita, não perdoariam. Por nós nunca o saberão. É que nos sentimos culpados…

Depois de muitos solavancos, foram desencaixotados numa das divisões por arrumar. Os dois cágados demoraram a pôr a cabeça de fora. Estranhavam os cheiros, o piso e a balbúrdia daquilo tudo. Para que lado ficaria o quintal?

A Marília, mais afoita, pôs-se à procura. Chegou-se até à varanda, onde já tínhamos poisado uns vasos com hortênsias, sobrantes da outra casa. A paisagem pareceu-lhe familiar. Sendo assim, o quintal não estaria longe. Muito a custo, enfiou a carapaça pelo intervalo entre o chão da varanda e a grade do parapeito. As patas da frente nadaram no vazio, e o peso mais a pressa que trazia impeliram-na para a frente, sem remédio…

Foi para nós um grande desgosto. Haverá quem diga que os cágados são pouco sociáveis. Engana-se. O Dirceu e a Marília davam pelo nome. Estendiam o pescoço, como se quisessem alçar-se até à nossa altura, e, olhando-nos de esguelha, por pouco que não perguntavam: “Vocês, aí em cima, o que querem?” As mais das vezes, eles é que queriam. Comida, por exemplo, de preferência saboreada dentro de água, em intermináveis sessões de natação no tanque do quintal.

Se não andavam na vida deles, talvez a jogar às escondidas pelo meio dos vasos, seguiam os nossos passos pela casa, cloc-cloc-cloc, como tamancos chineleiros.

Desta feita, ficou o tamanco sem par. Não havia meio de fazer entender ao Dirceu o que sucedera. Pusemos umas tábuas de resguardo na varanda e procurámos ocupar-nos com as nossas tarefas. Ajeitar o recheio de uma casa antiga numa casa moderna dá muito trabalho.

Para o Dirceu eram alterações a mais. Desaparecera-Ihe a companheira, tudo se transformara à sua volta. Andava estonteado, a escarafunchar por entre os papéis amarrotados, as roupas a monte, as pilhas de livros. Desta vez a Marília abusara do jogo das escondidas, julgaria o Dirceu.

Assistíamos ao desespero dele sem saber como ajudá-lo. Cobríamo-lo de mimos. Banhos de banheira, carne da melhor… Mas tudo o que interrompesse as suas pesquisas era tempo perdido. O Dirceu enfastiava-se dentro de água e perdia o apetite.

— Está a preparar-se para hibernar — calculámos.

A nossa experiência dos outros anos ditava-nos este supor. De facto, quando as árvores do quintal se punham a tiritar, por culpa do vento que lhes arrancava as folhas, os dois cágados sumiam-se. Em que esconderijo se isolavam para resistir ao Inverno, de que forma conseguiam sobreviver sem sustento, meses a fio, era para nós um mistério.

Ao primeiro despontar da Primavera nos ramos das árvores do quintal, apareciam-nos, fazendo de conta que tinham andado em viagem esse tempo todo. Ainda um pouco zonzos, mas esfomeados, devoravam tudo o que lhes trazíamos. Pudera!

Pois neste último ano, já eu tinha andado à procura das botas para a chuva, aliás, sem as encontrar, já o meu pai tinha arrumado a ventoinha na caixa donde tirara o calorífero, já a minha mãe desdobrara os cobertores para arejar, e o Dirceu naquela azáfama sem nexo, de uma divisão para a outra, batendo com a carapaça nas esquinas do corredor, tão desnorteado e ansioso que metia aflição.

— Ele hiberna e passa-lhe o desgosto — dizia o meu pai, não sei se muito convencido.

Mas não havia maneira do nosso Dirceu hibernar. De olhitos espantados por trás das pregas da pele, parecia um velho dolorido, inconsolável.

— Mais dia, menos dia, ele hiberna — dizíamos uns para os outros, para nos tranquilizarmos.

Preparámos-lhe refúgios confortáveis, na despensa, num armário do corredor, debaixo do fogão da cozinha. Tudo inútil. O Dirceu não se cansava de correr ao retardador pela casa toda.

— Isto é uma maluquice minha, mas se uma canção de embalar o acalmasse, palavra que era capaz de cantar-lhe aquela que te punha muito mansinho ao meu colo, quando andavas com as birras dos primeiros dentes — dizia a minha mãe.

Enterneci-me. E fiquei a magicar.

Garanto-vos que passei uma noite de insónia às voltas com uma cantiga que, de propósito, distraísse, acalentasse o Dirceu. Tenho pouco jeito para versos, hão-de desculpar-me.

No dia seguinte, trouxe-o para a sala, estendi-me no chão e cantei-lhe baixinho esta lengalenga:

Uma velha tartaruga
muito velha
toda às rugas
diz que a casa
onde ela mora
não se vende
nem se aluga.
Ela é velha
e é casmurra.
Tem uma casca
muito dura,
tem uma casa
muito escura,
mas é dela
onde ela mora
onde dorme
bem segura
ao comprido
e à largura.
Haja frio,
haja neve,
haja vento
lá por fora,
que na casa
onde ela mora
a botija
que ela adora
é o calor
que ela evapora,
haja frio,
haja neve,
haja vento
lá por fora…

Fosse a fugir da cantilena ou fosse do que fosse, a verdade é que Dirceu se libertou das minhas mãos e, no seu andar cambaleante e pensativo, saiu da sala. Não voltámos a vê-lo neste Inverno.

Ou melhor: vi-o eu, há dias, quando, finalmente, encontrei as minhas botas. Estavam esquecidas na arrecadação da marquise, dentro do caixote tombado, que derramara para o meio do chão sapatos fora de uso e papéis velhos. Ia arrumar aquela tralha, quando avistei, na zona obscura do caixote, a casca imóvel do Dirceu.

Parecia uma pedra, mas uma pedra onde latejasse um minúsculo coração entorpecido. Entorpecido? Vai-se lá saber como funciona o coração de um cágado…