Jacques-Antoine Malarewicz
O Complexo do Principezinho
Lisboa, Estrela Polar, 2007
(excertos adaptados)
Anterior: Bernard ou como saber parar o tempo (…) A angústia de Bernard era proporcional à ligeireza do pai. Os aniversários passaram a ser mais importantes para esta família. Consequentemente, ele procurou parar a marcha do tempo, tanto para o pai, como para ele próprio e para o irmão.
A anorexia ou o último controlo
A anorexia mental e as suas consequências no quadro familiar são emblemáticas da tomada do poder que determinados adolescentes são capazes de desenvolver nas suas famílias e da submissão que os adultos podem mostrar em relação a eles.
Trata-se de uma síndroma que atinge preferencialmente os adolescentes – em 90 por cento dos casos. Ela associa três tipos de sintomas. O primeiro é um emagrecimento importante, ocasionado por uma privação voluntária de comida, por vezes acompanhada de vómitos provocados, ou da toma de laxativos e diuréticos. A actividade física, às vezes intensa, acaba por acelerar o processo. Para ser levada a sério no quadro de uma anorexia, esta perca de peso deve, pelo menos, ser de 15 por cento em relação à norma. Revela-se em seguida uma amenorreia secundária, ou seja, ausência do período depois de a adolescente estar normalmente menstruada. Os equilíbrios hormonais são, pois, profundamente perturbados e as repercussões atingem o conjunto das funções metabólicas.
Enfim, a ignorância obstinada da gravidade dos distúrbios físicos e psíquicos por parte dos interessados, e às vezes até da família, constitui uma verdadeira negação da realidade. Estas adolescentes escondem frequentemente a sua perca de peso debaixo da largura das suas roupas. Elas investem nos estudos, por vezes mais do que é razoável, sem no entanto atingir os resultados que o seu trabalho poderia permitir-lhes esperar.
Pensou-se durante muito tempo que esta síndroma era a consequência de um desequilíbrio hormonal; estas adolescentes eram frequentemente tratadas por pediatras que sentiam, e ainda sentem, muitas dificuldades em guiá-las para um psicoterapeuta ou um psiquiatra.
A anorexia mental sempre existiu, sob outros aspectos e denominações. Ela faz agora parte daquilo a que os médicos chamam distúrbios das condutas alimentares, que reagrupam igualmente a bulimia e a bulimia com vómitos. O número de casos diagnosticados aumenta sensivelmente e já vimos que esses distúrbios assumem um significado particular na nossa sociedade. É preciso igualmente ter em conta que os especialistas capazes de emitir estes diagnósticos e conduzir o tratamento são cada vez mais numerosos e que a oferta cria a procura.
Nos países ocidentais, a prevalência desta doença não está ligada a nenhum factor socioeconómico: todas as classes sociais são abrangidas. Os factores culturais, antes descritos, parecem determinantes. Assim, esta doença começa a aparecer nos países do Magreb com a ocidentalização da sociedade. A mortalidade é importante, considera-se geralmente que ela é de 10 por cento de casos em cada década.
Por outras palavras, quando os distúrbios se estendem por duas décadas, a mortalidade é da ordem dos 20 por cento. Trata-se, pois, de uma doença grave e os riscos de cronicidade são importantes. Em dez, ela abrange nove raparigas e um rapaz e perturba, frequentemente durante muitos anos, a vida escolar e social do adolescente e do adulto, ao mesmo tempo que perturba as relações familiares.
Aurélie
Trata-se do primeiro encontro com Aurélie e a sua família. Depois de várias hospitalizações, os pais acabaram por se resignar a pedir ajuda fora do quadro de qualquer situação urgente. Até lá, o recurso à medicina só se fez no limite extremo do emagrecimento de Aurélie. De cada vez, parecia evidente que o problema se resolvia por si próprio com um aumento do peso, que não era fruto da pressão clínica realizada durante a hospitalização.
Há três crianças nesta família. Aurélie é a mais velha, tem 17 anos e sofre, actualmente e de forma evidente, de um problema de anorexia mental. Tem duas irmãs mais novas, com 15 e 13 anos. Como acontece frequentemente, os pais sentem dificuldades em concordar no que toca a prioridades.
TERAPEUTA (dirigindo-se aos pais) — O que motivou o vosso pedido de consulta?
PAI — Pessoalmente, o que mais me preocupa é saber se a Aurélie vai poder reatar rapidamente os seus estudos… já se atrasou demasiado…
MÃE (virando-se para o marido) — Não creio que isso seja o mais importante… os estudos, isso virá depois. Para mim, tenho necessidade de receber conselhos do ponto de vista culinário, mais exactamente, tenho necessidade de saber se, de um ponto de vista clínico, um regime alimentar pode resolver este problema de peso… Tem de haver uma solução…
PAI — Tens razão… mas se ela retomasse os estudos, ela poderia de novo confiar nela… Tenho a certeza de que o problema da comida se vai resolver por si próprio… nessa altura… numa segunda fase. Que pensa disto, doutor?
É difícil para estes pais saírem de uma definição «sintomática» do caso da filha. Considerar que se trata de um problema escolar ou alimentar equivale a ignorar a dimensão relacional do seu comportamento. Deve ser velha a discordância entre eles no que toca à importância relativa dos estudos e da comida. Utilizam constantemente o mesmo cenário perante as filhas e perante o psicoterapeuta. Concordam em… não concordarem, embora apenas nos limites muito estreitos que definem estas implicações secundárias em relação à situação no seu todo. Dão a sensação de poderem tomar decisões, embora sabendo muito bem que é Aurélie quem manipula todos.
No final da consulta, uma outra foi marcada com toda a família, para três semanas mais tarde, a uma quarta-feira, ao princípio da noite. Todos se levantam e, quando aperto a mão à mãe para me despedir, Aurélie começa a falar de forma bastante dramática.
AURÉLIE — Não é possível!
MÃE — O que não é possível?
AURÉLIE (dirigindo-se aos pais ao mesmo tempo e com um tom de bastante desprezo)
— Enfim, apesar de… esqueceram-se? Será que vocês pensam um pouco?
PAI — Que queres dizer?
AURÉLIE — …
PAI — Responde!
MÃE — Escuta, Aurélie, se tens algo a dizer, diz e já, não podemos ficar especados aqui indefinidamente, o doutor tem provavelmente uma outra consulta… despacha-te…
AURÉLIE — …
PAI (dirigindo-se à mãe) — Deixa-a, neste caso nem vale a pena insistir…
MÃE — Gostaria apenas que ela me explicasse o que quer dizer (mais calma) —, diz-me…
AURÉLIE — Mas, enfim, não é possível, naquele dia, naquela noite…
MÃE — E porquê?
PAI — Sim, porquê?
AURÉLIE — …
PAI (começando a enervar-se) — Então, explica-te!
MÃE (dirigindo-se ao pai) — Não lhe fales assim!
PAI — Aurélie, não nos deixes assim… o que é que não é possível?
AURÉLIE (excedida) — O restaurante!
PAI — O restaurante?!
MÃE (em simultâneo) — Sim, tens razão… tinha-me esquecido (voltando-se para mim) — … É o nosso aniversário de casamento e nós há muito que fizemos uma reserva para essa noite. Aurélie tem toda a razão, é preciso encontrar uma outra data. Lamento!
Os pais tinham-se esquecido, um e outro, que o dia da próxima consulta era igualmente o dia do seu aniversário de casamento e que há muito se tinham já comprometido para essa noite. Aurélie lembrou-se quando, logicamente, isso devia primeiramente dizer respeito aos pais. Mas, neste tipo de família, os laços conjugais passam frequentemente para segundo plano perante o elo pais-filhos, o que pode explicar esta «anomalia».
Apesar disso, ainda não tinha chegado ao fim das minhas surpresas. Com efeito, os pais tinham reservado uma mesa num restaurante, não somente para eles, o que era normal, mas também para uma terceira pessoa: Aurélie. Pareceu-lhes ser evidente que não a podiam deixar sozinha em casa, tendo em conta os problemas alimentares. Ela corria o risco de nada comer na ausência dos pais. Preferiram levá-la com eles, sem que isso parecesse afectá-los, dado os conhecidos problemas de Aurélie. Assumiam o risco, mais que provável, de ficar sem apetite perante a visão da filha a contemplar, no meio do seu prato, três rodelas de cenoura misturadas com dois salsifis. A festa seria cruel!
Aurélie instalou-se, pois, solidamente, no centro de todas as preocupações familiares, até num momento simbólico da história do casal constituído pelos seus progenitores. As suas duas irmãs estão totalmente afastadas das preocupações dos pais. Elas não têm o direito de reivindicar seja o que for, e, como é óbvio, deixaram de existir.
A irmã mais velha assumiu o poder; neste caso porque é, ao mesmo tempo, a única a lembrar-se do que é importante na vida familiar e, também, porque focaliza as preocupações dos pais como se fosse filha única. Os laços protectores de que beneficia são tão poderosos que os pais aceitam sacrificar-se por ela, abandonando qualquer intimidade e mesmo todo o prazer que poderiam ter em estar sós por ocasião do seu aniversário de casamento.
Perante tal situação, é sempre preferível não mostrar espanto. É preciso compreender bem que tudo isso parece não apenas ser evidente para este tipo de famílias, como também necessário e útil. Elas são catalogadas de «engrenadas», o que significa que cada membro está estreitamente ligado ao outro como duas rodas dentadas, uma em contacto com a outra. Quando um elemento se mexe, os outros reagem imediatamente. Os mecanismos de protecção são, nestes casos, notáveis: os conflitos são sistematicamente evitados e qualquer intrusão é geralmente muito mal aceite. Não é um terapeuta que pode pretender dizer-lhes o que devem fazer e ainda menos permitir-se julgar o comportamento deles.
A bulimia ou a fusão total
Com a bulimia e a obesidade, mudamos de registo. Já não se trata de um controlo absoluto e manifesto do corpo. Bem pelo contrário, … (continua)