Ilhas de exclusão nas cidades

Os homens-ilha

Paulo Alexandre Brito Pais Gaspar

As cidades têm conhecido, através do tempo, modalidades diversas de diferenciação social. Nos tempos de hoje, às portas do novo milénio, podemos afirmar, convictamente, que o projecto de modernidade invadiu tudo e todos. Apesar de tal afirmação não poder ser contestada nem pelos mais críticos, devemos ter também consciência dos custos dessa modernidade.

Com efeito, em termos sociais tem existido também uma evolução, mas no sentido inverso ao desejado. As assimetrias, cada vez mais têm sido postas em relevo, de tal modo, que, hoje, a cidade está cheia de “ilhas de exclusão”, bem visíveis, mesmo aos olhos dos menos atentos. Ilhas onde vivem seres humanos, afinal homens que também merecem ter oportunidades para serem felizes. Homens que aguardam a sua vez para fugir ao estado de Exclusão Social a que foram “condenados” por alguns daqueles que vivem no exterior dessas ilhas. Homens que aguardam o auxílio de outros homens, afinal seus companheiros da viagem.

De acordo com esta realidade, os rostos excluídos vão-se multiplicando a um ritmo assustador, que vão tornando a viagem, que se pretendia harmoniosa e bonita, carregada de contornos sombrios onde cada vez menos se sorri.

 

Paulo Alexandre Brito Pais Gaspar
In: As cidades e os rostos da exclusão
Universidade Portucalense – Educação Social, Porto, 1999

Gente descartável – Kevin Bales

 

No passado, as filhas eram vendidas para responder a uma séria crise financeira da família. Sob a ameaça de perderem os seus campos de arroz hipotecados e para fazer face ao desamparo, uma família podia vender uma filha para redimir a sua dívida, mas a maior parte das filhas valiam mais ou menos tanto em casa como trabalhadoras, como renderiam quando vendidas. A modernização e o crescimento económico alteraram tudo isso. Hoje os pais sentem uma grande pressão para comprar bens de consumo que eram desconhecidos ainda há vinte anos; a venda de uma filha pode facilmente financiar a compra de um novo televisor. Um estudo recente nas províncias do Norte descobriu que, das famílias que venderam as suas filhas, dois terços podiam não o ter feito, mas «preferiram comprar televisores a cores e equipamento vídeo». E da perspectiva dos pais que desejam vender os filhos, nunca houve melhor mercado.

 

Kevin Bales
Gente descartável
Lisboa, Editorial Caminho, 2001
(excertos adaptados)

A geopolítica do caos e da fome – Fernando Nobre

Fernando Nobre
Gritos contra a indiferença
Lisboa, Temas e Debates, 2007
(excertos)

A geopolítica do caos e da fome*

[…] concordo com o senhor Ignacio Ramonet, director do Le Monde Diplomatique: «Estamos a caminho do caos.» Ou paramos já — para escutarmos e socorrermos os gritos de desespero de três quartos da população mundial, para olhar e ver os erros cometidos nomeadamente na defesa do Homem e do meio ambiente e para pensarmos no que realmente queremos fazer do nosso mundo — ou todo este frenesim descontrolado pode levar-nos ao caos global.

As revoluções tecnológica (tendencialmente desumanizante), económico-financeira (um verdadeiro jogo, como no «mercado dos futuros») e social (a crise global do poder/desemprego) em curso estão a levar ao domínio total do financeiro sem rosto sobre o político, o social, o ético e o moral com todas as suas terríveis consequências. Sem querer ser o velho do Restelo, grito: «Alerta! Cuidado!»

Com tanto miserável no nosso mundo, onde trezentas pessoas acumulam mais riqueza do que três biliões (50 por cento da população mundial), onde o fosso entre o Norte e o Sul nunca foi tão abissal, onde as disparidades sociais nos países ditos civilizados e desenvolvidos nunca foi tão grande, isso só pode rebentar. Quando? Não sei! Só sei que assim não vamos a parte nenhuma. É tempo de inverter a marcha funesta que nos tem conduzido. Por favor, é preciso bom senso.

* Editorial AMI Notícias, n.° 14, Dezembro de 1998.

Racismo

Eduardo Galeano
De pernas para o ar – a escola do mundo às avessas
Lisboa, Editorial Caminho, 2002
(excerto)

Curso básico de racismo e de machismo

Os mitos, os ritos e os fitos

Nas Américas, e também na Europa, a polícia caça estereótipos, culpados do delito de porte de cara. Cada suspeito não branco confirma a regra escrita, com tinta invisível, nas profundezas da consciência colectiva: o crime é negro, ou castanho, ou pelo menos amarelo.

Esta demonização ignora a experiência histórica do mundo. Para não ir mais longe do que estes últimos cinco séculos, ter-se-ia que reconhecer que não foram nada escassos os crimes de cor branca. Os brancos constituíam não mais do que a quinta parte da população mundial na época do Renascimento, mas já se diziam portadores da vontade divina. Em nome de Deus, exterminaram não sei quantos milhões de índios nas Américas e arrancaram sabe-se lá quantos milhões de negros de África.

Brancos foram os reis, os vampiros de índios e os traficantes negreiros que fundaram a escravatura hereditária na América e em África, para que os filhos dos escravos nascessem escravos, nas minas e nas plantações.

Brancos foram os autores dos incontáveis actos de barbárie que a Civilização cometeu, nos séculos seguintes, para impor, a ferro e fogo, o seu branco poder imperial pelos quatro pontos cardeais do globo.

Brancos foram os chefes de Estado e os chefes guerreiros que organizaram e executaram, com a ajuda dos japoneses, as duas guerras mundiais que, no século xx, mataram 64 milhões de pessoas, na sua maioria civis; e brancos foram os que planearam e levaram a cabo o holocausto dos judeus, que também incluiu vermelhos, ciganos e homossexuais, nos campos de extermínio nazis.