Saïd, o rapaz do lampião

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Toni estava saturado de andar às voltas no templo de Karnak, no meio do grupo de turistas.

As sandálias, cheias de areias e de pequenas pedras, feriam-lhe os pés, e a mãe tinha-o obrigado a vestir calções e a calçar peúgas. Para cúmulo, tinha ainda de usar um chapéu de palha de aba larga, para se proteger do sol. Tanto ele como a mãe eram os únicos na família que tinham aquela cor delicada, muito branca, herdada de um antepassado caucasiano longínquo. Toni sentia-se ridículo vestido daquela forma.

Noda, a mãe, virou para ele o seu bonito rosto redondo, encimado por um tufo de cabelos castanhos encaracolados sobre os quais assentava um chapéu parecido com o do filho.

— Anda depressa! Despacha-te, querido. Vamos perder-nos do grupo!

Mas era isso mesmo que Toni queria: perder-se do grupo, deixar o cortejo, não ter de ouvir mais a voz roufenha do guia! Este era um homem alto e esguio, cuja cabeça emergia, num vaivém ritmado, por cima do mar de turistas. Saltando do inglês para o alemão, e depois para o francês, esforçava-se, em vão, mediante verdadeiras proezas de memória e eloquência, por fazer reviver a antiga majestade e esplendor daqueles lugares.

— É o teu país, Toni. Tens de conhecer a sua história.

Grupos de crianças andrajosas assediavam os turistas amiúde. Com lamúrias, olhares suplicantes e as mãos erguidas em concha, pediam esmola com ar brincalhão. Contudo, a sua insistência era tal que nada os fazia arredar dali.

O guia, esgotada a reserva de insultos e já fora de si, desatou a dar pontapés ao magote de miúdos. Os turistas rapidamente se juntaram a ele, usando os seus enxota-moscas para bater nas crianças.

Indignado, Toni arrancou o enxota-moscas das mãos da mãe e partiu-o com os pés.

— Como é que tens coragem para fazer isso, mãe?

Um rapaz, com cerca de doze anos, de barrete azul-pervinca na cabeça, destacou-se do grupo. Baixou-se, apanhou o objeto partido e entregou-o à dona, murmurando: Maalesh, maalesh, (Não faz mal, não faz mal!) com um sorriso malandro e solícito, o que fez redobrar a vergonha de Toni.

Noda, que durante anos se interessara apenas por vestidos e festas, acabava de se apaixonar pela “cultura”. Estava na moda! Fosse no Egipto, na França, na Grécia, ou na Itália, percorria agora os museus e os recantos, a fotografar, sem descanso, tudo o que lhe aparecia pela frente. No regresso, reunia a família e os amigos, e organizava sessões intermináveis de projeção de diapositivos.

— Se quiseres, empresto-te a minha máquina fotográfica — propôs ela ao filho para o cativar.

Mas Toni recusou. Só a ideia de acumular imagens insípidas, de reduzir monumentos eternos a uma só dimensão, de banalizar sóis e rostos de pedras, o deixava indisposto.

Ao longe, ouviu o burburinho entusiasta da multidão, viu os rápidos e repetidos brilhos dos flashes, enquanto, recolhidas no silêncio de um outro mundo, as colossais estátuas mantinham o olhar fixo no horizonte.

O campo de ruínas estendia-se ao longe. Toni acabava de ver um obelisco que lhe fazia lembrar o da Praça da Concórdia, em Paris. A mãe agarrou aquela oportunidade:

— Bravo, Toni! — encorajou-o, enquanto consultava o Guia Azul. — O obelisco de Paris foi oferecido à França em 1831 por Méhémet Alil[1]. O outro que estás a ver além, a seguir às colunas, é o da rainha Hatchepsout[2].

Contudo, Toni não perdia o seu ar distante e indiferente. Noda arrependeu-se de o ter trazido consigo naquelas férias da Páscoa. Lembrou-se de que o filho era particularmente dotado para as matemáticas e, para o interessar, compôs uma série de números e medidas:

— Sabes que um colosso sentado tem mais de quinze metros de altura? Que os pilares…

— O que é isso de pilares?

— São aquelas torres maciças erguidas de ambos os lados da porta de pedra. Pois bem, cada uma delas mede cento e treze metros de largura, quarenta e três metros e meio de altura e quinze metros de espessura. Vê só, quinze metros de espessura!

Toni teria preferido percorrer as ruínas sozinho: trepar à vontade até ao cimo de um dos pilares para contemplar aquele domínio de morte e de sobrevivência; sentar-se no colo de um deus ou de uma deusa; encavalitar-se num dos quarenta carneiros alinhados de ambos os lados de uma alameda, e até mesmo refrescar-se na água do lago sagrado!

O crepúsculo cobria o céu, preparando a sua resplandecente descida sobre aquele canteiro de ruínas. Se estivesse rodeado de silêncio, Toni teria certamente apreciado o final do dia no meio daqueles resplendores enigmáticos.

A visita guiada chegava ao fim. O azul do céu escureceu. Em breve surgiria uma miríade de estrelas. No momento em que Noda subia para uma das muitas caleches que conduziam os turistas aos respetivos hotéis, Toni anunciou:

— Eu vou a pé, mãe. Não te preocupes, porque chego a tempo do jantar.

Antes que a mãe tivesse tempo para o chamar, Toni sumiu-se numa ruela, correndo em direção à povoação mais próxima. Noda tranquilizou-se, dizendo para si própria que era sensato dar alguma liberdade ao filho. Um filho que estava quase um homem…

Toni não fazia ideia do que iria encontrar. Tirou o chapéu de palha, pô-lo debaixo do braço, achatando-o, e sacudiu a areia das sandálias. Depois, afastou-se, seguindo por uma vereda de asfalto, finalmente solto, livre, e feliz!

Ao longe, viu a grande estrada que conduzia ao Cairo, mas avançou na direção oposta, rumo ao pontão que atravessava o canal e levava à aldeia de Luxor. Para o atravessar, seguiria as ruelas que tinha anotado na sua agenda e que conduziam ao Palace Hotel, onde a mãe o esperava para jantar.

De repente, sentiu um desejo enorme de se aproximar de algumas daquelas figuras colossais de esfinges de cabeça humana, que os turistas como que haviam apagado ou suprimido com tantos gestos e palavras.

No caminho deserto, iluminado por raros lampiões, percorreu, sozinho, o alto muro da muralha, encoberto pela noite. No final do caminho estreito, o quinto e último lampião abrigava, por detrás da caixa de vidro coberta de pó, uma luz bruxuleante, um pouco menos pálida do que as anteriores. Um círculo amarelado e luminoso, como se tivesse sido traçado a compasso, iluminava a parcela de terreno à volta do pé escurecido.

Encostado ao pé do candeeiro de ferro fundido, estava um vulto sentado de pernas cruzadas. Ao aproximar-se, Toni reconheceu, pela cor azul-pervinca do barrete, o rapaz que tinha apanhado o mata-moscas para o entregar a Noda.

Como nenhum ruído o fazia reagir, Toni parou para compreender o motivo daquela imobilidade. Entre as pernas, colocado sobre as dobras da larga túnica raiada, o rapaz tinha um livro aberto, aureolado de uma luminosidade difusa. Deslizando o indicador de uma linha para outra, o rapaz tentava decifrar as palavras, com uma lentidão aplicada. Parecia estar a experimentar um alimento inestimável, saboreando-o, mastigando-o e, por fim, engolindo-o. Um alimento que lhe dava vida.

De vez em quando, as costas arredondadas endireitavam-se, como se o leitor procurasse descansar os olhos. O pequeno erguia então o seu olhar para o templo e contemplava-o longamente, continuando a soletrar sílabas ou frases acabadas de aprender, para melhor as decorar.

Um profundo recolhimento emanava de toda a sua pessoa.

Toni fixava-o de longe, imóvel, ouvindo os batimentos do seu próprio coração. De repente, aquelas pedras, aquela busca, vindas do fundo dos tempos, conjugavam-se no presente. Num ápice, toda aquela história, toda aquela lenda se personificavam no corpo franzino de um adolescente a decifrar carateres.

Todas as tardes, Saïd escapulia-se dos balidos dos carneiros, dos queixumes das crianças e dos gritos que enchiam a sua agitada cabana. Em redor da lâmpada a petróleo, coabitavam, amontoados no único compartimento, pai, mãe, avós, nove filhos, um burro e uma cabra. E todas as tardes, retomando a postura do escriba, Saïd colocava-se no centro do fraco círculo luminoso, para se concentrar na leitura: solto, livre, feliz. Finalmente à sua vontade!

Levado por uma sede singular, que os brilhos do dia e a esmola incerta não conseguiam satisfazer, o rapazinho procurava conhecer, descobrir, sem saber onde tudo aquilo iria conduzi-lo.

Ao fim de alguns instantes, Toni começou a caminhar na direção do lampião. Em bicos de pés, conseguiu aproximar-se pelo estreito tapete de luz, junto do qual estacou.

O rapaz reconheceu-o imediatamente e fez-lhe sinal para que se sentasse a seu lado. Toni desembaraçou-se do chapéu, atirando-o para longe. Embora, ao baixar-se, sentisse incómodo pela estreiteza dos calções, que lhe deixavam a descoberto coxas e joelhos, Saïd pôs-lhe o braço sobre os ombros, sem prestar qualquer atenção à sua indumentária:

— Há palavras que eu não compreendo. Podes ajudar-me?

Toni disse que sim, com ar solícito.

Começaram a ler juntos, parando ambos numa ou noutra palavra. Depois, retomavam a leitura, divertindo-se a ritmar, a entoar frases, dando a cada sílaba inflexão e musicalidade.

E assim se passou uma hora de agradável convivência. Subitamente, ao lembrar-se da mãe, Toni imaginou a sua preocupação: a sua agitação febril levá-la-ia a pôr toda a polícia à procura do filho. Explicou a Saïd porque é que tinha de partir sem demora. Ao levantar-se, remexeu no fundo dos bolsos, agarrou num punhado de pequenas moedas e ofereceu-lhas:

 — Tu não és um turista, tu és um irmão! Leva isso! — replicou o outro num tom jovial, sem parecer ofendido. — Como te chamas?

— Toni. E tu?

— Saïd.

Saïd tirou do bolso um canivete velho e pediu a Toni que gravasse o seu nome no pé de aço negro do lampião.

— Assim, encontro-te todas as noites.

— Eu vou voltar — prometeu Toni.

— E eu estarei sempre aqui, neste lugar. Até entrar na faculdade…  

Calou-se para ver o efeito daquelas palavras e assegurou:

— Vais ver como consigo!

— Acredito que hás-de conseguir.

Saïd arrancou uma página quadriculada do caderno cor de malva e estendeu-lha:

— Guarda-a. Mesmo que mudemos, graças a esta folha, iremos reconhecer-nos em qualquer lado!

Ao afastar-se, Toni lembrou-se do chapéu de abas largas e voltou para trás. Apanhou-o e procurou escondê-lo atrás das costas. De repente, Saïd fez-lhe uma proposta surpreendente:

— Tu ficas com o meu barrete e dás-me o teu!

A proposta parecia deslumbrá-lo. Saïd imaginava-se com aquele chapéu de turista, imaginava a curiosidade da família e do grupo de companheiros de mendicidade. Toni não se fez rogado. Na cabeça de cabelo rapado do seu novo amigo colocou o chapéu de palha, que enterrou até às orelhas. Ajustou o barrete azul-pervinca e afastou-se, apressado, em direção ao Palace Hotel.

Antes de entrar no átrio, Toni teve o cuidado de enrolar o pequeno barrete de algodão e guardá-lo no bolso. Não tencionava revelar à mãe aquele encontro.

Noda, mal o viu, correu para ele. Apertou-o nos braços, cobriu-o de beijos, e assediou-o de perguntas, numa voz ofegante:

— Onde estiveste? Estava a ficar louca. Dez minutos mais e ia telefonar à polícia.

Toni respondeu-lhe num tom enfático:

— Estive a visitar os deuses!

— Os deuses?

— Até encontrei um escriba!

— Um escriba? Em Karnak, em Luxor? Estás enganado, Toni. Foi no museu do Cairo que viste o Escriba, de olhos de vidro. Lembras-te? Estávamos lá os dois.

— Não insistas, mamã: digo-te que vi um escriba.

— Bem, tu é que sabes — disse Noda, não querendo prolongar a discussão.

— Olha! — disse Toni, tentando mostrar que não estava a inventar. — Olha!

Estendeu a folha que Saïd tinha rasgado do seu caderno cor de malva.

— O que é isso? Gramática!

— Exatamente. Gramática!

— Mas é o que tu mais detestas!

— Agora já não.

— Agora já não? O que queres dizer com isso?

Toni ia começar a falar mas, de repente, sentiu-se bloqueado no seu entusiasmo. Como interpretaria a mãe as suas palavras? Iria compreender tudo o que ele tinha sentido?

— Estou a ouvir-te, Toni. Eu não estou enganada, pois não? Tu detestavas gramática!

— Mas agora já não detesto — disse-lhe ele, decidido a não falar mais.

Depois, meteu a mão ao bolso, apertou e amassou o barrete azul-pervinca com a palma da mão húmida e, pouco e pouco, recuperou o sorriso.

 

[1] Paxá do Egito de 1805 a 1849. Fundador da dinastia que reinou no Egito até 1952. É considerado o pai do Egito moderno.

[2] Rainha do Egipto no século XV a.C.

Andrée Chedid
L’enfant des manèges et d’autres histoires
Paris, Flammarion, 1998
(Tradução e adaptação)

Saïd, o rapaz do lampião – Andrée Chedid: descarregar pdf