A História de Sharifa

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Eu e Sharifa éramos colegas de turma em 1998, na Universidade para Refugiados Afegãos em Peshawar, e, na altura, vivíamos num bairro populoso habitado principalmente por refugiados afegãos que tinham escapado à ocupação do Afeganistão pelos talibãs. Ela era a mais velha de seis filhas, nascidas com intervalos de apenas um ano. Sharifa era uma rapariga cheia de vida, divertida, adorava brincar e pregar partidas, e era popular junto dos colegas e dos professores. Era baixa com grandes olhos verdes, e recordo-me de ela usar um hijab azul-escuro demasiado grande que a cobria completamente.

Encontrava-me com Sharifa todos os dias numa paragem de autocarro, na movimentada Arbab Road. Apreciávamos a viagem diária para a universidade e conversávamos com o motorista e uma com a outra sobre o nosso futuro. Contudo, havia dias em que Sharifa não falava com ninguém, nem mesmo comigo, a sua melhor amiga. No princípio, pensei que era má criação e sentia-me ofendida. Depois, se lhe perguntasse se havia algum problema, ela garantia-me que não, antes de desviar o rosto, absorta em pensamentos. Uma manhã, cheguei à paragem do autocarro e encontrei Sharifa num dos seus estados de espírito silenciosos. Decidi nessa altura tirar a limpo o que se passava com ela. Quando a questionei, ela respondeu:

— Antes de me casar, quero fazer um exame médico para descobrir se posso ter um filho. Se não puder, não me caso.

Nenhuma de nós sabia na altura como o sexo de um bebé era determinado, e, por isso, aconselhei-a a casar-se primeiro e a preocupar-se com o sexo dos filhos mais tarde. Mas ela continuava maldisposta. Dizia que queria fazer o futuro marido feliz e acreditava plenamente que isso só aconteceria se tivesse dez filhos. Eu e as outras raparigas troçávamos dela por estar tão desesperada para arranjar marido e ela zangava-se connosco, mas não ripostava. Ficava simplesmente calada e refugiava-se nos seus pensamentos, embora nós continuássemos a gozar. Um dia, percebemos que tínhamos ido longe de mais e que Sharifa andava extremamente angustiada. Quando tentámos dizer-lhe que estávamos a brincar, ela respondeu:

— Sim, eu sei que só estão a brincar, mas aborrece-me. Não compreendem…a minha mãe deu à luz sete filhas e, se o meu pai morrer, não temos ninguém para olhar por nós. A minha mãe não pode ter um rapaz; não é suficientemente forte.

Eu conhecia os pais de Sharifa e fiquei perturbada com as palavras dela.

— Sharifa — disse eu —, tu tens seis irmãs e isso quer dizer que és forte. Tens também uma mãe e um pai estupendos, não tens nada com que te preocupar.

♦♦♦♦

Um dia, fui encontrar Sharifa lavada em lágrimas, e percebi que estava a chorar por causa da sua situação em casa. Considerava-me muito mais afortunada do que ela, pois tinha pelo menos um irmão e ele representava segurança. Incitei-a a não pensar em termos tão negativos:

— Tens uma família numerosa e, quando tu e as tuas irmãs se casarem, terão irmãos e a tua mãe vai ter filhos.

— Nunca hás de compreender, porque tens um irmão. É sobretudo com os meus pais que me aflijo. Porque sou a filha mais velha, tenho visto a minha mãe chorar sempre que dá à luz e descobre que é outra rapariga. Sempre que isso acontece, o meu pai não lhe fala durante meses e a vida em casa torna-se um inferno. Até os meus avós ignoram a minha mãe. É verdadeiramente terrível ver o que acontece a uma mulher quando é incompleta.

— Sharifa, claro que a tua mãe é completa! Quem diz que não é? Eu conheço-a. É uma mulher nova, bela e bondosa…

— Que é que tu sabes? — contrapôs ela, exasperada. — Não é completa porque não deu à luz um filho. É tão simples como isso. 

Baixou a voz e confessou:

— Às vezes, até eu me zango com ela. Se ela tivesse um rapaz, podíamos finalmente ter uma vida feliz.

— Sharifa — respondi — a felicidade não se mede assim. Mede-se pelo que as pessoas já têm.

Lembro-me que estávamos sentadas a um canto do terreno da nossa faculdade, à sombra de uma pequena árvore. Sentávamo-nos ali muitas vezes a conversar. Limpei as lágrimas do rosto de Sharifa com o meu lenço, e tentei fazer-lhe ver que não era culpa de ninguém, se ela não tinha um irmão e a mãe um filho. Estas coisas estavam nas mãos de Deus e não adiantava nada afligir-se com isso, porque a vida tem de continuar. Mas Sharifa insistia que era pessoalmente culpada da situação.

— A minha avó diz que a culpa é minha. Eu fui a primogénita e, por isso, as outras raparigas vieram a seguir. Trouxe má sorte à família.

Desejava desesperadamente ajudar a minha amiga, mas a campainha tocou e tivemos de ir para a aula. Sharifa enxugou os olhos e ajeitou o hijab, enquanto eu sacudia o pó das calças. Porém, Sharifa não me saía do pensamento e eu rezava para que a mãe tivesse um filho.

♦♦♦♦

Passaram semanas e o ano escolar terminou para dar lugar às férias. Um mês mais tarde, começou o novo trimestre e voltei a estar com Sharifa. Abraçámo-nos e encontrámo-nos no intervalo, à sombra da nossa árvore habitual. Estava morta por ouvir as novidades dela; queria saber que roupas ela tinha feito, que brincos tinha comprado e onde tinha ido durante as férias.

— Estou muito feliz! Acho que a nossa vida vai finalmente mudar para melhor. A minha mãe está novamente grávida e desta vez esperamos que dê à luz um rapaz.

Prometi rezar pelo desfecho que desejavam, mas, de súbito, ela tornou-se sombria. Baixou os olhos e depois levantou-os para mim, antes de murmurar:

— Espero sinceramente que desta vez Deus seja bom para a minha mãe. Espero que ela tenha um rapaz porque, se não tiver, vai acontecer algo de terrível.

Olhei para ela por alguns momentos antes de lhe perguntar o que queria dizer.

— O meu pai está a planear voltar a casar-se e eu sou a moeda de troca — respondeu.

Fiquei horrorizada.

— Não, não pode ser. Ele não pode fazer isso!

Mas Sharifa disse simplesmente:

— Acho que morro, se ele decidir fazer de mim moeda de troca para se casar com uma nova mulher.

As palavras dela encheram-me de temor. Mesmo na nossa jovem idade, sabia que ela estava a considerar o suicídio. Tínhamos ouvido falar de raparigas que se tinham imolado para evitar casamentos combinados: era o último recurso para quem sentia que não tinha saída. Sharifa respirou fundo e continuou:

— Até já escolheu uma rapariga da minha idade. Em troca, o meu pai vai dar-me ao filho da outra família.

— Não podes aceitar uma coisa dessas — disse eu, furiosa, tranquilizando-me com a ideia de que nada de definitivo fora decidido porque ainda faltavam meses para a gravidez da mãe de Sharifa chegar ao fim. E era perfeitamente possível que ela desse à luz um rapaz.

Sharifa concordou e tentou animar-se.

♦♦♦♦

Alguns meses mais tarde, Sharifa e as irmãs andavam atarefadas a escolher nomes para o irmão por que tanto ansiavam e — como era costume entre os refugiados afegãos no Paquistão — eu e a minha mãe fomos visitar a família (era habitual as mães privarem com as mães das amigas das filhas).

Quando chegámos, encontrámos a família de Sharifa numa grande excitação perante a expectativa da chegada de um menino e, tanto eu como a minha mãe rezámos para que, desta vez, Deus lhes desse um rapaz. Sentámo-nos numa pequena sala escura com colchões afegãos encostados às paredes e um tapete vermelho afegão tradicional no centro. Como o tempo estava demasiado quente para a estação, Sharifa serviu Rooh Afza, um sumo perfumado, famoso no Paquistão pela sua doçura. Enquanto bebíamos, apercebi-me de que a mãe de Sharifa estava confiante e otimista, no seu avançado estado de gravidez, e fiquei satisfeita por ver a família tão feliz. Foi um dos dias mais agradáveis que passámos juntas.

Duas semanas mais tarde, encontrei Sharifa na habitual paragem do autocarro. Assim que me viu, desatou a chorar. Olhei atentamente para Sharifa e disse:

— Tenta acalmar-te. Que se passa? Aconteceu alguma coisa à tua mãe?

Nunca tinha visto Sharifa tão transtornada. Mal conseguia falar com a falta de ar. Por fim, disse numa voz embargada:

— A minha vida está arruinada, a minha mãe está acabada, está tudo perdido.

Imediatamente pensei que a mãe devia ter tido um aborto ou qualquer problema grave durante o parto. Voltei a perguntar-lhe calmamente o que tinha acontecido, mas Sharifa chorava copiosamente, e tornou-se claro, pelos seus olhos inchados e vermelhos, que já estava a chorar há muito tempo.

— É outra rapariga!

Perguntei-me em que tipo de sociedade estávamos nós a viver. Que sentido fazia uma bebé inocente trazer tanto sofrimento e dor a Sharifa e à sua família?

Só conseguia imaginar que a mãe de Sharifa estaria ainda mais angustiada do que a filha e esforcei-me por compreender como era possível que uma bebé adorável viesse ao mundo e não fosse desejada por ninguém. Estava a ser julgada pelo seu sexo, o que parecia amargamente injusto. Apesar das minhas tentativas para dizer as palavras certas a Sharifa, acabei por soltar a primeira coisa que me veio à cabeça e que não a ajudava em nada.

— Devias sentir-te feliz, Sharifa. Tens uma irmãzinha que vai trazer alegria e felicidade…

— Não — gritou Sharifa. — Essa bebé apenas trouxe dor e mágoa e a vida da minha mãe é agora um inferno. O meu pai não fala com ela e ninguém a felicitou sequer por ter trazido ao mundo um bebé saudável A minha mãe recusa-se a amamentá-la e eu não posso sequer pegar nela ao colo.

Baixou a voz e murmurou:

— A minha família vai ficar marcada para sempre por causa disto e agora eu tenho de me casar com um estranho que o meu pai escolheu porque se vai casar com urna rapariga dessa família na esperança de trazer um filho à nossa.

— Porque é que não fazes ver ao teu pai como estás transtornada e lhe pedes para não te obrigar a uma coisa dessas?

Percebi imediatamente que isso era impossível. Na nossa cultura, os pais não dão atenção ao que as filhas dizem e, quando tomam uma decisão sobre o casamento de uma delas, é definitiva. Não só sabia que Sharifa não tinha alternativa senão aceitar a decisão do pai, como também que a mãe teria de viver com a nova mulher do pai, uma rapariga com metade da idade dela. A prática normal era um homem pagar uma quantia por uma mulher à família dela, mas o pai de Sharifa não tinha dinheiro suficiente para comprar urna noiva e, assim, tinha de oferecer uma das filhas. Com este acordo, matava dois coelhos de uma só cajadada: casava uma filha e obtinha uma jovem noiva que lhe daria um filho. Depois de conversarmos durante algum tempo, Sharifa começou a acalmar-se; bebemos mais chá e depois acompanhei-a a casa.

Eu conhecia bem as consequências de não ter um filho numa família afegã; há muitas gerações que as mães sem filhos varões e as irmãs sem irmãos sofrem. Enquanto o pai e chefe de família estiver vivo e de boa saúde, é uma figura poderosa e a mulher e as filhas estão em segurança, mas quando ele morre, as mulheres tornam-se propriedade dos restantes homens da família.

É uma prática comum no Afeganistão uma rapariga ser trocada por uma mulher para o irmão ou, em certos casos, como o de Sharifa, por uma segunda mulher para o pai. É rigorosamente ilegal dar uma rapariga para resolver uma disputa entre famílias ou obrigá-la a casar, mas isso não impede que tal aconteça. É uma ocorrência comum, porque os assuntos domésticos são normalmente resolvidos no seio da família e, como as jovens não estão autorizadas a ir a tribunal ou a procurar aconselhamento legal, acabam por ficar totalmente dependentes das suas famílias. Independentemente da ilegalidade, a maioria das mulheres obedece simplesmente à família e considera que o que acontece na sua vida é vontade de Deus. Estas jovens noivas são, geralmente, pouco instruídas, e, por conseguinte, desconhecem os seus direitos legais; embora a maior parte dos homens conheça a lei, pura e simplesmente ignora-a, pois considera que ela não deve interferir em assuntos familiares.

♦♦♦♦

Alguns meses mais tarde, Sharifa deixou de aparecer na escola e eu comecei a preocupar-me. Como ninguém parecia saber o que se passava com Sharifa e a família, decidi descobrir e um dia resolvi ir a casa dela. A caminhada era de uma boa meia hora desde minha casa e, quando cheguei, sentia-me afogueada e cansada. Bati à velha porta de madeira e esperei; reparei então que estava entreaberta. Ao tentar espreitar, a irmã mais nova de Sharifa abriu a porta e convidou-‑me a entrar. Quando cheguei ao jardim, reparei que havia montes de tijolos de adobe e tábuas de madeira por todo o lado; ao que parecia, estavam em curso obras de construção.

Sharifa apareceu a receber-me. Não a via há várias semanas. Emagrecera e estava mais pálida e, ao abraçá-la e beijá-la, como era hábito, reparei que os seus lábios estavam secos. Tive a certeza de que acontecera algo de terrível.

— Salam, Sharifa. Que se passa? Onde tens andado? Porque é que tens faltado às aulas?

Bombardeei-a com perguntas, mas ela não respondeu a nenhuma; depois começou a chorar. Pediu-me para a acompanhar ao quarto e começou a falar-me das obras, mas eu interrompi-a.

— Estão a construir uma casa nova ou coisa parecida?

— O meu pai precisa de um quarto novo — disse.

Compreendi imediatamente o que ela queria dizer. O pai de Sharifa precisava de um quarto separado do resto da casa para a sua nova noiva. No interior da casa reinava um silêncio absoluto, como se alguém tivesse morrido e a família estivesse de luto. Ninguém se ria ou sorria. Sharifa contou-me que a família decidira trocá-la pela noiva do pai, uma rapariga que só tinha dezassete anos, a nossa idade. Em contrapartida, Sharifa ia casar-se com um quarentão cuja mulher tinha morrido. Teria de cuidar dos filhos deste homem e, com isso, teria de renunciar a quaisquer sonhos que pudesse ter alimentado de se casar com um jovem atraente do seu agrado. A felicidade de Sharifa era sacrificada para assegurar o futuro da família.

♦♦♦♦

Passaram dois meses em que não tive notícias da minha amiga. Ela não estava autorizada a sair de casa e eu andava ocupada com as aulas e as lides domésticas. Por vezes, interrogava-me sobre o que lhe teria acontecido, mas aceitara, pouco a pouco, que ela estava fadada para se casar com um homem mais velho e salvaguardar o futuro da família. Uma tarde, depois das aulas, quando me apeei do autocarro, vi uma das irmãs mais novas de Sharifa na rua. Estava a comprar medicamentos na farmácia. Abordei-a e perguntei-lhe como estava Sharifa. Disse que a irmã fora obrigada a casar-‑se antes de o pai levar a nova noiva para casa porque o marido precisava de ajuda para cuidar dos cinco filhos e ela era agora a madrasta deles, apesar de alguns serem quase da idade dela.

— Mas onde é que ela está agora? — perguntei. — Está aqui, em Peshawar?

Os olhos da irmã encheram-se de lágrimas.

— Sim, está em Peshawar, mas vive fora da cidade, numa aldeia remota. A casa do marido fica bastante longe e ela não está autorizada a visitar-nos com frequência.

A irmã de Sharifa rompeu em lágrimas.

— É raro vermos a nossa irmã. Ela está muito ocupada a olhar pelo marido e pelos cinco filhos dele.

Procurei imaginar que idade teriam os enteados, pois a própria Sharifa pouco mais era do que uma criança, e perguntei:

— E o teu pai? Levou para casa a nova noiva?

A irmã abanou a cabeça e eu perguntei porque não.

— O meu pai está gravemente doente. Adoeceu na semana antes de levar a noiva para casa e foi parar ao hospital. Agora vou-lhe levar estes comprimidos que o médico receitou.

Mais uma vez, a vida atribulada de Sharifa começou a ocupar os meus pensamentos. Expliquei à minha mãe o que se passara e ela sugeriu imediatamente que visitássemos a mãe de Sharifa para saber novidades. No dia seguinte, eu e a minha mãe fomos à casa da família. Quando empurrei a velha porta de madeira, vi o jardim cheio de pessoas e presumi que estavam a celebrar o casamento do pai da minha amiga. Talvez ele sempre tivesse ido avante. Mas depois reparei que as pessoas estavam com um ar sério e que não reinava o ambiente alegre de um casamento. Um grupo de homens afastou-se para o lado para nos deixar entrar em casa. E foi então que ouvi choros. Entrámos numa sala e encontrámos a mãe de Sharifa lavada em lágrimas. Estava sentada no chão, com o lenço da cabeça amarfanhado ao seu lado. As filhas, sentadas à sua volta, também choravam, mas Sharifa não estava entre elas. Aproximei-me da mãe e baixei-me para beijá-la. Ela abraçou-me com força e senti que pensava que, sendo eu amiga da filha, lhe estava de algum modo ligada.

— Minha filha, o sacríficio de Sharifa não nos trouxe nenhuma felicidade.

O que estava a acontecer ali não era um casamento. Era um funeral. O pai de Sharifa morrera ao princípio do dia, antes de trazer a nova noiva para casa e assegurar um filho para a família. A mãe de Sharifa começou a gemer e a bater na cara.

— Oh, meu Deus, que vai ser de nós? Perdi duas partes do meu coração: a minha filha Sharifa e o meu marido. Que vai ser de mim e das minhas filhas?

Baloiçava-se para trás e para a frente, chamando pelo nome de Sharifa.

— Sharifa, minha filha, anda ver. O teu sacrifício não trouxe nenhum filho. Porque tiveste de me deixar? Porquê? Agora, em teu lugar, a nova noiva do teu pai tem de vir para cá e sofrer connosco.

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Nunca mais voltei a ver Sharifa. Deixei de ir a casa dela e tive dificuldade em aceitar que a minha amiga tivesse desistido dos estudos e fosse casada com um homem mais velho e mãe dos filhos de outra mulher. Mas a sua história e as recordações da nossa amizade acompanham-me até hoje.

Zarghuna Kargar