O nosso pensamento, como toda a entidade viva, nasce para se vestir de fronteiras. Desde a mais pequena célula aos organismos maiores, o desenho de toda a criatura pede uma capa, um invólucro separador. A verdade é esta: a vida tem fome de fronteiras. É assim que se passa e não haveria nada a lamentar. Porque essas fronteiras da natureza não servem apenas para fechar. Todas as membranas orgânicas são entidades vivas e permeáveis. São fronteiras feitas para, ao mesmo tempo, delimitar e negociar. O “dentro” e o “fora” trocam-se por turnos.
O problema é que o nosso pensamento, ao contrário das restantes entidades vivas, facilmente se encerra em si mesmo. Não sabemos fazer paredes vivas e permeáveis.
Aprendemos a demarcar-nos do Outro e do Estranho como se fossem ameaças à nossa integridade, mesmo que ninguém saiba em que consiste essa integridade. Temos medo da mudança, medo da desordem, medo da complexidade. Precisamos de modelos para entender um universo (que é, afinal, um pluriverso ou um multiverso) e que foi construído em permanente mudança, no meio do caos e do imprevisível.
Temos medo dos que pensam diferente e mais medo ainda daqueles que são tão diferentes, que achamos que não pensam. Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós. Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos.
A própria palavra “fronteira” nasceu como um conceito militar. Vem da linguagem bélica francesa e do modo como se designava a frente de batalha. Nesse mesmo berço aconteceu um facto curioso: um oficial do exército francês inventou um código de gravação de mensagens em alto-relevo. Esse código servia para que, nas noites de combate, os soldados pudessem comunicar-se em silêncio e no escuro. Essa pequena invenção viria a ter enormes consequências que superavam aquele lugar e aquele tempo. Porque foi a partir desse código que se inventou o Sistema de Leitura Braille. Para milhões de pessoas venceu-se uma pesada fronteira entre o desejo da luz e a condenação da sombra. No mesmo lugar em que nasceu a palavra “fronteira” sucedeu um episódio que negava o sentido limitador da palavra.
A fronteira concebida como vedação estanque tem a ver com o modo como pensamos e vivemos a nossa própria identidade. Essa identidade mora hoje em condomínio fechado. Uma invisível empresa de segurança impede o “Outro” de entrar nesse espaço que chamamos de “intimidade”.
Mia Couto