– Estavas a tentar magoar-te, Tracy?
Os meus pulmões contraíram-se, o meu rosto ruboresceu e perdi o folgo. Em quê que me tinha metido? O rosto da assistente social aproximou-se e ela repetiu a questão várias vezes. Os seus olhos atentos observavam a minha alma e pareceu-me que conseguia ler os meus pensamentos. Sim, eu estava a tentar magoar-me a mim própria.
Eram seis da manhã e os sinais do que eu tinha feito ao meu corpo na noite passada começavam a notar-se. Quando os meus olhos se abriram, o branco das paredes do quarto cegou-me. O sol brilhava, incandescente, através das janelas, e eu percebi que só tinha dormido umas horas. Quando os meus olhos se ajustaram à luz, vi os meus pais sentados na minha cama, de mãos dadas.
Embora ambos tivessem o olhar lacrimejado, pareciam-me tão pacíficos que desejei parar o tempo. De mãos dadas, tentando confortar-se um ao outro, pareciam-me mais enamorados do que nunca. Mas aquela minha alegria foi perturbada pela contração da minha perna, que fez o meu pai olhar para mim, surpreendido por me ver acordada.
– Olá, querida! Sentes-te melhor? – perguntou com um sorriso tímido.
– Sinto-me muito bem. Posso ir para casa?
Bem sei que falava como uma criança de cinco anos, mas não pude evitar: sentia a falta da minha vida normal… Os meus pais trocaram um olhar, daqueles que eu conhecia bem.
– Tracy, querida, não vais regressar a casa por agora – explicou-me ternamente a minha mãe. – Os médicos decidiram que será bom para ti ficares mais alguns dias. Ainda estás sob medicação, mas quando a abandonares poderás ser transferida. Eu e o pai temos feito o possível para que fiques aqui pouco tempo. Lamento, mas terás de ficar um pouco mais.
O quarto silencioso dizia-me que a minha permanência estava para durar…
– Não posso ir para lá! – quase gritei.
E se os meus amigos descobrissem? Iam pensar que sou alguma louca suicida.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas mais uma vez.
A minha mãe aproximou-se e abraçou-me.
Quando me apercebi que era uma menina de catorze anos a chorar nos braços da mãe, senti-me incomodada, desembaracei-me e sentei-me bem direita.
– Posso ir à casa de banho? – perguntei, tentando recuperar a dignidade e compostura.
Os meus pais e a enfermeira trocaram “aquele” olhar, questionando-se sobre se seria seguro deixar-me sozinha naquele momento.
– Está tudo bem – disse, tentando acalmá-los.
Escapei para o quarto de banho e fechei a porta. Ignorando tudo o resto que se passava naquele quarto, fui direta ao espelho. Só uma palavra resume a miúda que vi no reflexo: perdida. O meu cabelo estava emaranhado, os meus olhos avermelhados das lágrimas, a boca franzida de desespero. Mas era o olhar que mais me assustava. Expressava apenas uma emoção: desilusão. Mesmo que o avermelhado dos olhos não estivesse lá, mesmo que o cabelo estivesse composto, o meu olhar seria ainda aquele. Esta rapariga estava a morrer por dentro, não fazia a mínima ideia do seu propósito na vida. Parecia tão fraca que um sopro a deitaria ao chão.
E pareceu-me ter demorado um pouco a perceber que aquela rapariga era eu…
Nos dois breves minutos em que me contemplei ao espelho, fiz uma das promessas mais importantes da minha vida. Prometi a mim mesma que ficaria melhor. Independentemente do que parecesse, independentemente do tempo que demorasse e do tempo que tivesse de ficar em recuperação, prometi a mim mesma que conseguiria ultrapassar aquela dor.
Em poucas horas tinha alcançado aquilo que parecia ser o fundo mais fundo da minha vida. Sabia que não seria fácil, mas é esse o desafio e a beleza de reconstruir uma vida. Começamos com um coração despedaçado e, parecendo que as partes nunca voltarão a reunir-se, sabemos que é uma grande vitória vê-lo completo de novo.
É assim a vida: pura e simplesmente, dói. Mas ultrapassar a dor torna-nos mais fortes e, a longo-prazo, bem mais felizes.
Tracy Sinkhorn