Lina correu descalça até à entrada do campo, onde funcionários da assistência internacional lançavam roupas usadas das traseiras de um camião. Toda a gente se empurrava e lutava pelas melhores roupas. Lina acocorou-se e esticou-se, apanhando tudo aquilo que podia.
A multidão começou a afastar-se.
Na poeira, aos pés de Lina, estava uma sandália completamente nova. Era amarela com uma flor azul no centro e, quando ela a enfiou no pé, viu que lhe servia na perfeição. Lina tinha dez anos e já não usava sapatos há dois anos.
Olhou em volta à procura do par da sandália. Encontrou-a no pé de uma outra rapariga, mais magra e de pele mais escura que ela.
— As-salaam alaykum — saudou-a Lina. — Que a paz esteja contigo.
A rapariga não respondeu. Estava vestida com um shalwar-kameez, uma calça larga e uma túnica, e tinha os pés gretados e inchados, como já tinham estado os de Lina quando chegara ao campo de refugiados.
De repente, foi-se embora e levou com ela o par da sandália de Lina.
Na manhã seguinte, Lina foi lavar roupa calçando uma linda sandália. Escolheu com cuidado o caminho até ao ribeiro, para evitar que a sandália pisasse qualquer sujidade. Os seus velhos sapatos tinham ficado totalmente gastos nos muitos quilómetros que percorrera a pé, desde o Afeganistão até Peshawar, o campo de refugiados no Paquistão. Tanto mais que tinha trazido ao colo o irmão, Najiib que, apesar de pequeno, era pesado.
Quando levantou os olhos do monte de roupa que tinha para esfregar, viu a rapariga do dia anterior junto dela. Calçava uma só sandália, que tirou, curvando-se.
— A minha avó diz que não faz qualquer sentido usar só uma — disse, pondo a sandália aos pés de Lina.
Depois foi-se embora.
— Espera! — pediu Lina.
Agarrando nas duas sandálias, seguiu a rapariga e apresentou-se:
— Eu sou a Lina.
A rapariga virou-se, devagar, e disse:
— Eu sou a Feroza.
Lina apontou para as sandálias.
— Podemos partilhá-las! — sugeriu.
— De que serve uma sandália para dois pés? — perguntou Feroza, franzindo o sobrolho.
— Tu usas as duas hoje, eu uso-as amanhã — disse Lina, sorrindo. — Quatro pés, duas sandálias.
Feroza sorriu também. Pegou nas sandálias e calçou-as.
— Amanhã serão tuas — prometeu.
No dia seguinte, as duas raparigas saudaram-se mutuamente quando levaram os jarros para transportar água. Lina calçou as sandálias e, depois, esperaram juntas na longa fila.
Toda a gente no campo estava à espera de ter uma casa nova. Enquanto a mãe de Lina ia a reuniões sobre o realojamento, as raparigas ficavam na tenda com Ismatu e Najiib. Tinham o cuidado de manter as sandálias longe dos rapazes, porque Ismatu queria arrancar-lhes as flores e Najiib queria mastigá-las.
— O meu pai e a minha irmã foram mortos na guerra — disse Lina à sua amiga. — A minha mãe e eu tivemos de fugir com Ismatu e Najiib durante a noite.
Feroza acenou com a cabeça e duas lágrimas deslizaram-lhe pela cara abaixo:
— Eu agora só tenho a minha avó.
Quando não tinham trabalho para fazer, Lina e Feroza aproximavam-se sorrateiramente das janelas da escola e espreitavam lá para dentro. A escola era pequena, com espaço apenas para os rapazes estudarem. As duas raparigas escreviam os seus nomes na terra e apagavam depois os vestígios, para que ninguém visse os erros.
Por vezes, cada uma delas usava uma só sandália. As outras crianças riam-se, mas Lina e Feroza não se importavam.
À noitinha, o céu ficava azul e as primeiras estrelas começavam a brilhar.
Lina e Feroza olhavam o tom argênteo da lua em quarto crescente, que assinalava o início do Ramadão, e partilhavam memórias, sussurrando uma à outra os seus sonhos de ter uma casa nova.
Certa manhã, quando foram para o ribeiro lavar as sandálias para as conservar em bom estado, ouviram alguém chamar.
— Lina, vem depressa — disse a avó de Feroza. — A tua mãe diz que o vosso nome consta da lista.
Feroza agarrou nas sandálias e as duas raparigas correram em direção ao escritório.
Lina pôs-se em bicos de pés e deu uma olhada ao aviso.
— O nome da minha mãe está aqui! Vamos para a América.
Quando olhou para Feroza, esta disse, calmamente, olhando para os pés:
— O meu nome não está.
Depois curvou-se e tirou as sandálias, entregando-as a Lina.
— Na América não podes andar descalça.
Feroza deu um abraço a Lina.
Quando chegou a hora da partida, o funcionário da assistência internacional deu à mãe de Lina um grande saco branco e quadrado, com números escritos.
— Todos os vossos papéis importantes estão neste saco — explicou.
Quando Feroza e a avó vieram despedir-se, Lina apontou para os pés:
— Olha, a minha mãe poupou dinheiro dos trabalhos de costura que fez e comprou-nos sapatos para ir para a América.
— São sapatos verdadeiros — disse Feroza, admirando o couro preto e novo.
— Aqui tens as sandálias — disse Lina. — Agora podes usá-las sempre.
As lágrimas nos olhos de Lina não eram por causa das sandálias.
— As-salaam alaykum — disse Feroza, enquanto pegava nas sandálias amarelas e azuis já desbotadas. — Que a paz esteja contigo.
Quando Lina ia a caminho da camioneta, Feroza chamou-a:
— Espera! Tens que ficar com uma.
E estendeu a Lina uma sandália.
— De que serve uma sandália?
— Serve para nos lembrarmos.
Feroza levantou a outra sandália e disse:
— Quatro pés, duas sandálias.
Lina sentiu que chorava.
Enfiou a sandália no saco e subiu para a camioneta.
Enquanto Feroza acompanhava o movimento do veículo, inclinou-se da janela e disse:
— Voltaremos a partilhá-las na América.
Karen Lynn Williams, Khadra Mohammed
Four feet, two sandals
Cambridge, Eerdmans Books, 2007
(Tradução e adaptação)