Quando eu deambulava pelos corredores da escola secundária de Triton, havia uma frase afixada numa das paredes que me irritava imenso: “Estes são os melhores dias da tua vida.”
Confesso que, na altura, achava que nenhum adulto digno do nome se atreveria a sair de casa sem esta “bengala” de sabedoria a apoiá-lo. No que me dizia respeito, porém, a frase até podia estar escrita em latim macarrónico. Que efeito poderia ela ter sobre mim, que passava a maior parte das minhas manhãs nas aulas de Geometria, engalfinhado numa batalha entre a força da gravidade e as minhas pálpebras, e que mudava três vezes de camisola por tarde à custa das corridas no campo de beisebol?
Enquanto adolescente, a vida não me parecia propriamente um paraíso. Não me parecia de todo credível que os adultos sentissem o drama de ver trabalhos e papelada amontoarem-se numa pilha de entregas adiadas que me faziam sentir culpado. Nem que sentissem o vazio decorrente de um afeto profundo não correspondido. Já para não falar do medo de ser invisível, de não se ser nada num ambiente em que o estatuto era tudo.
Não me parecia que os adultos soubessem o que tudo isto significava ou que sequer se lembrassem. Contudo, algo aconteceu no final do meu 11º ano que mudou para sempre a perspetiva que eu tinha da vida.
Estava eu num jogo de beisebol, no lugar que sempre ocupava na segunda base, quando vi um corredor de base fazer um lançamento perigoso. A bola descreveu um arco imperfeito antes de o lançador a apanhar.
— Atira-a, atira-a! — gritei para o lançador.
O lançador, surpreendido pela minha estratégia arriscada, fez menção de lançar a bola para fora do campo, mas projetou-a na minha direção. Lancei-me para o lado esquerdo e senti a bola aninhar-se na luva por um instante. Logo de seguida, porém, os meus ossos explodiram como se fossem atingidos por uma granada e todo o meu corpo se comprimiu contra a coluna. “Esmaguei as costelas”, pensei, enquanto via as imagens desfocadas dos meus colegas de equipa, que se tinham juntado em meu redor.
Na sala de espera do hospital, depois de uma viagem acidentada no carro do meu pai, senti-me desfalecer enquanto os meus pais preenchiam papelada. Uma hora deu lugar a duas e duas viraram três. A dor pungente tornou-se excruciante.
— Senhor Morelli, vamos examiná-lo agora — chamou-me uma enfermeira cansada.
Os meus pais empurraram a cadeira de rodas para uma sala de observações, onde duas enfermeiras esquadrinharam as minhas costelas com os dedos.
— Bem, Senhor Morelli — disse, por fim, uma delas — parece que as suas costelas estão todas no sítio. Já pode ir para casa.
Ir para casa? Será que tinha ouvido bem? É sempre bom sabermos que gozamos de uma saúde perfeita, mas aquela dor não era imaginação minha. Infelizmente para mim, os meus conhecimentos médicos não se estendiam para além de uma pomada ou de um penso rápido e, por isso, predispus-me a fazer o que me tinham dito.
Foi então que o destino interveio e um médico interno, que estava naquele momento a passar pela sala, olhou na minha direção.
— Volte já para a marquesa! — disse, severo. — Enfermeira, vamos fazer-lhe uma TAC imediatamente!
Quando o médico regressou com os exames, disse-me:
— Senhor Morelli, o senhor está com uma hemorragia interna porque o seu baço teve uma rutura. Temos de atuar já se quisermos evitar uma transfusão. Vamos levá-lo de helicóptero para Cooper, onde existe uma unidade de traumatologia.
As enfermeiras levaram-me na marquesa até ao heliporto situado no telhado do hospital e dois paramédicos colocaram-me lá dentro. A viagem até Cooper foi um misto de suor e ranger de dentes. Quando finalmente chegámos, atravessei corredores iluminados por filas de néones, quais sinais de autoestrada, até que cheguei à antessala de operações. Era uma divisão cheia de camas, ocupadas por doentes vítimas de ataques de coração ou de disparos de pistola. O monitor ligado a um doente junto de mim cessou de contar os batimentos cardíacos de repente e um auxiliar de enfermagem acorreu a apagar a linha horizontal que indicava a morte do paciente.
— Vou morrer — sussurrei, pela primeira vez na vida.
Fui o primeiro a ser operado. Acordei na manhã seguinte, com vinte e seis agrafos e uma incisão em forma de Z que ia da cinta ao esterno. E foi nesse momento, com toda a família à minha volta e o pânico já longe da minha mente, que tive um pensamento extremamente peculiar: talvez estes fossem mesmo os melhores dias da minha vida. Talvez o melhor dia da nossa vida seja aquele que estamos a viver.
O caminho até à recuperação foi longo e errante, mas a experiência que tive provou ser indispensável. Desde então não houve um único dia que não tivesse apreciado, respeitado e acarinhado. Sei hoje que cada dia que vivemos é um conjunto inestimável de momentos preciosos.
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