O dia em que não acabei os trabalhos de casa – Hermann Schulz

O dia em que não acabei os trabalhos de casa

— Eu estou aqui mas tomo sempre cuidado! — disse-me um dia mais tarde o turco que trabalhava no snack-bar “Adana” em Barmen, na Rua Schützen.

Por vezes conversávamos um pouco quando, depois da escola, passava por lá depressa porque estava com fome e ele era muito simpático. A rapariga, que nunca falava e estava quase sempre a limpar a gordura da placa ou a pôr salsichas a grelhar, devia ser filha. Ou sobrinha, quem sabe. Talvez a loja lhe pertencesse, ou talvez ele fosse só empregado. Com os turcos, nunca se sabe. Geralmente, pertencem todos a uma grande família e acautelam-se para que ninguém mandrie. Não cheguei a perguntar-lhe essas coisas privadas porque o snack-bar fechou.

— De qualquer maneira, não se deve ter muita confiança com os clientes — dizia ele. — Eu, pelo menos, não quero ter aborrecimentos. Nunca se sabe quem se tem à frente.

 

Era entre as 18 e as 19 horas, altura em que as pessoas vão ainda rapidamente comprar batatas fritas ou salsichas de caril antes do cinema e os pais pedem grandes doses e prendem o serviço com os seus pedidos. Se uma pessoa tinha pressa, ficava furiosa com aqueles pais. Se não tinha nada planeado, não tinha importância.

Eu não tinha nada planeado, estava no fim da fila e olhava para o ecrã da televisão, em cima, ao canto. Não conseguia perceber muito mas, quando se está à espera, tanto faz. Pelo menos, comigo é assim. No ecrã uns homens corriam de um lado para o outro e, no chão, estava um homem deitado, baleado ou morto, não conseguia perceber. Não fazia ideia se estava a passar um filme ou as notícias. Nos filmes, os mortos estão muitas vezes caídos na rua com todos a correr à volta. A fila avançou um pedaço e eu ouvi indistintamente o nome Martin Luther King.

À minha frente encontrava-se um indivíduo bastante forte, mais velho e maior do que eu um palmo. Quando uma pessoa está na fila de um snack-bar, não lhe interessa quem está à frente porque não se conversa com a pessoa quando não se conhece, só muito raramente. O importante é que essa pessoa não tenha um rol de pedidos a fazer. A nossa vez está quase a chegar mas ainda pode demorar muito. Eu não tinha nada para fazer, só alguns – poucos – trabalhos de casa. Nada de importante.

Ainda faltava muito para a minha vez; tinha, pelo menos umas sete pessoas à frente, homens e mulheres. “Espero que muitos deles estejam sozinhos”, pensava eu. “Despacham os pedidos mais depressa.”

Esperanças destas não servem de nada porque não sabemos. Nas mesas estavam sentadas algumas pessoas a comer, também um casal já avançado na idade. Provavelmente não lhes apetecia cozinhar só para eles. Eu não estava com pressa mas, mesmo assim, não queria ficar ali em pé uma eternidade. A começar pelo facto de gordura e batatas fritas não cheirarem lá muito bem quando se tem de aguentar o cheiro durante muito tempo. Bem, adiante.

O indivíduo à minha frente também estava a olhar para o ecrã, pelo jeito da cabeça, e disse em voz alta:

— Menos um preto nojento! — olhou em volta com um risinho, como se esperasse uma aprovação ou, pelo menos um assentimento.

Ninguém disse nada. Mas, de repente, fez-se um silêncio tal, que se ouvia o frigir da gordura e o barulho do papel em que o turco estava a embrulhar outro pedido. Algumas pessoas olharam fixamente em frente, uma mulher lá à frente virou-se para trás para ver quem tinha falado mas não disse nada. Eu queria ter dito alguma coisa, mas não sabia o quê. Foi muito de surpresa, penso eu. A fila avançou.

O homem que estava à frente de tudo pagou. Quando se voltou, reconheci-o. Trabalha nas obras em frente da nossa escola. Conduz o cilindro para a frente e para trás, sempre devagar. Reconheci-o pelo capuz de pala com um boi vermelho à frente. E, para além disso, pelo físico. Não era pequeno, mas também não era um gigante. Pegou no recipiente das batatas fritas e seguiu ao longo da fila. Meteu uma batata frita à boca e mastigou muito calmamente. Tudo nele era lento como o pesado cilindro que conduzia, sempre devagar, de cada vez que eu olhava pela janela da sala de aula. Parou muito calmamente ao lado do indivíduo à minha frente e disse:

— Não percebi muito bem o que disseste. Ora diz lá outra vez!

Continuava a comer calmamente mas os olhos estavam postos no grandalhão à minha frente, uns bons quinze anos mais novo do que ele, de certeza, e maior. O homem do cilindro não era muito pequeno, mas talvez mais forte de ombros.

— O que eu disse, toda a gente ouviu — respondeu ele, em tom de desafio, mas os olhos tremiam-lhe um pouco ao falar. — Em todo o caso, é a minha opinião.

O condutor do cilindro olhava calmamente para ele continuando a comer.

— Eu não percebi lá muito bem — disse — por isso é que pedi que repetisses.

O tipo à minha frente saltava de uma perna para a outra e olhava de soslaio para o homem parado ao lado dele.

— Abre os ouvidos! Toda a gente ouviu! Eu falo quando quero e não quando me mandam! — falava num tom arrogante, esticava os ombros, olhando para outro lado e notava-se que, de certa forma se sentia incomodado.

Uma voz de mulher, vinda de mais à frente, disse então, bastante alto:

— Acha muito bem que tenham morto um pastor negro na América. Devia era ter vergonha!

Era a mulher que já se voltara uma vez. O último burburinho extinguiu-se. Estava um silêncio tenso, antes de o homem do cilindro dizer, sempre com o olhar dirigido para o fulano à minha frente:

— Finalmente percebi. Então uma pessoa como tu acha bem uma coisa destas… Deves ter viajado muito, deves conhecer um montão de pretos e tens muito contacto com eles, não? — perguntou amigavelmente.

— Isso não é da conta de ninguém — disse num tom brusco o tipo à minha frente. — Deixe-me mas é em paz.

A voz tremia-lhe. O turco já só perguntava em surdina o pedido do próximo cliente. A rapariga atrás do balcão, com o pano de limpar nas mãos, olhava com medo para os dois homens. A maioria dos clientes também se tinha voltado.

— Se tu dizes o que pensas aqui tão abertamente, então isso é muito da minha conta. Por acaso até admiro alguém com tanta coragem. A sério! Isso quando não diz disparates… ou até asneiras maiores!

— Quem é que está a dizer disparates? — o grandalhão à minha frente fazia-se de indignado mas a voz soava bastante tremida. Tinha suor na testa. Pensei que talvez ele estivesse com medo do condutor do cilindro, que não é propriamente uma criança. E é um pouco mais velho e talvez mais forte. Mas o homem do cilindro não parecia querer lutar.

— Quem é que está a dizer disparates? Bom, então vamos pedir a opinião das pessoas aqui! — virou-se e olhou em redor.

Algumas riam, inseguras, outras murmuravam, concordando. Eu tinha quase a certeza de que a maioria estava do lado do homem do cilindro. Mesmo que não dissessem nada.

“Os que provavelmente não são da mesma opinião, agora calam a boca”, pensei eu e disse ao homem que podia contar comigo. Eu também era da opinião que o tipo tinha dito asneira. Corei, mas depois senti-me bem, mesmo estando o indivíduo imediatamente à minha frente.

O turco suava em bica e passava o lenço pela testa cada vez com mais frequência para as gotas não caírem na comida. O condutor do cilindro manteve-se muito calmo e continuava a comer. Quando a fila avançava, ele andava um pouco porque queria continuar ao lado do indivíduo.

— Ora repara — disse ele suavemente mas tão claramente para que todos ouvissem. — Não vejo aqui ninguém que ache isso correcto… Ou será que há? — virou-se também para o velho que, sentado à mesa com a mulher, picava a salsicha de caril sem uma única vez levantar os olhos. Desta vez também não ergueu. Baixou ainda mais a cabeça e murmurou:
— Não somos de cá…

O condutor do cilindro olhou-os com certa pena mas não disse nada. Sentou-se a uma mesa, esticou as pernas, sempre com as batatas fritas nas mãos e o olhar dirigido ao fulano à minha frente.

— Pareces estar um pouco só com a tua opinião. Porque será? Talvez voltes a pensar outra vez no assunto. Um rapaz como tu… é pena.

O homem à minha frente mexia-se de um lado para o outro, nervoso. Vi claramente que a nuca estava ruborizada e não sabia onde meter as mãos. Olhava à sua volta, mas todos os olhares o evitavam.

De repente, deixou a fila e dirigiu-se à porta de saída, quase chocando com clientes que vinham a entrar, e quis atirar com a porta atrás dele mas ela fechou-se devagar e silenciosamente. Toda a gente olhava pela janela e via como ele estava no passeio, na paragem do autocarro, um pouco só, de costas viradas para a janela, e cada um fazia o seu juízo. O turco estava aliviado, via-se bem. A filha, ou sobrinha, com o pano na mão, sorria agora muito amavelmente.

Isto passou-se a 4 de Abril de 1968 entre as dezoito ou dezanove horas. Não me esqueço porque não se passa por uma situação destas muitas vezes. Tinha esquecido a data e o ano mas vi na enciclopédia sob o nome de King, Martin Luther.

Passou-se isto na Rua Schützen, em Barmen, quando, entre o posto dos correios e a taberna, que antes se chamava “Cantinho da Protecção”, ainda havia aquele snack-bar turco, e eu, na altura, ainda não tinha acabado de fazer os meus trabalhos de casa. Naquele dia também não os acabei.

Hermann Schulz

Karlhans Frank (org.)
Menschen sind Menschen. Überal.
München, C. Bertelsmann Verlag, 2002
tradução e adaptação